O crime e o homem

Júri expõe contradições entre a lei e a cultura

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23 de outubro de 2010, 9h22

ESMP
Júri da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo - ESMP

"No julgamento do coronel Ubiratan, a imprensa estava toda lá. Mas eu resolvi ficar do lado do meu cliente e entrei pelos fundos do tribunal." A frase é do criminalista Vicente Cascione, que defendeu o coronel da Polícia Militar Ubiratan Guimarães. Durante 11 dias, enquanto a opinião pública clamava pela condenação, um corpo de jurados decidia o destino do homem que comandou a operação conhecida como Massacre do Carandiru. Ela resultou na morte de 111 detentos, em 1992. A pena inicial de 632 anos foi substituída pela absolvição do réu pelo Tribunal de Júri de Justiça de São Paulo. "Por mais impopular que o caso fosse", recorda o criminalista, "eu tinha que pegá-lo. A mídia já tinha condenado meu cliente".

Cascione conta 44 anos de carreira — a maior parte deles despendidos no Júri. Durante esse tempo, passaram por suas mãos casos de forte clamor social, como do Monstro do Morumbi, responsável pelo estrangulamento e assassinato de dez mulheres. "Um espetáculo deprimente, nos casos de grande repercussão, é quando o promotor, juiz e delegado opinam no microfone, e não no tribunal", diz.

Grandes nomes do Direito iniciaram — ou até mesmo passaram suas vidas — no júri. Rui Barbosa, Ari Franco, Tancredo Neves, Pedro Simon e Márcio Thomaz Bastos são amostras de que o espaço é escola não só da ciência criminal, como de todo o Direito.

Instituído no Brasil com a primeira Lei de Imprensa, em 18 de junho de 1822, somente em 1824, com a Constituição Imperial, o júri mudou para a esfera Judiciária. O instituto é previsto pelo artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal Brasileira em vigor, garantindo a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência de crimes dolosos contra a vida. Hoje, sua regulamentação está nos artigos 433 a 497 do Código de Processo Penal.

Acabar com o Tribunal do Júri no país só é possível com a promulgação de uma nova Constituição. Mas apesar de os artigos 121 e 124 determinarem que esse julgamento seja um procedimento obrigatório nos crimes contra a vida, a realidade brasileira é outra. Aborto, infanticídio e instigação ao suicídio raramente chegam às mãos dos jurados. "Podemos dizer que 98% dos crimes julgados pelo júri são homicídios", revela a juíza Juliana Amato, que por dois anos participou de cerca de três júris por semana no Tribunal de Júri de Santo Amaro, em São Paulo.

Os dados informados pela juíza são endossados pelo criminalista Thiago Gomes Anastácio, associado ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). "A essência do júri está no julgamento do motivo que levou o réu a cometer o crime. E esse motivo, na maioria esmagadora dos casos, é mulher, cachaça e drogas."

A Lei 11.689 modificou alguns pontos do funcionamento do júri. Segundo Thiago, com ela, "inverteu-se a pergunta sobre a autoria do crime – que ficou em segundo lugar – e antes se colocou a pergunta sobre a materialidade". Já a pergunta "O jurado absolve o réu?", segundo o advogado, é uma obrigação somente para que se respeite os casos de piedade ou de absoluta compreensão dos motivos do crime. "Ou ainda", explica, "do que já foi o complexo quesito de legítima defesa ou estado de necessidade, as chamadas causas de exclusão de ilicitude ou culpabilidade". Mais seis ou sete perguntas serão feitas no julgamento de um homicídio qualificado.

Em tese, a decisão do corpo de jurados não pode sofrer influência de fatores externos. A Justiça Eleitoral divulga uma lista anual com os nomes dos eleitores que estão em dia com seus deveres. Essa informação é então cruzada com os antecedentes criminais. Daí, chega-se a uma escolha aleatória de quatro ou cinco mil cidadãos, cujos nomes sorteados serão convocados para o Tribunal de Júri. Todo o processo de sorteio visa, além da incomunicabilidade, a pluralidade. Por isso, caso, como explica a juíza assessora da Seção de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Juliana Amato, caso marido e mulher caiam no mesmo corpo, um dos nomes deve ser descartado. "É natural que pessoas da mesma família façam escolhas parecidas", explica.

A qualificação do corpo de jurados
A falta de conhecimento técnico prejudica o julgamento do caso. Essa é uma das maiores críticas feitas ao sistema de escolha de júri, mas que não procede, de acordo com a defensora pública do 1º Tribunal de Júri da São Paulo e doutora em Processo Penal Juliana Belloque. "A tendência é que o juiz técnico julgue mais o caso do que o homem", ao passo que a percepção de pessoas vindas de histórias diferentes contribuiria para uma visão global da situação. "Nesse momento de decidir crimes contra a vida, é essencial para o julgamento que existam outras sensibilidades e pessoas com a cabeça aberta", explica. Além do mais, ela recorda que o juiz singular também não possui a verdade absoluta sobre o caso. "As provas, por exemplo, são relativas."

Já para o criminalista Thiago Anastácio, muitas vezes o "jurado julga de orelhada". Isso se deve menos à ausência de qualificação e mais à estrutura do Judiciário. "Eles chegam à sessão e tentam entender o que está sendo julgado, mas não conseguem, porque ninguém contextualizou nada. Seria necessário, por exemplo, investir na informatização." Ele conta que na Inglaterra, por exemplo, cada jurado tem um monitor no qual informações sobre o processo podem ser acessadas. Eles poderiam ser intimados e já receber, pela internet, um arquivo com os pontos mais importantes do processo, como peças e provas. Para o criminalista, o maior problema está na relação do júri com o processo. "É perigoso que os jurados cheguem com preconceitos. O crime é um fenômeno social e não pode ser julgado por meio de achismos", explica.

O advogado lembra ainda que os cidadãos podem votar para os cargos do Executivo, mas o mesmo não acontece com o Judiciário. "O povo não deu o poder ao Judiciário. O júri permite incluir a sociedade nas questões. Esse é o único momento em que o cidadão tem poder de influir no Judiciário. De resto, as pessoas só entram no fórum depois das 13 horas", critica.

O advogado Fábio Tofic Simatob, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, por sua vez, também critica o juiz togado que está fora da realidade social. "O juiz pode virar refém de suas próprias convicções. Apesar da jurisprudência existir, o entendimento do que é justo para um pode não ser para o outro. E, por causa de um dever de coerência de foro íntimo, ele pode virar autômato. Já o jurado está aberto para captar a complexidade da causa", opina. "É melhor também que o destino do réu seja decidido por sete pessoas, e não por um juiz singular. O julgamento do júri é denso e profundo, capaz de fazer a individualização do caso como nenhuma outra instituição jurídica", acrescenta.

Ele lembra que o caminho até o salão do júri pressupõe a análise do caso por diversos juízes togados. Questões específicas são analisadas em uma audiência preliminar, as provas são analisadas, laudos e testemunhos apresentados. "As questões jurídicas mais importantes são trazidas pelas partes antes do julgamento", conta.

O penalista Roberto Garcia, professor do GV Law, chama atenção para um ponto que poderia comprometer a absolvição ou condenação do réu: a inteligência social do brasileiro. "No Brasil, o jurado não tem uma formação cultural voltada ao respeito às garantias fundamentais. As pessoas pensam que as garantias fundamentais são voltadas àqueles que menos precisam, quando, na verdade, os que mais precisam são justamente o que chegam ao júri. Esse é um valor democrático a ser cultivado." Nos Estados Unidos, há a presunção de inocência e, na hipótese de dúvida acerca dos acontecimentos, leva-se em conta o in dubio pro reo. O júri brasileiro, por sua vez, parte da premissa de que o réu é culpado. É da mesma concepção Thiago Anastácio: "direitos não são privilégios", comenta.

A densidade do julgamento
Vira-e-mexe, o júri é tema de filmes, como em O Júri (Gary Fleder, 2003). Thiago Anastácio conta que a realidade é diferente das telonas. "O júri é o momento da Justiça brasileira onde mais se notam suas contradições e deficiências", revela. Com julgamentos durando horas a fio, chegando a dias, problemas como falta de funcionários e estrutura precária recebem holofotes. A começar pela própria legislação, como aponta o advogado. "A lei não é feita por profissionais do júri, mas sim pela academia", conta. A escassez de profissionais é outro problema. "A busca pela celeridade — e não pela qualidade — põe em risco o direito de defesa do cidadão. Estar sendo acusado só significa uma coisa: estar sendo acusado."

A antropóloga Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer dedicou sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo ao júri. Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri ritual lúdico e teatralizado analisa, do ponto de vista etnológico, sessões de julgamento de homicídio realizadas de 1997 a 2001 nos cinco Tribunais do Júri paulistanos.

Ela escreve que "o caráter estético do Júri, sua intensidade, fascínio e excitação residem na construção de julgamentos a respeito das circunstâncias que tornam o uso desse poder legítimo ou ilegítimo. Dependendo de como as mortes são contadas e imaginadas — transformadas em imagens a serem julgadas —, possíveis usos do poder de matar são socialmente legitimados ou não. Portanto, captar quais valores e motivações estruturam a legitimação desses usos é perceber como os participantes do júri regulam não as mortes ocorridas, mas o andamento de suas próprias vidas".

Dada a intensidade das sessões, críticos atacam recursos empregados nesse tipo de julgamento, como a retórica e a encenação de fatos. Thiago Anastácio é categórico: "Não há teatralidade no júri. Quem diz isso nunca assistiu a um julgamento". A juíza Juliana Amato conta o que faz quando as partes se excedem: "Eu procuro a justa medida entre interferir demais e não interferir. A figura do juiz é importante porque, se os jurados percebem certa parcialidade, eles são influenciados".

Tofic também não concorda com a crítica. "As pessoas são capacitadas na arte de falar. No entanto, a retórica está presente nas duas partes." Ele conta ainda que a decisão dos jurados não fica à revelia da verdade. "O julgamento é suscetível de ser anulado. Aliás, isso acontece com mais frequência do que deveria, como anular porque o veredicto não era de concordância do magistrado."

Para Vicente Cascione, as alegações de que a sistemática do júri envolve forte teatralidade não procedem. "O excesso", opina, "não está no júri, está nas pessoas que atuam ao longo do processo".

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