Ato infracional

Traficantes se valem de menores para vender drogas

Autor

  • Francisco Sannini Neto

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pós-graduado com especialização em Direito Público professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo professor da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo professor do Damásio Educacional e do QConcursos e delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

23 de outubro de 2010, 7h00

O Estatuto da Criança e do Adolescente nasceu em 1990 com o objetivo de atender ao mandado expresso no artigo 227 da Constituição da República que dispõe, de um modo geral, sobre a proteção à criança e ao adolescente.

A Constituição afirma no artigo adrede mencionado que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, à alimentação, à dignidade, ao lazer, à profissionalização, à cultura e ao respeito. Assim, foi elaborada a Lei 8.069/90 para atender de uma forma mais especializada as necessidades dos menores de idade, que constituem o futuro e a esperança de qualquer nação.

Levando em conta a importância da criança e do adolescente para o Estado, o legislador constituinte optou por cuidar, ele próprio, de alguns pontos relevantes no que tange a esse assunto. Salta aos olhos, por exemplo, o parágrafo 4º do artigo 227 da Constituição da República que traz em seu conteúdo um mandado expresso de criminalização para se punir severamente o abuso, a violência e a exploração sexual dos menores de idade.

Sobre esse assunto, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves nos ensina que “os mandados expressos de criminalização trazem decisões constitucionais sobre a maneira como deverão ser protegidos direitos fundamentais. A atuação do legislador no sentido de promover a proteção desses direitos recebe um elemento de vinculação. Ele pode até valer-se de outros instrumentos, mas a previsão de sanções penais perde seu caráter de subsidiariedade e torna-se obrigatória. Ordens diretas que são ao legislador para que atenda ao comando constitucional, a necessidade da edição de lei é questão de supremacia do Constituição.”[1]

Em obediência a este mandado expresso de criminalização, foram criados, entre outros, os seguintes tipos penais: artigo 217-A (estupro de vulnerável), caput; artigos 218, 218-A (satisfação da lascívia mediante presença de criança ou adolescente) e 218-B (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável), todos do Código Penal; e artigo 244-B (corrupção de menores) do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.

Da mesma forma, o poder constituinte originário também estabeleceu no artigo 228 da Constituição da República a inimputabilidade dos menores de dezoito anos, sendo estes sujeitos às normas da legislação especial.

Diante desses dois exemplos, já podemos enxergar com clareza a importância que o legislador constituinte deu para todos os assuntos que envolvem os menores de idade.

Assim, foi com esse espírito que foi criado em 1990 o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por meio deste estatuto protetor, o menor torna-se sujeito de muitos direitos que não lhe eram conferidos anteriormente, salientando que a proteção dada pela lei deve abranger todas as suas necessidades, propiciando o desenvolvimento de sua personalidade de maneira digna.

Menor de Idade e Atos Infracionais

Conforme mencionamos alhures, o artigo 228 da Constituição da República estabelece que os menores de dezoito anos são inimputáveis, não podendo se submeter às penas previstas no Código Penal. Dessa forma, o menor de idade não comete crime, mas ato infracional, estando sujeito às medidas sócio-educativas previstas no artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

É mister salientar que, de acordo com o artigo 2° do Estatuto, considera-se criança a pessoa com até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade. Assim, somente o adolescente pratica ato infracional e fica sujeito às medidas sócio-educativas. A criança, por outro lado, pratica desvio de conduta e se sujeita apenas às medidas previstas no artigo 101 do Estatuto (ex: encaminhamento aos pais ou responsáveis mediante termo de responsabilidade, orientação, apoio e acompanhamento temporários etc.)

Entre as medidas sócio-educativas do artigo 112, a mais grave é a que prevê a internação do adolescente infrator em estabelecimento educacional. A referida medida tem caráter excepcional e de brevidade, uma vez que restringe a liberdade do menor. O artigo 121 do estatuto protetor da criança e do adolescente dispõe, inclusive, que a internação não poderá exceder o prazo máximo de três anos, sendo compulsória a liberação do menor que completar vinte e um anos de idade.

Aqui chegamos ao ponto principal deste estudo, que é, justamente, a análise de atos infracionais sujeitos à medida sócio-educativa de internação, mais especificamente nos casos em que o menor é detido em situação de flagrância de tráfico de drogas.

Primeiramente, devemos atentar para o fato de que o menor surpreendido na prática de uma conduta prevista como criminosa não é preso, mas apreendido. Isso, pois, conforme salientamos anteriormente, o menor de idade não comete crime, mas ato infracional.

O artigo 172 do Estatuto prevê que o adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será imediatamente encaminhado para a autoridade policial competente. A autoridade a que se refere o artigo é o Delegado de Polícia que, ao tomar ciência dos fatos, deve deliberar de acordo com sua convicção jurídica, atuando como um operador do Direito e garantidor dos direitos fundamentais do menor envolvido no caso.

Já o artigo 173 do Estatuto estabelece que, em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa, cabe a Autoridade Policial lavrar, após ouvir todos os envolvidos e formar a sua convicção, o auto de apreensão em desfavor do menor, bem como tomar todas as medidas cabíveis para comprovação da materialidade e autoria da infração.

À primeira vista, fica a impressão de que o adolescente infrator somente poderá ser apreendido no caso de atos infracionais cometidos mediante violência ou grave ameaça a pessoa (ex. roubo, homicídio etc.) e, nos demais casos, o auto de apreensão seria substituído por um boletim de ocorrência circunstanciado.

Contudo, o artigo 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente deixa claro que o menor poderá ser apreendido, outrossim, em virtude da gravidade do ato infracional praticado ou nos casos em que haja repercussão social, sendo esta medida tomada pela Autoridade Policial para garantir a segurança pessoal do próprio menor ou para manter a ordem pública. Senão, vejamos:

Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.

Diante deste artigo, o Delegado de Polícia, operador do Direito e garantidor dos Direitos fundamentais na fase pré-processual, analisa o caso que lhe é apresentado e opta, de acordo com seu convencimento, pela apreensão ou não do adolescente infrator, tendo como base uma interpretação a contrario sensu da parte final do texto legal em enfoque.

Com relação especificamente ao crime de tráfico de drogas, objeto principal deste estudo, não podemos olvidar que se trata de um crime erigido à categoria de infração hedionda devido à gravidade do fato e também da repugnância social que este comportamento acaba gerando. Ademais, devemos ressaltar que a degradação causada pela droga ilícita não se limita ao mero usuário que, na maioria das vezes, figura apenas como uma vítima dos traficantes de drogas, os quais, na verdade, atuam como os verdadeiros responsáveis pela destruição de inúmeras vidas inocentes.

Assim, a retirada do menor infrator do convívio com outros traficantes por meio de sua apreensão constitui medida adequada, até mesmo para a proteção do próprio menor que, ao se afastar dos reais criminosos, tem uma chance de se recuperar e abandonar a vida do crime.

Sobre os crimes hediondos e sua repercussão social, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves conclui que tais crimes “foram incluídos ao lado de outras condutas que têm em comum o desafio ao Estado Democrático de Direito a à ordenação social dele advinda. Eles são aqueles que repercutem intensamente na vida social, para além da objetividade jurídica diretamente tutelada, pondo em questão a capacidade de prevenção e repressão desta ordenação estatal. São crimes nos quais a reiteração e eventual impunidade têm efeito social desagregador e criminógeno, desfavorecendo intensamente o império de lei.”[2]

Comprovando os ensinamentos do supracitado professor, devemos lembrar que os traficantes de drogas têm se valido constantemente de menores de idade para efetuar o comércio de entorpecentes, contando, justamente, com a impunidade que a lei teoricamente fornece aos adolescentes infratores.

Para comprovar esse fato, basta uma breve análise do dia-a-dia de um distrito policial. O Delegado de Polícia depara-se constantemente com casos em que adolescentes estão envolvidos com o tráfico de drogas. Há menores infratores que antes mesmo de completarem dezoito anos de idade, já possuem diversas passagens por um plantão policial, sendo que a impunidade os leva a fazer do tráfico de drogas um meio de vida.

Alguns infratores chegam até a rir dos policiais envolvidos na ocorrência, pois sabem que, na maioria dos casos, vão sair da Delegacia de mãos dadas com os pais. Sendo assim, é impossível negar a repercussão social gerada nesses casos, uma vez que a impunidade do menor infrator acaba servindo de estímulo para a prática do crime, fortalecendo ainda mais o comércio das drogas.

Se não bastasse esse argumento da repercussão social do fato para fundamentar a apreensão dos menores envolvidos no tráfico de drogas, é curial salientar que o artigo 174 do estatuto também permite a apreensão do menor de acordo com a gravidade do ato infracional praticado. Assim, Roberto João Elias ensina que “no que tange a gravidade do ato infracional, o melhor meio de efetuar sua identificação é verificar, no Código Penal, nos delitos catalogados, aqueles que são passíveis de pena de reclusão e os que têm uma maior dosagem penal.”[3]

Ora, em se tratando de crime equiparado a hediondo, como é o caso do tráfico de drogas, não restam dúvidas sobre a gravidade do ato infracional, já que aqueles são os crimes mais graves previstos na legislação pátria. Da mesma forma, outros crimes punidos com pena de reclusão poderão dar ensejo à apreensão do menor pelo Delegado de Polícia, como, por exemplo, no crime de porte de arma de fogo.

Em conclusão, podemos afirmar que cabe à Autoridade de Polícia Judiciária analisar a situação que lhe é apresentada e decidir, de acordo com sua convicção e respaldado na lei, se é caso de apreensão ou não do adolescente infrator. Caso opte pela apreensão do menor surpreendido na prática de ato infracional que não envolva violência ou grave ameaça a pessoa, como no crime de tráfico de drogas, por exemplo, tal decisão — que deverá ser sempre fundamentada — terá apoio numa interpretação a contrario sensu da parte final do artigo 174 do Estatuto da Criança e do Adolescente, sempre que se verificar a gravidade do ato ou sua repercussão social.

Agindo dessa forma, o Delegado de Polícia atua como um guardião dos interesses do menor, zelando pela sua segurança e propiciando o melhor para o seu desenvolvimento digno, o que está absolutamente de acordo com o previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição da República.

BIBILIOGRAFIA

ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4. ed. São Paulo: Saraiva. 2010.

GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2007.


[1] GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. p.139.

[2] GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. p.226.

[3] ELIAS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Pag. 237

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