Publicidade dos autos

CNJ deve impedir processos em sites de busca

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22 de outubro de 2010, 17h38

Quando já iniciado o paulatino esfacelamento do Império Romano, Constantino notou os malefícios do segredo para a administração da Justiça. Para tentar resolver os incontáveis casos de corrupção e outras maneiras de abuso na prestação jurisdicional, tornou novamente público o processo, de maneira a permitir o controle externo dos atos judiciais pela população.[1]

A atual opção nos Estados Democráticos de Direito pela publicidade dos atos processuais como regra, como se vê, não é aleatória. Decorre do desenvolvimento das práticas judiciárias que se deram em milênios de amadurecimento das civilizações.

Mas é exatamente esse desenvolvimento que nos faz, a cada novo invento, a cada nova prática massificada dos povos que vivem em comunidade, repensar algumas posturas. É o caso da internet: o crescente número de tribunais digitais e de processos eletrônicos – mesmo que a rede mundial de computadores já faça parte, há tempos, da atuação dos operadores do direito – exige a urgente rediscussão dos limites da publicidade na world wide web.

O acompanhamento eletrônico de processos está cada vez mais confiável e preciso e já é possível consultar os autos sem se deslocar até o respectivo cartório/secretaria. Da mesma forma, a pesquisa de jurisprudência pode hoje ser realizada de forma eficiente e ampla através da consulta aos bancos de acórdãos disponibilizados nos sites dos Tribunais. Isso, sem dúvida alguma, é bom. Mas a sistemática, da forma como está posta, apresenta sérios e graves defeitos.

Infelizmente tem se tornado comum a seguinte e estigmatizante situação: Joãozinho, que conheceu Mariazinha e a achou muito interessante, resolveu digitar o nome da moça no Google, conhecido site de busca. Surgiram, em menos de meio segundo, 70 resultados. O primeiro deles não deixou o pretendente tão entusiasmado: constava “[PDF]Matéria Criminal”. Ao clicar, o curioso rapaz foi direcionado imediatamente para a página do Supremo Tribunal Federal – a qual, por ser desapegado de notícias do Judiciário (Joãozinho é médico), nunca na vida tinha acessado.

Ali, Joãozinho teve acesso à cópia integral de um agravo de instrumento criminal. Não só a petição do advogado de Mariazinha, a acusada agravante, como também cópia da denúncia, do interrogatório, das oitivas das testemunhas, da sentença, dos recursos e contrarrazões, do acórdão… Tudo ali. Embora não fosse por isso que Joãozinho procurava, ficou atordoado quando percebeu que, 10 anos antes, Mariazinha, segundo o que consta daquele documento chamado denúncia, e também daquela sentença e do tal do acórdão, teria praticado aborto. Foi condenada pelo Júri!!!

Joãozinho nem quis ler os inúmeros artigos que Mariazinha, arquiteta, publicou em revistas especializadas, e que constavam dos outros resultados da pesquisa no Google. Deixou, inclusive, de ver que ela fora premiada num concurso de arquitetura internacional. O fato de ela ser “uma criminosa” (um processo no Supremo, onde já se viu!!!) já lhe embrulhou suficientemente o estômago e fez o seu interesse rapidamente desaparecer. Nunca mais se falaram.

A paródia, evidentemente, é fictícia, mas, infelizmente, pode acontecer de verdade.

Os sites de busca da internet viabilizam o acesso às bases de dados dos Tribunais. A partir disso, com um clique, mesmo alguém que não procura saber se determinada pessoa é ou não processada criminalmente tem jogada na sua cara a informação estigmatizante. Dali, basta pressionar mais uma vez o mouse para ter acesso, se não à ação penal inteira, a grande parte dela, em formato PDF.

Isso precisa ser revisto. Precisa de controle e restrição.

Antes da informatização do Judiciário, para saber se alguém tinha pendências criminais, era preciso requisitar uma certidão de antecedentes. Isso requeria – e em alguns Estados ainda requer – o comparecimento a determinado órgão público, pagamento de taxa específica e apresentação de diversas informações da pessoa cujas informações se deseja. Sem entrar na tortuosa discussão acerca dos dados necessários para a realização da pesquisa, e tampouco no que poderia aparecer no resultado dela (Inquéritos policiais em andamento? Inquéritos policiais já arquivados? Ações penais sem trânsito em julgado? Condenações já cumpridas?), fato é que o interessado precisava se locomover ou contratar alguém para que essa pesquisa fosse feita num local específico, com essa finalidade.

Com os sites de busca, a coisa mudou: a pessoa, muitas vezes, não procura por essa informação de cunho criminal (não vai ao site do Tribunal, como iria pessoalmente a um local específico, a Corte, antes da informatização); ela quer saber qualquer outra coisa (curriculum lattes, artigos publicados, blog ou site pessoal, perfil no Orkut, Facebook etc.), mas acaba se defrontando com uma informação que, até então, em nada lhe interessava e não era motivo, por isso, de sua preocupação.

Não estamos falando de documentos protegidos legalmente pelo sigilo, que o Judiciário, bem ou mal, protege. Estes, é incontroverso, só devem ser acessados pelas partes. O objeto de discussão é o processo comum, público e corriqueiro, que na maioria das vezes nem sequer faz notícia, mas cuja existência é reconhecidamente estigmatizante e coercitiva.

É preciso encontrar solução que não fira a regra da publicidade processual, mas que ao mesmo tempo evite essa descoberta fortuita do processo criminal por quem não o procura. Quem o procura, que o faça no local específico (no Tribunal, pessoalmente, ou mesmo via site). O que não pode ocorrer é que isto seja disponibilizado nos sites de busca, como se fossem informações quaisquer.

Em boa hora o Conselho Nacional de Justiça percebeu que a internet é muito maior do que os sites da Justiça e aprovou, no último dia 5 de outubro, a Resolução 121, que antes foi submetida à consulta pública, tratando sobre “a divulgação de dados processuais eletrônicos na rede mundial de computadores”.

Em seus “considerandos”, aborda o relicário de princípios e garantias constitucionais atrelados ao tema da publicidade, a começar pelos artigos 5º, LX[2]; XXXIII[3]; e artigo 93, IX[4]. Passa também pela proteção do direito à imagem, honra e privacidade (artigo 5º, X). Ao final, aponta corretamente o risco de “estigmatização das partes pela disponibilização na rede mundial de computadores de dados concernentes aos processos judiciais que figuram como autoras ou rés em ações criminais, cíveis ou trabalhistas”.

A Resolução reconhece a necessidade, cada vez mais premente, de adotar e consolidar um padrão de publicidade das informações judiciais. O que, por si só, já representa um avanço. Para tanto apresenta medidas, a priori, simples, mas que têm a difícil função de traçar a linha que restringe o direito cada vez mais voraz por informações.

O CNJ, então, coloca em pauta a questão de cadastramento para acesso às informações, que não deve ser exigido para acessar dados básicos do processo (os elencados na Resolução são (i) número, classe e assunto; (ii) nome das partes e advogados; (iii) movimentação processual; e (iv) inteiro teor das decisões). Ao mesmo tempo, propõe a exigência do cadastro para possibilitar o acesso às peças dos autos, “desde que demonstrado o interesse, para fins, apenas, de registro” e com registro de “cada acesso”, salvo nos casos em que decretado o segredo de justiça.

Ocorre que o “inteiro teor das decisões” já é capaz de revelar uma enorme quantidade de informações sobre a causa, e como tal não deve ser alcançável diretamente a partir dos mecanismos de busca! Assim, para que produza resultado concreto de proteção à intimidade, este primeiro filtro sugerido deve funcionar em conjunto com outro limitador também proposto, ainda que de forma parcial, na Resolução: no âmbito penal os dados disponíveis somente devem ser acessados mediante pesquisa ao número do processo, impedindo-se que a mera busca por nomes no varejo resulte no conhecimento quase fortuito da situação processual do pesquisado.

Mas a Resolução aprovada pelo CNJ prevê que a consulta por nome somente seja vedada após o trânsito em julgado da decisão absolutória, da extinção da punibilidade ou do cumprimento da pena.[5] A nosso ver melhor seria adotar-se a vedação como regra, conforme preconiza, aliás, o artigo seguinte da Resolução, com a duvidosa ressalva do “quando possível”: “A disponibilização de consultas às bases de decisões judiciais impedirá, quando possível, que buscas por nomes de partes resultem em respostas dos sistemas.

Caso contrário, da maneira como restou decidida a questão no CNJ, o caso de Joãozinho e Mariazinha ainda se repetirá infinitas vezes.

Essas são apenas sugestões iniciais. Importa agora aprofundar o debate em torno do tema. Não se trata de exigir que o Judiciário censure a internet, ferindo de morte o princípio da publicidade e o direito à informação, mas sim de refletir sobre quais informações podem ser disponibilizadas para os sites de busca sem custar ao cidadão seu justo direito à intimidade e à honra.

Adotar tais medidas e cuidados pode transformar-se em verdadeira revolução, uma nova ética de digitalização processual. Pois, tudo somado, vê-se que para dizer que caminhamos para frente não podemos esquecer pelo caminho tantas outras conquistas de tempos passados.


[1] TUCCI, José Rogério Cruz; AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: RT, 1996, p. 147-161.

[2] “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse público o exigirem”

[3] “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”

[4] “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”

[5] Artigo 4º, parágrafo 1º, I.

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