O trabalho e o advogado

O Direito está em processo de construção

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19 de outubro de 2010, 11h18

Ao longo do período homérico e nos primeiros tempos do período arcaico vigorava, na sociedade grega, um direito cujas leis (costumes) teriam sido reveladas pelos deuses aos antepassados. Homero fala desse direito quando diz que Zeus dava aos senhores patriarcais “cetro e themis”. Themis significa “lei”. Os senhores patriarcais julgavam de acordo com essa lei (direito consuetudinário) e, nos casos não previstos, conforme o seu próprio saber (Jaeger, 1995: 134). Themis é um direito que antecedeu ao da polis, portanto, um direito cujas regras foram estabelecidas para legitimar o poder dos senhores patriarcais sobre a família (oikos) e a comunidade local (demos).

Oikos é o espaço privado onde predomina as relações familiares. Essas relações são assimétricas (desiguais) porque fundadas na diferença. No oikos, o senhor manda e os demais obedecem. A atividade que se desenvolve no espaço privado é o trabalho ou labor, que consiste na produção ininterrupta de bens de consumo necessários à subsistência, portanto, na esfera privada, o fator que rege a conduta das pessoas são as necessidades da vida e a preocupação com a sua preservação.

Demos é a porção de um território habitado por famílias que formam uma comunidade. A organização política das comunidades gregas era bastante simples. Os chefes das famílias mais prósperas (aristocráticas) controlavam a comunidade local (demos) conforme regras que eles próprios estabeleciam e, dessa maneira, mantinham a autonomia e independência do demos em relação a qualquer controle central.

Nos primórdios do período homérico todos tinham que trabalhar, inclusive o senhor, por isso o trabalho não era considerado humilhante. Homero relata que Ulisses gabava-se de não ser superado no trabalho de colher e plantar, e de que podia construir um navio e a sua própria cama, adornando-a com atraentes decorações. Mais tarde, com o aumento dos meeiros, arrendatários e escravos, os senhores aristocratas passaram a considerar o trabalho opressivo e degradante, uma atividade que não dignificava o homem. Estabeleceu-se a partir de então uma diferença radical entre famílias aristocráticas (liberadas do trabalho) e demais famílias (vinculadas ao trabalho).

Liberados do trabalho, os senhores aristocratas assumem, no interior da comunidade (demos), o poder político, econômico, religioso e jurídico. Hesíodo, em meados do século VIII, faz duras críticas aos aristocratas de sua própria comunidade, que arbitram as disputas do povo da região e aceitam suborno para favorecer uma das partes. No poema Os Trabalhos e os Dias denominam esses árbitros de “devoradores de presentes”.

Hesíodo não era de família aristocrática, era um simples lavrador. Na sua época, leis desiguais regulamentavam a propriedade: enquanto sobre a propriedade das famílias aristocráticas incidia um regime jurídico proibitivo da alienação e da partilha, mantendo fortalecido o poder aristocrático, divisões contínuas fragmentavam a pequena propriedade, com possibilidade de escravização dos pequenos lavradores em tempos de crise. O patrimônio da aristocracia era indiviso porque apenas o primogênito herdava, o das famílias comuns era submetido à partilha. Hesíodo escreve o poema para denunciar a venalidade dos senhores que arbitram essas partilhas, e o faz movido por uma disputa judicial com o seu irmão Perses.

Para Jaeger (1995: 87), o tema exterior do poema é o processo iniciado por Perses, sujeito invejoso, impaciente e preguiçoso, que, depois de ter dilapidado a sua parte da herança paterna, insiste em novos pleitos e reclamações. Da primeira vez conquistou a boa vontade do juiz por meio de suborno e levou vantagem na partilha dos bens. Esse fato motivou Hesíodo a denominar os juizes de “devoradores de presentes”, senhores aristocráticos que aceitam subornos para proferir sentenças distorcidas. Com isso aponta a ambição e o abuso do poder por parte da aristocracia fundiária. A luta entre a força e o direito que se manifesta no processo não é, evidentemente, um assunto meramente pessoal do poeta. Hesíodo enxerga mais longe, percebe a insatisfação das classes desfavorecidas e expressa essa insatisfação através do seu poema.

Hesíodo clama por uma ordem justa e igualitária. Para ele, os males que atingem a comunidade é uma punição divina em razão das injustiças praticadas pelos homens. Por isso faz sérias advertências sobre os perigos da injustiça e suas conseqüências desastrosas. Ele acredita que a justiça divina não permitirá que o mal triunfe sobre o bem. Assistindo à momentânea vitória da injustiça, o poeta crê na intervenção de Zeus a favor da justiça:

“Agora que então nem eu próprio seja um justo entre os homens, nem o meu filho, pois que é mal ser um homem justo se o que é mais injusto tem maior justiça. Mas eu ainda não creio que Zeus de sábios conselhos há de permitir isso” (Erga v. 270-273 in Barros 1999: 42).

Hesíodo enxerga o seu mundo como um universo confuso que aponta para uma perspectiva aterradora de uma vida humana em que a injustiça teria triunfado totalmente, um mundo ao avesso e em que subsistiriam apenas desordem e desgraças. Essa reflexão sobre a condição humana e a esperança na intervenção divina, revela sua fé inabalável na justiça que, vinda dos deuses, haverá de por fim à desordem e à violência. Acredita que, da mesma forma que a injustiça prejudica o cidadão e a comunidade, a obediência à justiça não beneficia apenas o indivíduo, mas a comunidade toda. Por isso, os seus versos expressam que onde não há justiça os homens vivem como feras, uns devorando os outros; somente a justiça seria capaz de propiciar uma vida melhor:

“Pois o filho de Cronos estabeleceu esta lei para os homens: os peixes, as feras, as aves aladas, que se devorem uns aos outros, pois não há justiça no meio deles; aos homens, porém, deu a justiça, que é muito melhor” (Erga v, 276-280 in Barros, 1999: 50).

Hesíodo elege o trabalho e a justiça como valores básicos da areté (virtude) do homem simples e trabalhador, aquele que não é aristocrata e tem sua expressão numa posse moderada de bens. O trabalho é celebrado como o único caminho, ainda que difícil, para alcançar a virtude. O poema descreve a vida dos homens do campo e constrói, com base no mundo do trabalho, a idéia do direito como fundamento da vida social. Para conferir sentido à sua proposta de justiça, apresenta uma descrição do seu mundo, especialmente a vida dos pequenos agricultores. Com isso revela uma esfera social totalmente diversa da do mundo dos heróis e da nobreza aristocrática exposta nos poemas de Homero. Para Hesíodo, a vida dos pequenos agricultores consiste em trabalhar, motivo pelo qual confere ao trabalho um valor inestimável, tanto que o título Os Trabalhos e os Dias, dado pela posterioridade ao seu poema Erga, exprime isso perfeitamente.

No poema os heróis não são os guerreiros (como Aquiles, Ulisses ou Atlas), são os trabalhadores do campo, que não conhecem a fartura dos festins aristocráticos. Hesíodo mostra a miséria desses camponeses que, embora mal vestidos e mal alimentados, lavram a terra, fazem do trabalho uma virtude. O heroísmo, portanto, também se manifesta na luta silenciosa e diária para produzir bens e alimentos e isso exige disciplina, dedicação e paciência, qualidades que conferem valor ao trabalho.

Hesíodo vê a sua época (idade de ferro) como um mundo confuso e ambíguo, definido pela coexistência dos seus contrários; nele todo bem tem o seu mal em contrapartida. É um mundo em que coexistem lado a lado, mas que se opõem, o direito e a força, os pequenos e os grandes, os lavradores e os aristocratas. Justiça (diké) e injustiça (hybris), presentes lado a lado, oferecem ao homem duas opções igualmente possíveis entre as quais lhe é necessário escolher. Por isso, procura convencer seu irmão de que Zeus ampara a justiça, ainda que os juizes locais a espezinhem. Assim, estabelece a luta pelos direitos contra as usurpações e as venalidades dos árbitros que decidem as disputas jurídicas.

Para Hesíodo, o trabalho é uma necessidade, e quem por meio dele provê sua subsistência recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça injustamente os bens alheios. Dirigindo-se a Perses, procura inculcar no irmão os princípios que dão ao trabalho o mais alto valor:


“Procura um prazer justo, dando-te ao trabalho numa medida equilibrada. Os teus celeiros se encherão, assim, com as provisões que cada ano te proporcionar. O trabalho não é vergonhoso; a ociosidade, sim, essa o é. Se labutares, o ocioso te respeitará pelos teus ganhos, aos quais se seguem respeito e consideração. O trabalho é a única coisa justa na tua condição; basta desviares a atenção da cobiça dos bens alheios e dirigi-la para o teu próprio trabalho, cuidando de o manter, como te aconselho” (in Jaeger, 1995: 101-102).

Para Vernant (1977: 11), o poema aponta dois tipos de existência humana rigorosamente opostos: de um lado diké (justiça) e, do outro, apenas hybris (injustiça). Daí o ensinamento dirigido a Perses – pratique a justiça -, mas que vale também para os senhores aristocratas, aqueles cuja função é decidir os conflitos por arbitragem.

Segundo Jaeger (1995: 135), a palavra diké é originária da linguagem processual antiga. No processo antigo, diz-se que as partes contenciosas dão e recebem diké. O culpado dá diké, uma reparação, indenização ou compensação. O lesado, cujo direito é reconhecido pelo julgamento, recebe diké e o juiz reparte diké. Assim, diké significa, ao mesmo tempo, o processo, a decisão e a reparação. O significado evolui no sentido de expressar o princípio que garante essa exigência e no qual se pode apoiar quem for prejudicado pela hybris.

Hybris é a ação contrária ao direito, é tudo que ultrapassa a medida, a desmedida, o excesso, o desenfreado. Nas pessoas, hybris provoca insolência, soberba, intolerância, impiedade e presunção. A oposição diké-hybris constitui o tema central do mito das raças narrado por Hesíodo.

Hesíodo relata o mito de Prometeu, o de Pandora e o das raças. Segundo Vernant (1973: 11-35), a análise estrutural desses mitos mostra o seguinte:

A. Mito de Prometeu: Zeus, para vingar o roubo do fogo divino realizado por Prometeu, oculta aos homens os meios de vida, ou seja, a forma de produzir em um único dia alimentos para o ano inteiro. A partir de então os seres humanos são destinados a trabalhar todos os dias para produzir alimentos; devem aceitar essa dura lei divina e não poupar esforço nem fadiga.

B. Mito de Pandora: Narra o aparecimento dos males no mundo. Zeus, como castigo pela ação de Prometeu (roubo do fogo divino), cria a primeira mulher, a astuta Pandora, mãe de todo o gênero humano. Da caixa de Pandora saíram os males que atingem a humanidade.

C. Mito das Raças: Hesíodo tira desse mito um ensinamento que é repassado a seu irmão e aos aristocratas da época e que se resume na seguinte fórmula: escuta a justiça (diké), não deixes aumentar a desmedida (hybris).

O mito das raças conta a história de cinco raças de homens (raça de ouro, de prata, de bronze, dos heróis, de ferro), sendo que cada raça aparece e depois desaparece em determinado período ou idade do mundo (idade do ouro, da prata, do bronze, dos heróis, do ferro). A história começa com os tempos dourados (idade do ouro) até chegar, em linha descendente, aos duros tempos da idade do ferro, quando ocorre a subversão total do direito. O mito contrapõe a um mundo divino (idade do ouro), em que a ordem é imutável, um mundo humano (idade do ferro) no qual a desordem se instala e a injustiça prevalece.

A história da antiga idade do ouro e da degenerescência cada vez maior dos tempos subseqüentes procura mostrar que os homens eram originariamente melhores e viviam sem trabalho nem dor. Na idade do ferro, em que o poeta lamenta ser forçado a viver, domina apenas o direito do mais forte e nela só prosperam malfeitores e corruptos. Esse quadro de uma humanidade destinada a uma queda fatal e irreversível provocada pelas ações humanas deveria ser apropriado para convencer os pequenos agricultores e os nobres aristocratas, sobre as virtudes da diké e os perigos da hybris.

Da idade do ouro para a idade da prata, a decadência ocorre no momento em que o homem se esquece que é descendente de Zeus, e, sem temer os deuses, trai a função que seu cetro simboliza ao se afastar dos caminhos da justiça e se entregar à corrupção. Na idade da prata o homem abandona todos os sentimentos religiosos, jurídicos e morais e se deixa dominar pela louca desmedida. Sob o domínio da injustiça, a comunidade conhece apenas calamidade, destruição e fome.

Os homens da raça de prata são, assim, inferiores aos da raça de ouro, inferioridade que repousa em uma desmedida (hybris) que renega os deveres jurídicos, morais e religiosos, motivo pelo qual Zeus a aniquila como castigo pela sua impiedade.

Após a raça de prata surge a raça de bronze, constituída por guerreiros e dominada por uma hybris exclusivamente militar. Hesíodo passa do plano jurídico-religioso ao das manifestações da violência, da força bruta e do terror que o guerreiro inspira. Os homens da raça de bronze não são aniquilados por Zeus, mas sucumbem à guerra, uns sob os golpes dos outros. Esses guerreiros não recebem nenhuma honraria, eles se perdem no anonimato da morte. A história dos homens da idade de bronze mostra que os homens não devem apelar jamais para o direito do mais forte.

Após a raça de bronze, surge a raça dos heróis que também é constituída por guerreiros. Mas, diferentemente dos homens da raça de bronze, os heróis são justos e ao mesmo tempo mais valorosos militarmente. À desmedida (hybris) do guerreiro da raça de bronze, opõe-se o guerreiro justo que, reconhecendo os seus limites, aceita submeter-se à ordem superior da justiça (diké). Pelo favor de Zeus, os heróis, guerreiros justos, são transportados para um lugar, onde levam por toda a eternidade uma vida semelhante à dos deuses.

A principal característica dos homens da raça de ferro é que eles são constrangidos a trabalhar a terra para produzir alimentos. Os homens das outras raças (ouro, prata, bronze, heróis) ignoravam o trabalho da terra e a cultura dos cereais.

A idade do ferro é também o mundo das doenças, da velhice e da morte. O mito de Prometeu e de Pandora relata a mesma história: a miséria humana na idade do ferro. O homem é compelido não apenas a se cansar no trabalho para obter alimento, mas também a ter a cada dia angústia e ao mesmo tempo esperança de um amanhã incerto. Na idade do ferro o bem e o mal estão não apenas misturados, mas solidários, indissolúveis. Da caixa de Pandora os males – fadiga, miséria, enfermidades, angústias – dispersaram-se pelo mundo, entretanto subsiste a esperança, pois a vida não é totalmente sombria e os homens encontram ainda os bens misturados aos males.

Introduzido nesse universo ambíguo – onde o bem e o mal estão misturados, a vida e a morte estão associadas -, o lavrador deve escolher entre duas atitudes. Uma é a que o incita ao trabalho, que o impele a não poupar o seu esforço a fim de se alimentar e aumentar os seus bens. Toda riqueza adquirida deve advir do trabalho dispensado em contrapartida. A lei sobre a qual repousa a idade do ferro estabelece que não há felicidade e não há riqueza que não sejam pagas por um penoso esforço de labor. Para o lavrador, respeitar Diké consiste em dedicar sua vida ao trabalho e, dessa forma, o bem poderá suprimir o mal.

A outra atitude é aquela que, desviando o agricultor do trabalho, incita-o a buscar a riqueza, não mais pelo labor, mas pela violência, pelo embuste e pela injustiça. Essa atitude gera guerras e disputas e provoca no mundo do agricultor a intervenção de um princípio que se liga ao plano da idade do bronze, a hybris guerreira. Mas o agricultor não se torna por isto um guerreiro. Sua hybris não é o ardor frenético que anima e incita ao combate os homens de bronze. A hybris do agricultor está mais próxima da hybris dos homens de prata, que se define pela ausência de todos os sentimentos morais e religiosos.

O poema visa edificar o pequeno agricultor. Perses deve renunciar à desmedida e dedicar-se ao trabalho e não proporcionar processos e más disputas. Mas essa lição de irmão a irmão, de lavrador a lavrador, concerne igualmente aos senhores aristocratas, na medida em que têm a incumbência de regulamentar as disputas, de julgar os processos de modo correto, de pronunciar sentenças justas. Hesíodo entende que a função judiciária reflete diretamente sobre o universo do agricultor, por isso fala dos juizes “comedores de presentes”, os injustos que não respeitam a justiça e que fazem da função judiciária balcão de vendas de sentenças.


A concepção de justiça arquitetada por Hesíodo tornou-se instrumento de luta contra os privilégios da aristocracia, tendo inclusive influenciado Sólon nas reformas constitucionais e legislativas implementadas em Atenas no início do século VI. Contudo, o trabalho jamais foi concebido pelos gregos como qualidade moral a constituir um dos pilares da areté (virtude), pelo contrário, o trabalho, por ser atividade executada por escravos, arrendatários e pequenos agricultores, sempre foi visto como atividade que não dignificava o homem.

A aristocracia grega concebeu a idéia segundo a qual alguns indivíduos, por herança de sangue, são melhores que outros. Com base nessa natureza superior, abandonou o trabalho a um número cada vez maior de escravos, arrendatários, meeiros e pequenos lavradores e passou a dedicar-se aos jogos de guerra, às competições esportivas, à administração dos negócios públicos.

Essa divisão de tarefas entre classes sociais explica porque o conceito de virtude (areté) formou-se, não a partir das qualidades morais dos indivíduos, mas a partir das diferenças entre eles. Jaeger (1995: 26), ao investigar a origem e o significado da expressão areté conclui que se trata de um atributo próprio da aristocracia e que nos tempos homéricos designava força e destreza dos guerreiros. Assim, tanto nos poemas de Homero quanto nos séculos posteriores, o conceito de areté foi usado não só para designar a excelência humana, como também a superioridade da nobreza aristocrática.

Homero ensinava que a excelência ou virtude (areté), nas suas manifestações supremas, era privilégio de poucos, seja por herança de sangue, seja por qualidades pessoais. Aquiles, por exemplo, busca a glória pessoal, é o herói que reúne em si todas as excelências exigidas pela areté aristocrática. A coragem do guerreiro no campo de batalha lhe confere honra pelo reconhecimento do grupo das suas habilidades e de seu mérito. A partir desse padrão, a aristocracia desenvolveu, por um lado, o desprezo pelos trabalhos manuais, que passaram a ser considerados inferiores e deformadores do corpo e, por outro lado, o enaltecimento e a valoração positiva do ócio, das competições, da administração dos negócios públicos.

Esse modelo aristocrático passou por transformações, recebeu novas configurações, porém, em nenhuma delas o trabalho foi considerado uma virtude. Na ética grega, o trabalho e o labor são atividades que não contribuem para a formação moral do cidadão. São atividades que não dignificam o homem, por isso executadas primordialmente por escravos.

Hesíodo não era de família aristocrática, era um simples homem do povo, um pequeno agricultor que empreendeu, através de sua crença no trabalho e na justiça, uma luta contra seu próprio meio. Hesíodo aparece como o primeiro a apresentar-se com a pretensão de falar publicamente à comunidade ao fazer do trabalho e da justiça temas dos seus discursos. Depois de Hesíodo, passados mais de dois mil anos, o trabalho reaparece como a principal virtude de uma moral consagrada na ética protestante.

Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, investiga a gênese do sistema capitalista nas cidades do norte dos EUA e conclui que a causa do desenvolvimento desse sistema não se deve a fatores objetivos como conquista de mercados ou avanços tecnológicos. Para Weber, a causa principal repousa em um fator subjetivo: uma ética religiosa (calvinista) que os colonos e imigrantes que povoaram aquelas cidades cultuavam como sendo uma virtude. Com outras palavras, segundo Weber, o sistema capitalista ganha impulso no norte dos EUA porque as populações foram pré-adaptadas a ele graças à ética protestante.

Os princípios morais da ética protestante – trabalho, sobriedade, espírito de vocação e obediência às leis – foram concebidos para atingir fins religiosos. Entretanto, esses princípios predispunham os puritanos a trabalhar com afinco, economizar e a assumir responsabilidade individual, o que acabou preparando-os para se tornarem capitalistas bem-sucedidos, ou seja, os meios escolhidos para conquistar a salvação trouxeram-lhes sucesso inesperado como empresários.

A ética protestante – que Weber exemplifica com trechos de discursos de Benjamin Franklin (1706-1790) – pode ser resumida em quatro deveres religiosos, motivadores da ação social e que teria exercido grande influência na gênese do espírito do capitalismo: trabalho, vocação, sobriedade e obediência à lei.

Palavras de Benjamin Franklin: “Lembra-te que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar dez xelins por dia por seu trabalho e vai passear, ou fica vadiando metade do dia, embora não dependa mais do que seis pence durante seu divertimento ou vadiação, não deve computar apenas essa despesa; gastou, na realidade, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais”. “As mais insignificantes ações que afetem o crédito de um homem devem ser consideradas. O som de teu martelo às cinco da manhã, ou às oito da noite, ouvido por um credor o fará conceder-te seis meses a mais de crédito: ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte, se te vir em uma mesa de bilhar ou escutar tua voz, em uma taverna, quando deveria estar no trabalho” (in Weber, 1974a. 184).

Segundo Weber, a ética protestante entende que Deus destinou o homem para o trabalho, por isso o trabalho é considerado, antes de tudo, a própria finalidade da vida. O trabalho aumenta a glória de Deus, de acordo com a inequívoca manifestação de Sua vontade. Nesse sentido, a perda de tempo é o primeiro e o principal de todos os pecados. Weber observa que há entre aqueles puritanos uma pregação constante e até apaixonada em prol de um trabalho duro e constante. Toda hora perdida no trabalho redunda uma perda na glorificação de Deus. O trabalho aparece como o preventivo específico contra todas as tentações. A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado de graça, motivo pelo qual a preguiça e a indolência são consideradas pecados mortais porque destruidoras da graça divina.

Observe que existe uma convergência bastante acentuada entre o Mito de Prometeu e de Pandora (furto do fogo) com o Mito de Adão e Eva (furto do fruto proibido), tendo em vista que ambos relatam o aparecimento do trabalho e dos males no mundo como resultado de uma conduta proibida pela divindade.

Palavras de Benjamin Franklin: “Se vires um homem diligente em seu trabalho, ele estará acima dos reis” (in Weber, 1974a: 187).

Há, na ética calvinista, a idéia segundo a qual a vida profissional do homem é que lhe dá uma prova de seu estado de graça, que se expressa no zelo e no método, fazendo com que consiga cumprir sua vocação. Isso significa que Deus deu a cada homem uma vocação e a vontade de Deus se realiza mais efetivamente quando o homem abraça o trabalho para o qual está vocacionado. Isto possibilita a especialização das ocupações, o aumento das habilidades e a promoção do progresso quantitativo e qualitativo na produção. É importante frisar que a aprovação de Deus (a graça) à profissão escolhida se mede pelo sucesso que a pessoa obtém na vida profissional. Esse sucesso está ligado ao dever profissional e à lucratividade individual do empreendimento. Daí a expressão “Deus abençoou os seus negócios”.

Segundo Weber, para a ética protestante, ganhar dinheiro dentro da ordem econômica moderna é, enquanto for feito legalmente, o resultado e a expressão de virtude e de eficiência em uma vocação.

Palavras de Franklin: “Lembra-te de que o dinheiro é de natureza prolífica, procriativa. O dinheiro pode gerar dinheiro e seu produto pode gerar mais, e assim por diante (…) Quanto mais houver dele, mais ele produz em cada turno, de modo que o lucro aumenta cada vez mais rapidamente (…) Aquele que mata uma porca prenhe destrói toda uma prole até a milésima geração. Aquele que desperdiça uma coroa destrói tudo o que ela poderia ter produzido, um grande número de libras (…) Guarda-te de pensar que tens tudo o que possuis e de viver de acordo com isto. Este é um erro em que caem muitos que têm crédito. Para evitá-lo, mantém um balanço de tuas despesas e receitas. Descobrirás como as mínimas e insignificantes despesas se amealham em grandes somas, e discernirás o que poderia ter sido e o que poderá ser economizado para o futuro, sem grandes inconvenientes” (in Weber, 1974a: 184).


Sobriedade significa poupança, ou seja, uma vida sem ostentação e sem consumo de luxo. Daí a demonstração da mais ampla aprovação ao sóbrio self-made man, o homem que venceu na vida pelo seu próprio esforço. O homem é apenas administrador dos bens que lhe foram conferidos pela graça de Deus, não lhe sendo dado a gastar um único centavo que não seja para a glorificação de Deus. Quanto maiores as posses, mais pesado será o sentimento de responsabilidade em conservá-las integralmente ou aumentá-las através de infatigável trabalho.

Palavras de Franklin: “Lembra-te o bom pagador é dono da bolsa alheia, aquele que é conhecido por pagar pontual e exatamente na data prometida, pode em qualquer momento levantar tanto dinheiro quanto seus amigos possam dispor”. “Nada contribui mais para um jovem subir na vida do que a pontualidade e a justiça em todos os seus negócios; portanto, nunca conserves dinheiro emprestado uma hora além do tempo prometido, senão um desapontamento fechará a bolsa de teu amigo para sempre” (in Weber, 1974a: 184).

Segundo Weber (1974b: 179), nas comunidades ascéticas protestantes a admissão à comunhão dependia de um nível ético; este, porém, se identificava com a honorabilidade nos negócios, enquanto que ninguém indagava pelo conteúdo da .

Weber (1974a: 233) anota que a ética protestante não é o ideal de um homem honesto de crédito reconhecido ou idéia de um dever de um indivíduo com relação ao aumento do seu capital, tomado como fim em si mesmo. Na verdade trata-se de uma ética religiosa cuja infração é tida como um esquecimento do dever. O que é preconizado não é mero bom senso comercial – o que não seria nada original – mas sim um ethos. Não se trata de uma inclinação moralmente neutra, mas assume um caráter ético de máxima orientadora da vida.

Segundo Weber, o poder dessa ética religiosa, além de colocar à disposição do empreendedor burguês trabalhadores sóbrios e aferrados ao trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus, deu-lhe ainda a tranqüilizadora garantia de que a desigual distribuição da riqueza deste mundo era obra da Divina providência.

Para Weber, a literatura das religiões está saturada do ponto de vista de que o trabalho, mesmo por baixos salários, da parte daqueles a quem a vida não oferece outras oportunidades, é algo agradável a Deus. Nisto a ascese protestante não produziu em si novidade alguma. Contudo, ela não se limitou a aprofundar esse ponto de vista, pois produziu uma norma, que, sozinha, bastou para torná-la eficiente: a da sua sanção psicológica através da concepção do trabalho como vocação, como meio excelente, quando não o único, de atingir a certeza da graça. Por outro lado, ela legalizou a exploração dessa específica vontade de trabalhar, com o que também interpretava como “vocação” a atividade do empresário. Não é difícil perceber quão poderosamente a procura do reino de Deus, apenas através do preenchimento do dever vocacional, especialmente nas classes pobres, vai influenciar a “produtividade” do trabalho, no sentido capitalista da palavra. O tratamento do trabalho como “vocação” é tão característico para o moderno trabalhador, como a correspondente atitude aquisitiva do empresário.

Na era moderna o trabalho passa a ser concebido como expressão de uma ética positiva que favorece o desenvolvimento do capitalismo. Não por outra razão os revolucionários do século XVIII, como forma de combater os valores da nobreza, exaltaram o trabalho como a principal virtude republicana. Na sociedade capitalista o trabalho adquire, assim, um valor que o coloca acima de todas as virtudes. O trabalho não é apenas meio de subsistência, ele confere dignidade, honra, sucesso e certeza da graça divina. A sociedade moderna absorveu o trabalho como virtude fundamental, tanto que as pessoas, desde a sua infância, são educadas para o trabalho. Na sociedade contemporânea, o sem-trabalho é a expressão do pária social.

Na sociedade grega, a concepção era outra, o trabalho não estava inserido no conjunto das virtudes. O trabalho (produção de bens duráveis) e o labor (produção de bens de consumo) eram atividades exercidas no espaço privado (oikos) e primordialmente por escravos, por isso não dignificavam o homem. No espaço privado o homem era escravo da necessidade porque o fator que regia sua conduta não era a liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupação com sua preservação. Nessa estrutura, liberdade significava liberar-se dessa escravidão para o exercício da cidadania no espaço público (polis).

O espaço público era o local do encontro dos iguais (isonomia), homens que se libertaram do trabalho e do labor e, em virtude disso eram considerados livres, e também, como conseqüência, era livre a atividade que exerciam. Na polis, os homens livres do trabalho e do labor (os aristocratas) exerciam a atividade denominada ação, que consistia basicamente na administração dos negócios públicos. Na antiguidade, as funções de juiz (árbitro) e advogado (defensor) estavam incorporadas ao conceito de ação, portanto, não se confundiam com trabalho ou labor.

A sociedade capitalista transformou a antiga ação do juiz e do advogado em trabalho e conferiu a essa atividade importância fundamental, ao exigir que as pessoas, para exercê-la, fossem dotadas de notório saber jurídico (técnica) e reputação ilibada (ética). Na sociedade contemporânea, a atividade (trabalho) do juiz e do advogado incorpora, portanto, os valores da antiga ética de Hesíodo (reputação ilibada) e os da nova ética vocacional protestante (notório saber jurídico). Há, assim, uma junção entre ética e técnica.

Weber reconhece que o “trabalho” dos profissionais do direito é imprescindível ao Estado moderno racional e burocratizado.

Weber (1974a: 22) entende que o capitalismo moderno se desenvolve sob o princípio da racionalização e considera as instituições capitalistas a materialização dessa racionalidade. Para ele, os órgãos estatais e os da grande empresa dependem de um tipo de burocracia que esteja focada na promoção da eficiência racional, continuidade de operação, rapidez, precisão e cálculo dos resultados. Tudo isso se desenrola dentro de instituições administradas racionalmente e nas quais as funções especializadas ocupam o centro das atenções. Essa estrutura obriga o homem moderno a tornar-se um perito, um profissional preparado para uma carreira especial dentro da máquina burocrática do Estado ou da empresa.

Para manter a racionalidade, a burocracia necessita, cada vez mais, de profissionais qualificados, motivo pelo qual, já no início do século XX, as universidades agitaram-se com a concorrência movida pela obsessão por diplomas. O diploma passou a ser essencial para todas as pretensões de prestígio social e o exame profissional dos diplomados (concursos) passou a ser pré-condição para todos os cargos bem remunerados e seguros nas burocracias pública e privada.

Max Weber (1974b: 24) aponta que o capitalismo avançado exige um direito formal que seja calculável e os funcionários da justiça devem ser formados segundo o espírito desse direito. Daí a prática de recrutar juizes, mediante concurso, não entre os cidadãos de um modo geral, mas somente entre os profissionais do direito, advogados qualificados e especializados.

O Estado burocrático, bem como a moderna empresa capitalista, baseia-se fundamentalmente no cálculo (razão instrumental) e pressupõe um sistema administrativo e legal cujo funcionamento pode ser racionalmente predito, em virtude de suas normas gerais fixas, exatamente como o desempenho de uma máquina. Weber entende que a moderna empresa capitalista não poderia e nem pode aceitar um julgamento segundo o senso de equidade do juiz numa determinada causa ou segundo outros meios irracionais que existiram no passado. Anota que na burocracia judicial os documentos legais, juntamente com as custas e emolumentos, são colocados na entrada na esperança de que a decisão surja na saída juntamente com argumentos mais ou menos válidos, ou seja, a burocracia judicial consiste em uma máquina, cujo funcionamento, de modo geral, é calculável ou prognosticado.


Juiz e advogado fazem parte dessa engrenagem, contudo, é preciso ressaltar essa verdade insofismável: na sociedade capitalista de regime democrático, o juiz não é recrutado pelo voto dos cidadãos e entre os cidadãos em geral, como ocorre no legislativo e no executivo, o juiz é funcionário da justiça que, antes de ser juiz, foi também advogado, recrutado, mediante concurso, entre advogados. E isso ocorreu não por causa de uma reputação ilibada, que pode ser encontrada em cidadãos de qualquer profissão, mas por causa de um saber tecnológico, que só os advogados detêm. Esse saber é adquirido nas Faculdades de Direito, daí porque alguns bacharéis puderam migrar para a função de juiz sem passar pelo ofício de advogado.

O saber tecnológico do advogado é essencial à organização judiciária do sistema capitalista de governo democrático. Sobre essa essencialidade a Constituição Federal foi implacável ao estabelecer que “o advogado é indispensável à administração da justiça” (art. 133). A Constituição Federal recepcionou a norma da Lei n. 8.906/94 que prescreve: “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social” (art. 2º, parágrafo 1º). O Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil sintetiza: “O advogado, indispensável à administração da justiça, é defensor do estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce” (art. 2º).

Do exposto percebe-se que o engajamento político-institucional e social é um dever não somente para o advogado, por exercer um múnus público, mas também para o órgão de representação da categoria. Nesse sentido, na composição dos quadros da justiça é conferida participação efetiva e direta aos advogados, examinando os advogados: a) candidatos à Magistratura (CF, art. 93, I); b) candidatos à Defensoria Pública (LC n. 80/94, art. 24); c) candidatos ao Ministério Público (CF, art. 129, parágrafo 3º). Também é outorgado ao advogado acesso direto na composição dos Tribunais Superiores, através do denominado quinto constitucional.

A atividade do advogado está submetida aos deveres da profissão, dentre os quais se destacam: “preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, zelando pelo seu caráter de essencialidade e indispensabilidade” (Código de Ética, art. 2º, parágrafo único). O candidato, para migrar da função de advogado para a de juiz, não pode ter tido conduta incompatível com os deveres que o Código de Ética prescreve. Disso decorre que a conduta ilibada de quem pretende ser juiz é testada a priori, enquanto advogado. É a conduta ética exemplar do advogado que o mantém como tal e lhe confere, se assim o quiser, migrar para a função de juiz, promotor ou defensor.

A Constituição Federal, ao alçar a atividade de advocacia à esfera constitucional e defini-la como essencial à justiça, deixou evidente que o advogado não deve ser confundido com o mandatário do direito privado, mas aparece antes como autêntico representante necessário que age em nome da parte, mas sempre no interesse público da justiça (Comparato, RT, 694/46). Daí porque “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização” (Código de Ética, art. 5º). Isso não quer dizer, entretanto, que o advogado não deva receber honorários compatíveis com a alta função que exerce.

É sobre o honorário, a remuneração do trabalho do advogado, que esse artigo propõe uma reflexão, tendo em vista as seguintes situações: a) o trabalho, na sociedade capitalista, foi alçado à categoria de principal virtude do cidadão; b) o trabalho do advogado, na sociedade capitalista de governo democrático, é indispensável à administração da justiça; c) o trabalho de advogado exige alta especialização, que é testada mediante provas aplicadas aos bacharéis para ingresso na carreira; d) o advogado está submetido aos deveres da profissão que, quando respeitados, confere-lhe conduta ilibada, e, quando desrespeitados, implica sanções disciplinares, inclusive com a exclusão definitiva dos quadros da OAB.

Sobre o trabalho do advogado, a Lei 8.906/94 prescreve: “A prestação de serviço profissional assegura aos advogados o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência” (artigo 22). De acordo com o Código de Ética, “o advogado deve evitar o aviltamento de valores dos serviços profissionais, não os fixando de forma irrisória ou inferior ao mínimo fixado pela Tabela de Honorários, salvo motivo plenamente justificável” (artigo 41). Na regra geral, a Tabela da OAB estabelece o valor mínimo de R$ 2,6 mil e, no caso de Recurso, o valor mínimo de R$ 4 mil.

Há uma categoria de advogados para a qual esses valores mínimos certamente representam aviltamento da profissão, tendo em vista que sua clientela é formada por pessoas (físicas ou jurídicas) economicamente privilegiadas. Esses advogados são excelentes profissionais e por isso mesmo compõem a categoria dos mais famosos e apreciados. Sem nenhum demérito, podem ser denominados de “advogados galáticos” (uma comparação aos atuais craques do futebol que acumulam fortunas) ou “advogados aristocratas” (uma comparação aos heróis individualistas dos tempos homéricos). Alguns, mais próximos da ética protestante, são empresários bem sucedidos, administram serviços de advocacia com o apoio de dezenas de advogados contratados ou associados.

Há, entretanto, uma categoria de advogados que, diante de motivo plenamente justificável (clientela economicamente desfavorecida), assume uma função específica do Estado: financia, com o seu próprio dinheiro e trabalho, as causas dessa clientela. Seus honorários ficam na dependência do sucesso da causa (cláusula quota litis ou contrato ad existum), que pode demorar três anos ou mais. Esses são “advogados lavradores” (uma comparação aos heróis de Os Trabalhos e os Dias), não conhecem fartura e, devido à condição de defensores dos desfavorecidos, detêm, quando muito, uma posse moderada de bens. São “advogados obreiros” (uma comparação com os puritanos da ética protestante) porque se dedicam, com zelo e método, ao trabalho duro e constante e organizam sua vida sem ostentação e sem consumo de luxo.

Os “advogados obreiros” colocam sua excelência e habilidade a serviço da coletividade e não de uma clientela rica, realizam, portanto, uma função social e cívica de admirável proporção. A cidade deveria reconhecê-los como heróis, mas isso não acontece, parece que seu trabalho carece de dignidade e honra tal como ocorria com os pequenos agricultores no tempo de Hesíodo. Nesse sentido, é comum a grande mídia afirmar que “rico não vai pra cadeia” graças à competência dos bons advogados que contrata, os “aristocratas”. Disso se pode deduzir que “pobre vai pra cadeia” porque a defesa é entregue a péssimos advogados, os “obreiros”. A mídia se contradiz porque ela mesma expõe as relações de força que o processo judicial oculta quando noticia, por exemplo, a rapidez na concessão de hábeas corpus para um banqueiro suspeito de lavagem de dinheiro e a morosidade na concessão de hábeas corpus para uma cidadã comum que furtou um sabonete.

Sem retirar o mérito do “advogado galático”, é preciso reconhecer, porém, que seus clientes, pela posição – social, política e econômica – que ocupam na organização social, os auxiliam e muito no exercício de sua advocacia. Aliás, os sociólogos já demonstraram à exaustão que o direito contém um viés classista. Quanto ao “advogado obreiro”, fica por conta dos seus próprios méritos e suas próprias forças o sucesso da causa que lhe é confiada.


A eficiência racional (continuidade de operação, rapidez, precisão e cálculo dos resultados) exigida pelo sistema capitalista, quando não cumprida pelo empresário geralmente provoca danos a terceiros. O “advogado obreiro” se insere nessa questão patrocinando causas que pedem reparação dos danos. Cabe repetir que a remuneração por esse trabalho, dada a situação econômica do cliente, fica submetida ao sucesso da demanda (contrato ad exitum). Nas ações contra as grandes corporações empresárias – é sobre estas que estamos falando – o “advogado obreiro” tem como oponente o “advogado galático” e sua equipe formada de excelentes profissionais especializados e bem pagos.

O advogado obreiro já foi denominado, pejorativamente, de clínico geral, porque, premido pela necessidade, atua em diversas áreas do direito. O fato de ter oponente da envergadura do galático e vencê-lo, seria suficiente para o reconhecimento da sua excelência e dedicação à causa. Contudo, isso não ocorre, ainda campeia a crença aristocrática na ignorância intrínseca das camadas populares donde saem os advogados obreiros. O trabalho do “advogado obreiro” parece ser destituído de nobreza porque muitas vezes a remuneração que recebe sequer alcança o mínimo estabelecido pela OAB. Isso implica desonra e aviltamento e subtrai do trabalho a sua característica virtuosa imprimida pela sociedade capitalista.

O leitor poderá constatar essas afirmações mediante uma rápida visita aos portais dos Tribunais de Justiça, principalmente nas ações de danos morais promovidas contra as grandes organizações empresárias fornecedoras de serviços: instituições financeiras, empresas de telecomunicações, de telefonia, de planos de saúde, etc. É possível encontrar condenações que não ultrapassam R$ 2 mil com a fixação de honorários em 20% sobre a condenação, ou seja, R$ 400 ou menos. É impressionante que nesses casos o resultado da soma do valor da condenação com o valor do honorário fica abaixo da Tabela da OAB, portanto, ainda que todo o valor do cliente fosse entregue ao advogado, ter-se-ia o aviltamento da profissão. Acredite leitor, há caso de honorário fixado em R$ 50.

A análise das decisões mostra que, na melhor hipótese (ganho da causa e condenação em R$ 5 mil), o honorário do advogado é de R$ 1 mil, ou seja, 20% sobre o valor da condenação. Dado que o advogado obteve êxito, geralmente recebe do cliente 20% a 30% sobre o valor da condenação, ou seja, R$ 1 mil a R$ 1,5 mil. Esse valor que o advogado obreiro levou três anos para conquistar está muito aquém do mínimo estabelecido na Tabela da OAB porque houve necessidade de atuação em instância recursal. Disso decorre a hipótese segundo a qual o grande empresário deve gastar mais com o seu advogado aristocrata do que com a própria condenação imposta pelo Tribunal. A não ser que esteja em curso um processo de aviltamento da profissão também por parte das grandes corporações empresárias.

Supondo que o advogado do grande empresário não se sujeita ao aviltamento da profissão, estamos diante de uma curiosidade: mesmo quando perde a causa o advogado aristocrata recebe mais do que o advogado obreiro que a ganhou. Já o advogado obreiro, quando perde, perde mesmo, porque perdeu todo o trabalho e dinheiro que investiu no patrocínio da causa do seu cliente.

Certamente o leitor já ouviu a expressão “indústria do dano moral”, que levaria à falência as grandes corporações empresárias e faria ricos os advogados obreiros. Trata-se de uma falácia, tal como aquela segundo a qual os direitos trabalhistas, constitucionalmente consagrados, levariam empresários à insolvência. Neste caso, as estatísticas mostram que nos últimos sete anos quatorze milhões de brasileiros entraram para o mercado formal de trabalho sem a necessidade de supressão de direitos trabalhistas e o lucro dos empresários cresceu, em alguns casos, de forma exponencial.

Daí a pergunta: O que inibe o Poder Judiciário na determinação do honorário de sucumbência em valores que não alvitrem a profissão nesses casos em que a parte perdedora é o grande empresário, devidamente assistido por excelentes advogados, e o valor do dano moral é exíguo? Não pode ser a legislação porque o art. 20 do CPC não termina no parágrafo 3º, o parágrafo seguinte estabelece que nas causas de pequeno valor o magistrado pode fixar os honorários de forma eqüitativa, considerando: a) o grau de zelo do profissional: ele foi zeloso, tanto que ganhou a causa; b) o lugar da prestação do serviço: na cidade de São Paulo, o deslocamento do advogado do seu escritório até o Fórum e sua permanência ali e retorno, às vezes, demora quatro horas ou mais; c) a natureza e importância da causa: o advogado está promovendo cidadania às suas próprias custas, portanto, correndo riscos; d) o tempo exigido para o seu serviço: uma causa decidida pelo Tribunal exige que o advogado visite o fórum, no mínimo, nove vezes.

Além do exposto acima, é preciso considerar que o advogado obreiro não é assalariado; trata-se de um profissional liberal que tem custos com a manutenção do escritório: aluguel, faxina, condomínio (água, luz, salários, imposto, reformas, etc), telefone fixo e celular, internet e computador, materiais de escritório, consertos, livros, assinaturas de revistas, anuidade dos órgãos de classe, plano de saúde, automóvel, gasolina, etc. Como se nota, a estrutura do escritório do “advogado obreiro” é semelhante à estrutura do estabelecimento do grande empresário. A diferença fica por conta das dimensões e, justamente por isso, os riscos de insucesso do “advogado obreiro” são incomensuravelmente maiores do que os do grande empresário.

O Poder Judiciário deve olhar para a possibilidade real de “falência” à qual o advogado obreiro se vê constantemente submetido, mesmo quando regula sua vida pela mais radical sobriedade (parcimônia nos gastos) da ética puritana. A insolvência econômica impulsiona esses advogados à busca incessante por trabalho mediante concursos públicos que, em muitos casos, o cargo sequer exige curso superior. Trata-se de um trabalho como simples meio de subsistência, portanto, frustrante, destituído de honra e de valor, não mais uma virtude que dignifica o homem ou um caminho que o conduza à graça divina. Apenas trabalho, e os dias, nada mais.

Enfim, o fato é que temos, de um lado, os empresários e advogados aristocratas que acumulam fortunas desproporcionais (desmedida, excesso, hybris) e, de outro, os trabalhadores desafortunados e os advogados obreiros que apenas depositam otimismo num amanhã incerto, numa diké que haverá de estabelecer uma justa medida para todos.

Por que a comunidade jurídica (profissionais do direito) e as instituições jurídicas (OAB, Poder Judiciário) se preocupam mais com a viabilidade do empresário do que com a situação de penúria do advogado obreiro? Por que ficamos mais apreensivos com a possibilidade de falência do empresário do que com a insolvência do advogado obreiro? Afinal, quem é mais essencial à administração da justiça: o advogado ou o empresário? Niklas Luhmann (1985: 55) é quem diz: É certo que o bandido pode entrar na minha casa, ameaçar minha família e roubar minhas jóias ou minha prataria, mas que importância isso tem diante da possibilidade de falência do meu banco ou do empresário para o qual trabalho? Diante dessa constatação é necessário perguntar: na sociedade moderna, a dignidade da pessoa humana (humanismo) se sucumbiu diante da razão instrumental (racionalismo)? Não há uma luz no fim do túnel? É isso mesmo? Esse é o nosso destino inexorável? Podemos espalhar essa “boa nova” entre os estudantes de Direito?

O que está acontecendo? Talvez a nossa incapacidade de repensar os antigos valores ou assumir o risco de pensar novos valores tenha provocado a transmutação da hybris da antiga raça de prata ou da raça de bronze em valores cultuados pela elite dos tempos modernos e divulgados como virtudes irretocáveis. É preciso refletir sobre o lado obscuro e as conseqüências trágicas dessa transmutação. O filósofo Nietsche, cuja obra busca apoio na cultura grega pré-socrática, lançou o grito de alerta contra o exasperado otimismo da sociedade moderna. Para ele, a face resplandecente dessa sociedade é apenas um avesso sombrio. A valorização ingênua do progresso ou da razão conduz inexoravelmente à exaustão dos valores herdados da tradição, à sua impossibilidade de dar sustentação a futuros projetos viáveis tanto no campo do conhecimento (notório saber jurídico) como no campo da ética (reputação ilibada).

Para Nietzsche, “não cabia ao filósofo justificar ou condenar esse estado de coisas, mas constatá-lo; essa constatação seria, então, o único caminho que permitiria vislumbrar uma saída. Toda tentativa de negar essa condição representa não apenas uma desonestidade intelectual e moral, mas, sobretudo, o risco da catástrofe; ou seja, a possibilidade de que o esvaziamento de valores autênticos nos conduza de volta à barbárie, à destruição daquilo que de mais precioso a humanidade conquistou ao longo da história: a dignidade da pessoa humana” (Giacoia Junior, 2000: 17).

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