Entre MP e Polícia

TJ-SP pode tirar juiz da tramitação de inquéritos

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18 de outubro de 2010, 11h46

Enquanto o Conselho Nacional de Justiça discute uma mudança drástica na tramitação de inquéritos policiais, o Tribunal de Justiça de São Paulo já se adianta e pode antecipar a novidade. Está sendo votada no Conselho Superior da Magistratura paulista uma regra que afasta o Judiciário do controle das investigações, que passaria a ser feito pelo Ministério Público. Pela proposta da Corregedoria-Geral de Justiça, com exceção dos pedidos de medidas cautelares como prisões preventivas, escutas telefônicas e buscas e apreensões, a Justiça não tomaria conhecimento do que circula entre Ministério Público e Polícia.

A votação mal começou, mas já provoca debates. Um desembargador que não quis ter o nome revelado afirmou à ConJur que a mudança é ilegal por ferir a Lei Orgânica da Magistratura. “Vão esvaziar à força as funções do juiz corregedor, que deve acompanhar o inquérito de perto”, diz. Por enquanto, apenas o corregedor-geral, desembargador Munhoz Soares, votou, a favor da medida. Outros seis membros do Conselho irão se manifestar, incluindo o presidente da Seção de Direito Público, desembargador Luiz Ganzerla, que pediu vista do processo. Como ele já foi juiz do Departamento de Inquéritos Policiais e Corregedoria da Polícia Judiciária (Dipo), responsável justamente pelo setor que acompanha a tramitação de inquéritos antes da apresentação das denúncias pelo MP, espera-se que resista à proposta, empatando o placar. A presidência da corte deve seguir o voto de Ganzerla.

Para uns, a tramitação direta de inquéritos policiais da Polícia para o Ministério Público acelera as investigações, por dispensar os despachos do juiz que apenas encaminham ao MP os pedidos de prorrogação de prazos feitos pelos delegados. Para outros, o efeito pode ser exatamente contrário, já que o Judiciário não acompanharia tão de perto o cumprimento de prazos pelo Estado, nem a abertura dos autos a advogados.

“Isso elimina burocracias. O juiz não tem que receber o inquérito, para depois somente despachar para dar carga ao MP”, disse o desembargador Munhoz Soares em evento promovido pelo CNJ em São Paulo sobre Justiça Criminal. Segundo ele, o Judiciário só tem de intervir se houver lesão a um direito individual. “Nenhuma lesão pode ser subtraída do conhecimento judicial.”

Já para o desembargador Nelson Calandra, é justamente a burocracia que protege o cidadão de possíveis abusos nas investigações. “O controle que o juiz exerce sobre a tramitação do inquérito é mais do que uma etapa. Embora grande parte do trâmite não precise de interferência, uma pequena, mas importante parte pode precisar, por lidar com a vida e a liberdade das pessoas”, disse ele no mesmo evento.

O oferecimento de benefícios ao detento com a delação premiada é um exemplo do que pode ficar de fora da apreciação do Judiciário, já que, de acordo com o MP, a lei não é expressa em exigir a comunicação ao magistrado. “Muitas vezes, o MP reclama providências que o juiz não permite. Cabe ao juiz analisar a legalidade do processo, se aquilo pode ser feito pela Polícia”, afirma Calandra. Outro desembargador paulista completa: “se o juiz vir irregularidade na prisão, pode conceder Habeas Corpus de ofício, o que o MP não faria”.

Risco certo
“A tramitação passar pelo Judiciário abunda no resguardo do direito das pessoas. Também garantimos que o inquérito não fique parado nem se prolongue indefinidamente”, afirma o juiz corregedor do Dipo, Alex Tadeu Zilenovski. Segundo ele, a ideia de que a tramitação direta aceleraria o procedimento é um mito. “Meu palpite é que poderá ocorrer justamente o contrário, porque hoje eu posso garantir que nenhum inquérito fique parado em lugar nenhum.”

O problema está em quem vai ficar com a responsabilidade de se manifestar em caso de abuso nas investigações, na opinião do criminalista José Roberto Batochio. “O MP não foi concebido para tutelar os direitos individuais do cidadão. Como titular da Ação Penal e detentor exclusivo da persecução penal, ele é parte acusatória”, afirma. Por natureza, o Judiciário, segundo ele, não teria a mesma parcialidade. “Vou reclamar logo ao MP sobre o fato de um delegado querer me indiciar?”, questiona.

Quem defende a mudança diz que o risco não existe porque medidas cautelares continuarão sendo submetidas ao Judiciário. Mas a distância do juiz da confecção do inquérito também pode deixá-lo longe da forma como as provas foram colhidas, segundo Batochio. “Pode haver medidas cautelares acontecendo em segredo de Justiça, e prisões em flagrante sem o devido controle.” Ele lembra que o artigo 5º da Constituição prevê a comunicação imediata de prisões em flagrante a um juiz, e que prisões ilegais devem ser relaxadas com a mesma emergência.

Na capital paulista, são os juízes do Dipo os responsáveis por cuidar desses casos. E seria justamente esse departamento que sumiria do mapa com a aprovação da proposta da Corregedoria. “Não é de hoje que a Corregedoria quer acabar com o Dipo, devido ao tamanho do departamento”, afirma um desembargador do TJ-SP. “Mas sem o Judiciário, os inquéritos podem se estender por tempo indeterminado.”

Postergar inquéritos para ampliar o rol de investigados permite o nascimento de novas operações policiais, umas descendentes das outras. “Uma investigação pode durar anos sem que a parte seja intimada a prestar depoimentos”, diz um advogado que preferiu não ter seu nome publicado. “Para driblar a lei, a autoridade policial muitas vezes não faz o indiciamento formal mesmo tendo elementos suficientes, com a intenção de ouvir os suspeitos como se fossem testemunhas.”

O Dipo tem duas funções: a de coordenação das execuções criminais, e a de corregedoria da Polícia Judiciária. Seu sistema alerta aos juízes quando os inquéritos se prolongam demais, o que permite verificar nas delegacias o andamento dos processos. O distanciamento entre juiz e polícia mantém a saúde legal das investigações. “A polícia exerce um charme, do qual o juiz precisa fugir”, diz um magistrado. Para manter a tradição, os coordenadores do órgão não ficam muito tempo no comando. “Com a briga travada pelo MP para também ter o direito de fazer investigações, o que fatalmente pode acontecer é haver apenas um órgão cuidando dos inquéritos.”

“O pêndulo central da balança é o juiz, que tem de cada lado o MP e os advogados”, compara o presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia de São Paulo, delegado José Leal. “Se não houver equilíbrio, a balança vai pender só para o lado do MP, que vai ter o domínio do inquérito.” Segundo o delegado, existe o risco de garantias individuais não serem respeitadas caso a tramitação seja direta. “O inquérito policial é meio de se obter prova, mas também permite a defesa, já que todos podem dar esclarecimentos”, afirma. “O MP não pode ser dono do inquérito.”

Em 2002, o desastre da chamada Operação Castelinho mostrou como a falta de fiscalização da Polícia pode fazer estrago. Para atingir a facção criminosa PCC, a Polícia montou um esquema que envolveu a participação de pelo menos dois detentos libertados para atuar como infiltrados na organização. Um pedágio montado na Rodovia Castelo Branco terminou com a morte de 12 supostos integrantes da quadrilha, e um dos infiltrados fuzilado. Apurado o caso pelo corregedor-geral de Justiça da época, desembargador Luiz Tâmbara — hoje aposentado —, dois juízes do Dipo foram afastados. Até hoje não chegou a público quantos presos participaram do esquema como agentes da Polícia, e nem quem deu as ordens para a soltura e para a entrega de armas a eles.

Excesso de carga
Favorável à mudança, o próprio MP paulista admite não ter condições de desempenhar o papel. “Precisamos de estrutura material e de recursos humanos para atender à demanda das comarcas do estado inteiro”, diz a promotora Luciene Angélica Mendes, assessora do Centro de Apoio Operacional Criminal da Procuradoria-Geral de Justiça.

Segundo ela, uma mudança na regra sem a reestruturação do órgão seria impossível, já que hoje são os cartórios do Judiciário que cadastram cada inquérito no banco de dados, informando número dos feitos e boletins de ocorrência, “o que caberia a funcionários do MP fazer”, diz. As condições foram informadas ao CNJ em resposta a uma consulta nacional feita no início do ano sobre a tramitação direta de inquéritos. Por meio de uma reunião na Corregedoria do TJ-SP, Luciene ficou sabendo que a corte se adiantaria em discutir a implantação da proposta em São Paulo. Até o fim do ano, o órgão concluirá um diagnóstico para saber de quanto tempo precisa para se adaptar. “Mas o posicionamento nacional do MP é que queremos esse controle.”

Para a promotora, o Judiciáro é um intermediário que não precisa existir dentro das investigações. “Como titular da Ação Penal, é interesse do MP acompanhar de perto a atividade policial, controlando prazos e evitando prescrição e perda de provas.” Segundo ela, não é função do juiz, mas sim do Ministério Público, controlar a atividade policial. “Não queremos delegar ao juiz funções que não são dele.”

Isso não quer dizer, ela afirma, que a instituição tomará o lugar dos delegados. “Não queremos assumir a presidência da investigação, mas determinar diligências em conjunto com os policiais.”

Ela também rebate os questionamentos sobre a capacidade do órgão de atender os pedidos de vistas de inquéritos pelos advogados. “Hoje, promotores já podem instaurar procedimentos investigatórios criminais, e já se exerce a concessão de vistas dos autos aos advogados”, garante. “O MP é titular da ação, mas também defensor da ordem pública e do exercício da defesa.” Porém, para atender aos advogados no caso de a proposta da Corregedoria do TJ passar, ela diz ser necessária a contratação de pessoal.

Sem acesso
No Paraná, o trâmite direto já existe desde 2007, autorizado pelo Provimento 119 da Corregedoria-Geral de Justiça do estado. A norma foi contestada no CNJ por meio do Procedimento de Controle Administrativo 599, mas o órgão a considerou válida. "É uma tendência", diz o criminalista Leonardo Sica, conselheiro da Associação dos Advogados de São Paulo. "Mas é preciso que as prerrogativas dos advogados e as garantias individuais sejam respeitadas."

Segundo Leonir Batisti, coordenador dos Grupos de Atuação Especial Contra o Crime Organizado paranaenses, o tempo de duração dos inquéritos no estado caiu pela metade. “Evita-se carimbos e trabalho do juiz”, diz.

Segundo ele, o Judiciário só se manifesta quando o inquérito sai pela primeira vez da delegacia. É quando é definido o juiz natural da investigação, que receberá a possível denúncia do MP, se houver. “Nas demais vezes, circula só entre a polícia e o Ministério Público.” No modelo anterior, ele diz, cada vez que os autos saíam da delegacia, levavam em média um mês para voltar.

“Cerca de 95% dos pedidos são apenas de prorrogação de prazo”, afirma. De acordo com ele, esse é um dos motivos que fazem com que apenas 11% dos crimes sejam resolvidos em todo o país. “Os processos passam, em média, oito meses sem solução, salvo quando há equipes especiais.”

Embora o procedimento já exista há três anos, Batisti afirma que o MP paranaense não tem estrutura especial para atender os advogados quanto aos pedidos de vista dos inquéritos. “Investigação, a princípio, deve ser sigilosa, a não ser que envolva pessoas públicas.” Mesmo diante da Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal, que garante o direito dos defensores de ter acesso ao que já foi documentado nas investigações, o procurador afirma que os advogados abusam do direito. “Hoje, o sujeito é chamado como testemunha e o advogado já quer cópia do inquérito, o que não está abrangido pela súmula, na minha opinião.”

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