Formalidade clássica

Constituição não resolve problemas práticos de Angola

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

17 de outubro de 2010, 6h32

Documentação midiática contemporânea tende a imputar a problemas étnicos a maior fonte de conflitos no continente africano. Não se discute a importância que contornos e desencontros étnicos representam nas relações humanas, e a percepção não é chauvinista, socialmente darwinista ou conceitualmente escapista e reducionista. Relações entre Estado e economia detêm complexidade que chega ao limite e que não pode ser limitada a conflitos tribais. A presença europeia forçada do capitalismo concorrencial e monopolista do século XIX fracionou o continente em fragmentos ideais, ideia que se realizou na Conferência de Berlim, e que é responsável por concepção cartográfica idealmente cartesiana.

Problemas contemporâneos, que efetivamente radicam na pobreza e que se multiplicam na saúde pública, na proliferação de doenças sexualmente transmissíveis, especialmente a propósito da disseminação da AIDS, que representa um risco bem mais grave do que normalmente se imagina, suscitam alarme internacional, a propósito de um vulcão, em constante estado de erupção.

Diversidade impressionante, nas línguas, modos de vida, idiossincrasias, são forçadas em fronteiras imaginadas alhures e apertadas em soluções normativas que não refletem a sociedade para a qual se dirigem. Constituições de contorno racional e iluminista oitocentista são propostas para mundos cuja realidade dos problemas demanda situações de exceção. Faz-se constituição para o que se imagina como regra, que na vida real, ao que consta, é mera suposição. É o que se vê em seguida.

A constituição de Angola se encerra com disposição transitória que exige a revisão de todos os tratados e alianças celebrados com Portugal, na medida em que contrários aos interesses do povo angolano. O texto constitucional data de 1992, após quase duas décadas de intensas lutas civis, na continuidade do movimento de libertação encetado contra o colonialismo português. Não se encontra preâmbulo. O artigo 1º indica que a República de Angola é soberana e independente. Menciona-se que o objetivo primário do país consiste na construção de uma sociedade pacífica, livre, democrática, informada pela justiça e pelo progresso social. Trata-se de um Estado que se informa constitucionalmente como democrático, baseado na lei, na unidade nacional, na dignidade do indivíduo, no pluralismo de expressões das organizações políticas, respeitando-se direitos e liberdades fundamentais, individuais e coletivos.

A soberania reside no povo. A atuação política indireta substancializa o exercício da referida soberania. Espera-se que os partidos políticos contribuam para a consolidação da nação angolana, para a independência, para o fortalecimento da unidade nacional, para a defesa da integridade territorial, da soberania, da democracia, para a proteção das liberdades fundamentais, para a defesa da forma republicana de governo e de organização estatal secular. Alguns princípios fundamentais informam a atuação partidária. Entre eles, o sentido organizacional em base nacional, a liberdade de formação e de associação, a fundamentação de seus objetivos em interesses públicos, a busca da ordem democrática, o cometimento com o uso de meios pacíficos para a consecução dos objetivos partidários. Veda-se que partidos políticos recebam contribuições financeiras de governos estrangeiros, bem como do próprio governo angolano.

O Estado é unitário e indivisível. Afirma-se no texto constitucional que tentativa separatista será combatida vigorosamente. A soberania do Estado angolano estende-se ao território, às águas internas e territoriais, ao espaço aéreo, ao solo e ao sub-solo. Pretende-se a intensificação das relações entre as várias regiões do país, sob o mote de solidariedade econômica, social e cultural. Confirma-se a secularidade do Estado angolano, cuja constituição determina a separação entre o Estado e as igrejas. No entanto, determinou-se que as religiões serão respeitadas e que o Estado tem o dever de proteger igrejas e locais de culto, na medida em que essas religiões possam ser protegidas pelas leis do país.

Indica-se que o Estado deva conduzir o desenvolvimento da economia nacional, objetivando a garantia de crescimento harmônico e balanceado em relação a todos os setores e regiões do país, mediante o uso racional e eficiente de toda a capacidade produtiva e dos recursos nacionais, para os fins de elevação do bem estar e da qualidade de vida dos cidadãos angolanos. O sistema econômico centra-se na coexistência de diversas formas de propriedade, pública, privada, mista, cooperativa, familiar. Todas gozam de idêntica proteção legal, nos termos da constituição angolana. À lei cabe determinar quais atividades essenciais se desenvolvem sob monopólio e controle do Estado. Escreveu-se que o Estado garante o máximo de eficiência e lucro na exploração das propriedades públicas. O Estado incentiva o desenvolvimento de empreendimentos privados, mistos, de cooperativas e de grupos familiares. Deve criar condições para que esses empreendedores, com especial atenção nas atividades econômicas de porte médio e mínimo.

O Estado também é constitucionalmente obrigado a proteger o investimento e a propriedade de estrangeiros. Por outro lado, qualquer medida para nacionalização ou confisco de bens é tomada como irreversível, para todos os propósitos legais, sem prejuízo do comando de normas específicas em âmbito de privatização. O sistema tributário deve ser concebido com o objetivo de atender às necessidades econômicas, sociais e administrativas do Estado angolano, garantindo a distribuição justa de renda e riqueza. Tributos somente podem ser estabelecidos ou extintos por lei, que determinará o fato gerador, as alíquotas, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.

Angola obriga-se a respeitar e implementar os princípios da Carta das Nações Unidas, da Carta da Organização da Unidade Africana e do Movimento dos Países Não-Alinhados, devendo estabelecer relações de amizade e de cooperação com todos os Estados, com base no princípio do respeito mútuo, da soberania, da integridade territorial, da não-intervenção e na busca de vantagens recíprocas. A República de Angola se prontifica em apoiar e em se solidarizar com as lutas pela independência nacional dos povos, desenvolvendo relações de amizade e de cooperação com todas as forças democráticas que há no mundo. Compromete-se em não se associar a nenhuma organização militar internacional. O texto constitucional não permite a presença de forças militares estrangeiras em território angolano.

Há artigo que garante a isonomia, consignando-se que todos os atos que ameacem a harmonia social ou que criem discriminações ou privilégios serão punidos. Nacionalidade é matéria enviada para a lei ordinária. O Estado deverá respeitar a pessoa e a dignidade humanas. Garante-se a liberdade de locomoção. Escreveu-se na constituição que todos os cidadãos têm direito ao livre desenvolvimento da personalidade, respeitando-se os direitos dos demais cidadãos e os mais altos interesses da nação angolana. Determinou-se que os direitos fundamentais protegidos pela constituição angolana não excluem demais direitos plasmados em legislação ordinária ou emergentes de regras de Direto Internacional. Adere-se à Declaração Universal dos Direitos do Homem, à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, bem como a demais instrumentos legais de mesmo assunto, aos quais o governo angolano se integra, por meio de convenção internacional. Tais textos legais serão aplicados pela Justiça angolana mesmo quando não invocados pelas partes.

O texto constitucional angolano proíbe explicitamente a pena de morte. Veda-se a tortura ou qualquer forma de punição que seja cruel, desumana e degradante. Garante-se a todo cidadão o direito a um meio ambiente saudável e livre da poluição. Ao Estado se imputa a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para proteger o meio ambiente, as espécies nacionais de flora e fauna e de zelar pelo equilíbrio ecológico. Prevê-se a concessão de asilo para os que o requerem, por razões políticas, e nos termos dos instrumentos legais aplicáveis. Proíbe-se a extradição e a expulsão de cidadãos angolanos. Veda-se também a extradição de estrangeiros que seriam submetidos a pena de morte. Garante-se a inviolabilidade do domicílio e do sigilo de correspondência, embora haja limites, identificados em lei ordinária.

A idade eleitoral é fixada nos 18 anos. Trata-se de direito e de obrigação, da qual se excluem os que não detêm direitos civis e políticos. A família é elevada a condição de núcleo básico da organização social, devendo ser protegida pelo Estado, assim no casamento civil como na união estável. Homens e mulheres gozam dos mesmos direitos e obrigações em âmbito familiar. Às crianças outorga-se prioridade absoluta, devendo o Estado promover o desenvolvimento harmônico da personalidade infantil e juvenil, criando condições para a participação ativa desses na vida social.

Garante-se a liberdade de expressão, de reunião e de demonstração. Proíbem-se organizações secretas, paramilitares, e que tenham comprometimento com ideologias racistas, fascistas ou tribais. Ao trabalhador garante-se o direito de greve, com pequenas limitações referentes a serviços essenciais, especialmente as vinculadas ao interesse público. Proíbe-se, por outro lado, a prática do lockout. Prevê-se a liberdade de imprensa, que não está subsumida a censura, especialmente de fundo político, ideológico ou artístico.

Aderiu-se ao princípio da legalidade. Proíbe-se detenção que não tenha fundamento em lei, garantindo-se ao acusado o direito de defesa, especialmente em sentido técnico, mediante a disponibilidade de advogado. Indica-se que o Estado não poderá negar justiça para aqueles que sejam economicamente necessitados. Em discurso prenhe da tradição iluminista ocidental anotou-se que o acusado detém presunção de inocência até decisão judicial passada em julgado por tribunal competente. A prisão preventiva depende de orientação legal, que estabelecerá seus limites. A aplicação retroativa da lei só se dá em benefício do réu. Ao preso garante-se o direito de ser visitado por familiares e amigos. A constituição angolana prevê habeas corpus para detenção ilegal, com procedimento a ser regulamentado por lei.

O trabalho é direito e dever de todos os cidadãos. O texto constitucional angolano prevê que todo trabalhador detém direito de receber pagamento justo, descanso remunerado, férias, proteção e segurança laboral. É livre a escolha da profissão, respeitando-se limitações e exigências impostas por lei. Prevê-se proteção especial para mutilados da guerra de libertação nacional, para menores cujos pais morreram em combate e a todos que apresentem problemas físicos ou mentais. O Estado angolano está obrigado pela constituição vigente do país a proteger os cidadãos angolanos que residam no exterior.

Direitos individuais e coletivos poderão ser temporariamente restritos ou suspensos, mediante lei, quando o exercício desses direitos indique ameaça à ordem pública, aos interesses da comunidade, ao gozo dos próprios direitos individuais e coletivos, ou no caso de estado de sítio ou de emergência. Definiu-se que de modo algum declarações de estado de sítio ou de emergência afetarão o direito à vida, à integridade pessoal, a capacidade civil, a cidadania, a irretroatividade da lei penal, o direito que todo acusado tem de defesa, a par da liberdade de crença e de religião.

Os corpos políticos que compõem a soberania do Estado se concentram na Presidência da República, na Assembleia Nacional, no Governo (Gabinete) e nos Tribunais de Justiça. O território é administrativamente dividido em províncias, municípios, comunas e vizinhanças (ou vilas). O Presidente da República encabeça o Estado. Simboliza a unidade nacional, representa a Nação, no interior ou no estrangeiro, garante o cumprimento da constituição e comanda as Forças Armadas de Angola. Define as políticas do país e garante a independência nacional e a integridade territorial. É eleito por voto universal, direto, secreto e periódico. Exige-se do candidato nacionalidade originária angolana, 35 anos de idade, além da detenção de direitos civis e políticos. O mandato é de cinco anos. Permite-se a reeleição, por mais duas vezes, consecutivas ou não.

O Presidente da República indica o Primeiro-Ministro, após ouvir os partidos políticos com representação na Assembleia Nacional. O Presidente indica e demite os demais ministros e o governador do Banco Central de Angola, a partir de proposta encaminhada pelo Primeiro-Ministro. O Presidente dá fim ao mandato do Primeiro-Ministro, podendo demitir todos os demais ministros e membros do governo, após consulta com o Conselho da República. O Presidente lidera o Conselho de Ministros e o Conselho da República.

O Presidente pode dissolver a Assembleia Nacional, após ouvir o Primeiro-Ministro, o Presidente da própria Assembleia Nacional e o Conselho da República. Indica os membros da Suprema Corte após ouvir aos membros do Alto Conselho do Judiciário. Tem poder para declarar o estado de sítio ou de emergência, outorgar perdão, comutar sentenças, promulgar as leis, convocar referendos, declarar a guerra e celebrar a paz, ratificar tratados internacionais. Entre tantas outras obrigações, o Presidente também preside o Conselho Nacional de Defesa de Angola. Em circunstâncias de ameaça à ordem pública, autoriza-se que o Presidente, após dirigir-se à Nação, tome as medidas necessárias, vedando-se, no entanto, que se façam emendas à constituição. No exercício de seus poderes constitucionais, o Presidente da República poderá outorgar decretos presidenciais e despachos, que deverão ser publicados no Diário Oficial de Angola.

O Conselho da República é órgão consultivo do Presidente. Tem como missão constitucional expressar-se a propósito da dissolução da Assembleia Nacional, da renúncia dos ministros, da declaração de guerra e da celebração da paz, aprovar as próprias resoluções, entre outros. O Presidente da República preside o Conselho, que conta também com o presidente da Assembleia Nacional, com o Primeiro-Ministro, com o Presidente do Tribunal Constitucional, com o Procurador-Geral, com o ex-presidente da República, com os presidentes dos partidos políticos com representação na Assembleia Nacional, além de dez cidadãos indicados pelo Presidente da República.

A Assembleia Nacional é organismo unicameral. Compõem-se de 233 membros eleitos por voto universal, direto, secreto e periódico. O mandato é de quatro anos. O sistema de representação é proporcional. Cada província elege cinco membros e os demais são escolhidos em bases nacionais. Angolanos que vivem no estrangeiro estão autorizados a votar. É causa determinante de perda do mandato a migração partidária, isto é, o político que muda de partido perde a vaga.

O Gabinete, ou o Governo, conduz a política geral do país e consubstancia-se no mais elevado núcleo do corpo administrativo. Seus membros são responsáveis politicamente para com o Presidente da República e a Assembleia Nacional. O Primeiro-Ministro o chefia. A essa autoridade incumbe a condução das atividades do governo. Em especial, o Primeiro-Ministro coordena e conduz as atividades dos demais ministros e secretários de Estado. Todos os ministros devem renunciar no fim de cada mandato do legislativo, na eleição de um novo Presidente da República, e na renúncia, morte ou incapacitação do Primeiro-Ministro.

O Poder Judiciário é estruturado em juizados municipais, provinciais, com uma Suprema Corte no ápice. Há Justiça Militar, estruturada em termos de lei. A constituição de Angola também prevê tribunais arbitrais para questões administrativas, fiscais e marítimas. Um Alto Conselho do Judiciário dirige e disciplina a atividade forense. O Presidente da Corte Superior de Justiça o chefia. O conselho também conta com três advogados indicados pelo Presidente da República, com três advogados apontados pela Assembleia Nacional e com dez juízes eleitos entre seus pares. Um Tribunal Constitucional toma conta do controle de constitucionalidade. É composto por sete juízes. A constituição angolana não indica o número de magistrados da Suprema Corte. Prevê-se um modelo de monitoramento de inconstitucionalidade, de competência conjunta, dividida entre membros do Executivo, do Judiciário e do Legislativo.

O texto constitucional angolano prevê e pormenoriza a bandeira, a insígnia e o hino nacional. Esse último chama-se Angola Avante. Relatos de viajantes, notícias de jornal e relatórios internacionais indicam, no entanto, relação de impropriedade entre o mote e a realidade. Ao que parece, ainda estão vivas as chagas da guerra civil, a violência da presença portuguesa, a herança do colonialismo e a perturbação nacional em torno de identidade sonhada, porém inadequadamente desenhada, porque certamente pouco alinhada, dadas as diversidades, que textos constitucionais abstratos e regados com lógica formal teimam em manter.

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