Investigação administrativa

Sem fim de investigação, é inviável persecução penal

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9 de outubro de 2010, 9h11

O Estado de São Paulo realiza a “Operação Olho na Placa”, desencadeada pelas autoridades estaduais paulistas, com o objetivo de identificar e localizar proprietários de veículos que fazem o licenciamento de seus veículos em outros Estados da federação cujo IPVA possui alíquota menor.

Tal discussão traz para o mundo jurídico questões de suma importância a serem debatidas, tais como: a) Há no caso a ocorrência de crime contra a ordem tributária (Lei 8.137/90) ou de crime de falsidade ideológica (Art. 299 CP)? b) Qual o Estado competente para julgar a demanda? c) Pode haver a instauração de inquérito policial antes do processo administrativo que apure o valor do tributo devido?

A jurisprudência do E. STJ disciplina sobre o tema da seguinte forma:

Crime contra a ordem tributária. Supressão ou redução de tributo. Imposto sobre propriedade de veículos automotores. Licenciamento. Unidade da Federação diversa.

1. O licenciamento de veículo em unidade da Federação que possua alíquota do imposto sobre propriedade de veículo automotor menor do que a alíquota em cujo Estado reside o proprietário do veículo, em vez de configurar o crime de falsidade ideológica – em razão da indicação de endereço falso –, caracteriza a supressão ou redução de tributo.

2. Em casos tais, a competência para processar e julgar infração dessa natureza é da Justiça do Estado contra o qual se praticou crime em detrimento do fisco. Ademais, a supressão ou redução de tributo é delito material, consumando-se no local em que ocorrido o prejuízo decorrente da infração, isto é, onde situado o erário que deixou de receber o tributo.

3. Conflito do qual se conheceu, declarando-se competente o suscitado. (CC 96.964/PR, Rel. Min. NILSON NAVES – grifei)

Há entendimento exarado pelos Tribunais que o delito  praticado seria aquele definido no art. 1º da Lei nº 8.137/90, eis que o “crimen falsi” teria constituído meio para o cometimento do delito-fim.

Vejamos o artigo 1° da Lei 8.137/90:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)

I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V – negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.

Desta forma, resolve-se o conflito aparente de normas pela aplicação do postulado da consunção, de tal modo que a vinculação entre a falsidade ideológica e a sonegação fiscal permitiria reconhecer a preponderância do delito contra a ordem tributária.

O STJ já decidiu:
Imposto sobre propriedade de veículos automotores (supressão ou redução). Licenciamento (unidade da Federação diversa). Falsidade ideológica (descaracterização). Inquérito (extinção).

1. Em vez de configurar o crime de falsidade ideológica – em razão da indicação de endereço falso –, o licenciamento de automóvel em unidade da Federação que possua alíquota do imposto sobre propriedade de veículo automotor menor do que a alíquota em cujo Estado reside o proprietário do veículo caracteriza a supressão ou redução de tributo.

2. Ademais, em caso tal, se falsidade houvesse, estaria absorvida. Precedentes.

3. ‘Habeas corpus’ concedido para se extinguir o inquérito sem prejuízo de outro, se e quando oportuno. (HC 146.404/SP, Rel. Min. NILSON NAVES – grifei)

O reconhecimento da configuração do crime contra a ordem tributária (afastada a caracterização do delito de falsidade ideológica) torna pertinente a invocação, da Súmula Vinculante nº 24:

“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”

  Tal diretriz sumular, que possui eficácia vinculante, reflete orientação jurisprudencial predominante no Supremo Tribunal Federal.

Vejamos:
HABEAS CORPUS’ – CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA (LEI Nº 8.137/90, ART. 1º) – CRÉDITO TRIBUTÁRIO AINDA NÃO   CONSTITUÍDO DEFINITIVAMENTE – PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL AINDA EM CURSO QUANDO OFERECIDA A DENÚNCIA – AJUIZAMENTO PREMATURO DA AÇÃO PENAL – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE TIPICIDADE PENAL – RECONHECIMENTO DA CONFIGURAÇÃO DE CONDUTA TÍPICA SOMENTE POSSÍVEL APÓS A DEFINITIVA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO – INVIABILIDADE DA INSTAURAÇÃO DA PERSECUÇÃO PENAL, MESMO EM SEDE DE INQUÉRITO POLICIAL, ENQUANTO A CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO NÃO SE REVESTIR DE DEFINITIVIDADE – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A ‘PERSECUTIO CRIMINIS’, SE INSTAURADO INQUÉRITO POLICIAL OU AJUIZADA AÇÃO PENAL ANTES DE ENCERRADO, EM CARÁTER DEFINITIVO, O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-FISCAL – OCORRÊNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO, PORQUE DESTITUÍDA DE TIPICIDADE PENAL A CONDUTA OBJETO DE INVESTIGAÇÃO PELO PODER PÚBLICO – CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE DE PROSSEGUIMENTO DOS ATOS PERSECUTÓRIOS – INVALIDAÇÃO, DESDE A ORIGEM, POR AUSÊNCIA DE FATO TÍPICO, DO PROCEDIMENTO JUDICIAL OU EXTRAJUDICIAL DE PERSECUÇÃO PENAL – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ‘HABEAS CORPUS’ CONHECIDO, EM PARTE, E, NESSA PARTE, DEFERIDO.

– Enquanto o crédito tributário não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. É que, até então, não havendo sido ainda reconhecida a exigibilidade do crédito tributário (‘an debeatur’) e determinado o respectivo valor (‘quantum debeatur’), estar-se-á diante de conduta absolutamente desvestida de tipicidade penal. (HC 85.047/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)

Desta forma, enquanto não encerrada na instância fiscal o respectivo procedimento administrativo, não se mostra possível a instauração de persecução penal nos delitos contra a ordem tributária.

Assim, revela-se juridicamente inviável a instauração de persecução penal, mesmo na fase investigatória, enquanto não se concluir, no órgão competente da administração tributária, o procedimento fiscal tendente a constituir, de modo definitivo, o crédito tributário.

Portanto, nos casos do cometimento do ilícito acima apontado, há impossibilidade jurídica de se adotar, contra o devedor, qualquer ato de persecução penal, seja na fase pré-processual (inquérito policial), seja na fase processual (persecutio criminis in judicio).

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