Falta de estrutura

Juíza extingue processo eletrônico em caso de saúde

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7 de outubro de 2010, 18h54

A Justiça Federal teve de extinguir o processo eletrônico por não ser possível remetê-lo ao Juizado Especial, que só admite os autos na forma física. A sentença mostra como o processo eletrônico ainda não sanou o problema de redistribuição de processos de uma esfera do Judiciário a outra. A notícia é do Espaço Vital.

Segundo a juíza que encerrou o caso, ela deixava de determinar a devolução do processo à Justiça estadual pelo fato de ele tramitar por meio eletrônico, “inviabilizando sua redistribuição, e porque os autos físicos provenientes da Justiça estadual não foram encaminhados para este Juízo”. Assim, por ausência de pressuposto de existência válida e desenvolvimento regular, o processo chegou ao seu fim.

O caso se refere a uma ação movida, inicialmente, em nível estadual. O autor pediu o fornecimento de um medicamento em ação contra o Estado de Santa Catarina, conquistando a tutela antecipada. Na contestação, o estado pediu o chamamento da União e do município de residência da parte autora. Por isso, o juízo estadual decidiu declinar da competência para a Justiça Federal de Florianópolis. Lá, o processo passou para o Juizado Estadual Especial. Mais uma vez, no entanto, a competência mudou de lugar. Como o autor residia em Imbituba, o processo passou a tramitar na subseção de Laguna.

Já em Laguna, a juíza Daniela Tocchetto Cavalheiro, do Juizado Especial Federal, apontou como o “cerne da questão” o pedido de chamamento da União. O fundamento foi o de que o SUS “não perde sua unicidade, sendo possível que as medidas necessárias à efetivação do direito à saúde sejam exigidas de qualquer dos entes, independente um do outro.”

O cuidado com a saúde e a assistência pública são de responsabilidade da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, como estabelece o artigo 23, inciso II, da Constituição Federal. Também prevê a co-responsabilidade o artigo 4º da Lei 8.080/90: “O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS)”.       

O estado de Santa Catarina pediu o acolhimento da intervenção por terceiros. A juíza explicou que esse desejo seria capaz de protelar o feito sem motivo, “prejudicando, por conseguinte, o acesso do cidadão aos seus consagrados direitos constitucionais da vida e da saúde, mormente porque a competência seria deslocada para a Justiça Federal, o que resultaria na prática de diversos outros atos processuais desnecessários”.

Sem resolver o mérito da matéria, a juíza julgou que a Justiça Federal não tinha competência para julgar a concessão do leite pra a criança. “Não há de se falar em jogo de empurra-empurra, mas, sim, em respeito às regras constitucionais e processusais atinentes à competência para a apreciação do feito”, declarou a juíza.

Processo: 2010.72.66.000637-6

Leia a íntegra da sentença:

Autos: 2010.72.66.000637-6

Autor: P.H.G.S., representado por M.C.G.S.

Réu: Estado de Santa Catarina

SENTENÇA

I – RELATÓRIO

Trata-se de ação movida pela parte autora, inicialmente perante a Unidade da Fazenda Pública da Comarca de Florianópolis/SC – autos nº. 023.09.037877-9, em desfavor do Estado de Santa Catarina, objetivando o provimento judicial que obrigue o réu a fornecer medicamento, conforme descrito na inicial.

Em sua contestação, o Estado de Santa Catarina requereu o chamamento ao processo da União e do município de residência da parte autora, razão pela qual o Juízo Estadual declinou da competência para a Justiça Federal de Florianópolis.

Naquele juízo, a ação foi distribuída ao Juizado Especial em virtude do valor da causa ao Juízo Substituto da Vara do Juizado Especial Federal Cível de Florianópolis – processo eletrônico nº. 2010.72.50.001373-1. Constatado que o autor reside no Município de Imbituba, foi declinada da competência para esta Subseção de Laguna.

É o relatório. Decido.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A matéria é de extrema relevância e realmente merece uma reflexão criteriosa.

O cerne da questão reside no pedido de chamamento da União ao processo (em ação de fornecimento de medicamentos), formulado pelo réu Estado de Santa Catarina, para fins de modificação ou não da competência.

O constituinte de 1988 conferiu especial atenção à saúde, estabelecendo que é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Para tanto, inseriu a promoção da saúde como competência material comum, nos termos do artigo 23, inciso II, da Constituição Federal:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[…]

II. cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

[…].

O constitucionalista José Afonso da Silva assim explica:

Quanto à extensão, ou seja, quanto à participação de uma ou mais entidades na esfera da normatividade ou da realização material, vimos que a competência se distingue em: (a) exclusiva, quando é atribuída a uma entidade com exclusão das demais (art. 21); (b) privativa, quando enumerada como própria de uma entidade, com possibilidade, no entanto, de delegação e de competência suplementar (art. 22 e seu parágrafo único, e art. 24 e seus parágrafos); a diferença entre a exclusiva e privativa está nisso, aquela não admite suplementariedade nem delegação; (c) comum, cumulativa ou paralela, reputadas expressões sinônimas, que significa a faculdade de legislar ou praticar certos atos, em determinada esfera, juntamente e em pé de igualdade, consistindo, pois, num campo de atuação comum às várias entidades, sem que o exercício de uma venha a excluir a competência de outra, que pode assim ser exercida cumulativamente (art. 23); (d) concorrente, cujo conceito compreende dois elementos: (d.1) possibilidade de disposição sobre o mesmo assunto ou matéria por mais de uma entidade federativa; (d.2) primazia da união no que tange à fixação de normas gerais (art. 24 e seus parágrafos); (e) suplementar, que é correlativa da competência concorrente, e significa o poder de formular normas que desdobrem o conteúdo de princípios ou normas gerais ou que supram a ausência ou omissão destas (art. 24, §§1º a 4º). (Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 481).

A co-responsabilidade dos entes públicos federal, estadual e municipal também pode se extrair do art. 4° da Lei n° 8.080/90, que preceitua:

Art. 4º. O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).

Portanto, o Sistema Único de Saúde, que se encontra ramificado entre os três entes políticos da federação, não perde sua unicidade, sendo possível que as medidas necessárias à efetivação do direito à saúde sejam exigidas de qualquer dos entes, independente um do outro.

Logo, havendo solidariedade passiva, é lícito ao credor "exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum", nos termos do art. 275 do Código Civil, não importando em "renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores", conforme disposto no seu parágrafo único.

Por sua vez, estabelece o art. 77, III, do CPC:

Art. 77 – É admissível o chamamento ao processo:

[…]

III – de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum.

Contudo, não obstante nesse tipo de competência material comum possa se vislumbrar um feixe de responsabilidade de todos os entes da federação, a solidariedade formada entre os entes federados se estabelece de maneira distinta da solidariedade passiva civil na medida em que não existe direito de reembolso, total ou parcial, entre os devedores.

Por conseguinte, não se trata de hipótese de litisconsórcio necessário, porquanto eventual procedência da ação em nada afetará a esfera jurídica do outro ente federativo, não se coadunando, evidentemente, à hipótese do artigo 47 do Código de Processo Civil.

O intuito do constituinte ao estabelecer essa co-responsabilidade foi, sem dúvida, de criar uma soma de esforços visando ao cumprimento de metas de alcance social, evitando-se que a omissão de algum dos entes pudesse acarretar o perecimento de um bem ou frustração de uma meta social essencial ao Estado.

Assim, caso acolhida a intervenção de terceiros requerida, o curso do processo restaria protelado inutilmente, prejudicando, por conseguinte, o acesso do cidadão aos seus consagrados direitos constitucionais da vida e da saúde, mormente porque a competência seria deslocada para a Justiça Federal, o que resultaria na prática de diversos outros atos processuais desnecessários.

Por outro lado, é de bom alvitre lembrar que o art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição de 1988, com a redação ofertada pela Emenda n. 45/04, preceitua que "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".

Logo, não me parece coerente com a relevância do bem tutelado nas ações de medicamentos a aplicação do disposto no art. 77, inciso III, do CPC, pois, no caso em análise, a vida e a saúde devem sobrepor-se sobre a aludida formalidade, cuja aplicação só procrastinaria em vão o curso processual.

Vale ainda destacar que houve manifestação da parte autora no sentido de não querer demandar contra os demais entes. Embora seja comum a propositura de ações semelhantes nesta Vara Federal em face da União, a parte autora optou por demandar somente contra o Estado de Santa Catarina, amparado na norma do art. 23, II, da CF.

No âmbito da competência comum, fica à escolha do interessado optar contra quem deseja ingressar em juízo, não se podendo impor-lhe a obrigatoriedade do litisconsórcio entre os entes federados.

Julgando o Agravo de Instrumento nº. 2008.04.00.019184-9, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão de primeiro grau que indeferiu o chamamento ao processo da União. Transcrevo a ementa e o acórdão:

MEDICAMENTOS. UNIÃO. PÓLO PASSIVO. INCLUSÃO.

Se a parte entendeu por litigar contra o Município e contra o Estado, não há porque obrigar a inclusão da União. Se, eventualmente, o magistrado estadual entender que, no caso específico, falece competência ao Estado, é ônus que incorria desde o início pela opção de ajuizamento.

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por maioria, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Porto Alegre, 16 de dezembro de 2008.

Ressalto que não seria o caso de suscitar conflito de competência, haja vista a Súmula n. 224 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

Excluído do feito o ente federal, cuja presença levara o Juiz Estadual a declinar da competência, deve o Juiz Federal restituir os autos e não suscitar conflito.

Acrescente-se ainda o fato de que o artigo 10 da Lei n. 9.099/95, aplicada subsidiariamente ao Juizado Especial Federal, rechaça de plano a possibilidade de qualquer tipo de intervenção de terceiros, conforme se vê:

Art. 10. Não se admitirá, no processo, qualquer forma de intervenção de terceiro nem de assistência. Admitir-se-á o litisconsórcio.

Desta feita, reconhecida a não-obrigatoriedade de inclusão da União na lide, não mais compete ao Juízo Federal o processo e julgamento do feito.

Por outro lado, deixo de determinar a devolução do processo à Justiça Estadual, tendo em vista que esta ação tramita por meio eletrônico, inviabilizando sua redistribuição, e porque os autos físicos provenientes da Justiça Estadual não foram encaminhados para este Juízo.

E não sendo o caso de declinar da competência, pelas razões acima alinhadas, outra solução não há senão a extinção do feito, por ausência de pressuposto (subjetivo) de existência válida e desenvolvimento regular do processo, qual seja, a competência do juízo.

Assim, a extinção sem exame do mérito é medida que se impõe.

III – DISPOSITIVO

Ante o exposto, EXTINGO O FEITO, SEM EXAME DO MÉRITO, nos termos do artigo 267, inciso IV, do Código de Processo Civil.

Sem custas e honorários advocatícios – art. 55 da Lei 9.099/95, c/c art. 1º da Lei 10.259/01.

Defiro a gratuidade da justiça.

Retifique-se a autuação, excluindo-se a União Federal e o Município de Imbituba do pólo passivo da demanda.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

DANIELA TOCCHETTO CAVALHEIRO
Juíza Federal

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