Ativismo judiciário

Interpretações criativas e riscos do abuso da toga

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22 de novembro de 2010, 18h42

Por ativismo judiciário tem-se entendido que é o exercício do poder jurisdicional sem aprisionamento aos limites formais da lide.

Essa limitação continua sendo um postulado do direito positivo que procede do romano através da res in judicio deducta [por exemplo: CPC, artigo 2º (prestação da tutela só quando requerida), artigo 127 (necessidade de autorização legal para os casos de eqüidade) e artigo 128 (deliberação judicial sob os marcos da controvérsia posta na lide); além dos casos de ação penal, adstrita aos termos da denúncia, e – em caso de procedimento por provocação privada – aos termos da queixa ou representação], mas o ativismo entende que a justiça “nua e inteira”, preconizada no verso de Camões, não pode ser mitigada, frustrada em seus efeitos ou obstada pela pretensão posta em um horizonte muito próximo, aquém daquele que o juiz tem o dever de ofício de enxergar para estender sua consciência e determinação.

O ativismo jurídico tem fontes materiais multifárias, antigas e recentes, e pode-se dizer sem medo, assim como determinadas idéias sobre o Estado moderno remontam a Platão, que o princípio jura novit curia já continha sua semente. Os glosadores da Escola de Bartolo, ao introduzirem a cláusula rebus sic stantibus, na Idade Média, ampliaram a um grau de conhecimento mais sofisticado a noção dos pacta sunt servanda. Dando outro salto no tempo, no século XX, aquela que ficou conhecida como a jurisprudência sociológica americana, entendia – em resumo – que a lei á aquilo que juízes dizem que ela é ou, noutras palavras, judge make law.

Entretanto, e esta é uma outra doutrina provinda do século XIX, o Direito não tem uma autonomia para atuar no éter, suas disposições correspondem a um mundo real, a relações reais que o definem e determinam. Por isso, sendo uma “superestrutura”, refletiu em tempos históricos variados transformações sociais muito grandes, com reposicionamento do que hoje chamamos – devendo tal nome ao sociólogo francês Alain Touraine – atores sociais.

No Brasil já tivemos institutos como o exame de relevância, através de argüição própria, que permitia ao Supremo Tribunal Federal apreciar em recurso extraordinário se efetivamente o apelo proposto continha a dimensão jurídica – ou o peso político, econômico ou social – que justificasse o reexame das deliberações de instâncias ordinárias (Constituição outorgada de 1969), e temos hoje o instituto da repercussão geral, que evidencia a presença de interesse supraindividual na causa (Constituição de 1988, pela EC 45/2004), e serve à reiteração de julgamentos em casos análogos. Numa e noutra hipótese, a regra constitucional criou condições de recorribilidade que se situam acima do interesse das partes na lide, e estão mesmo fora do alcance da vontade destas últimas, ao fixarem os termos da controvérsia. Esse fenômeno corresponde unicamente ao que se pode designar, de forma autêntica, como política judiciária; não visa à definição do direito em si mesmo.

As súmulas do Supremo, pelas quais se bateu o ministro Victor Nunes Leal, criando a jurisprudência dominante trouxeram um elemento praeter legem de peso significativo, ao direcionarem o texto da lei em determinado sentido, assim como as súmulas vinculantes, estas obra da iniciativa do ministro Nelson Jobim, impuseram a interpretação normativa ultra legem, de eficácia abrangente, tal qual os antigos prejulgados do TST, previstos no artigo 902 da CLT, que o Supremo – curiosamente – considerou inconstitucionais e depois foram revogados, há trinta anos.

Mesmo a substituição processual prevista na Constituição de 1988, que a jurisprudência considerou como ampla e incondicionada, assim como os muitos casos de legitimação de entidades várias para as ações coletivas e para suscitar a inconstitucionalidade direta de leis e atos normativos, mesmo essas grandes inovações legislativas, repete-se, pouco pareceram aos ativistas judiciais. Ou, por outro lado, talvez tenham sinalizado um caminho que eles julgaram poder seguir sozinhos em frente, prescindindo daquelas que a partir de então seriam tidas como amarras legais.

Esses sinais todos, deve ser dito em contraponto, indicariam que o ativismo judiciário não seria de todo imprudente, e menos ainda completamente inovador, não fosse ter ressuscitado fórmulas banidas de insegurança jurídica, que podem suscitar o abuso da toga, como anunciou o título deste trabalho.

Os juízes ativistas vêem-se dentre os atores no processo como protagonistas e trazem a esse enfoque o risco inerente do enfrentamento de toda sorte do comportamento antagonista, que necessariamente surgirá, pois as forças que se digladiam na constituição da lide, fracas ou poderosas, serão mais fracas ou mais poderosas segundo os magistrados estiverem engajados no protagonismo de um ou de outro. O efeito nefasto de tal comportamento passa despercebido aos ativistas e responde certamente pelo brutal questionamento da toga nos dias que correm, em que magistrados são cobrados pelo que fazem e pelo que deixam de fazer e, mais ainda, pelo que escolhem fazer e, finalmente, pelos motivos por que se impõem fazer.

O “pós-positivismo” jurídico
Quer por Hans Kelsen – a norma jurídica -, quer por Norberto Bobbio – o ordenamento jurídico -, o positivismo trouxe ao Direito uma concepção de sistema que foi pouco ou mal desenhada até o início do século XX. Só então grandes juristas, alguns em obras monumentais (Enneccerus, Kipp e Wolff, por exemplo), desenvolveram seus tratados que só haviam tido antecedentes em obras de filosofia, história e economia. Mesmo a Summa Theologica de Aquino teve seus já massudos postulados normativos da fé expandidos em medida multiplicada por tomos e mais tomos de análises jurídicas laicas, nos quais a palavra síntese certamente também era um pecado.

Hegel deve ser mencionado como precursor na edificação do sistema (não positivista, por óbvio), mas seu objeto era a filosofia (inclusive a do Direito) e seu objetivo a real conquista do “espírito”.

Entre nós, o positivista Pontes de Miranda também escreveu inumeráveis tomos, muito conhecidos mas hoje pouco consultados, e – entretanto – sua fórmula comtiana ficou expressa em uma obra menos famosa, de sociologia: os “fatores sociais” seriam sete, situados por grau de importância como em uma pirâmide. De um lado, estariam aqueles desestabilizantes, em ordem de importância, a Economia (1º), a Política (2º) e a Arte (3º). De outro lado, os estabilizadores, na mesma ordem de importância, a Religião, a Moral e o Direito. No ápice, a Ciência, que “diz o que é e o que não é”.

Embora as estripulias do século XX tenham posto a arquitetura de Pontes “de cabeça para baixo”, como Marx disse do sistema de Hegel, há de se convir que – como concepção a-histórica – o esquema valorativo do nosso jurista é interessante e, logicamente, impecável.

É claro que não há a ciência que Pontes de Miranda vislumbra; Beccaria, como citado no início e mais de duzentos anos antes, disse considerar venturosas as nações que – tratando do Direito – estivessem livres dela. É compreensível que ao tempo do nobre italiano ele estivesse designando a ciência ao modo dos fisiocratas, segundo os quais a lei que preside tudo é a lei da vida.

Há um ponto que é digno de registro: dentre os três fatores de estabilização, o Direito seria o de menor força (se comparado à Moral e à Religião) e conteria (por resquício de atração pela economia, pela política e pela arte – todos instabilizadores por excelência – uma potência instabilizadora também, ainda que pequena.

Pontes de Miranda, que gostava de socorrer-se da matemática, invocando uma vocação primeva, dizia que o Direito tinha grau 3 (o menor) de estabilização. Daí ver nele uma potencialidade modificadora também, embora contida. O engajamento no ativismo jurídico, no entanto, vê aí uma força avassaladora. E visa com ela a uma nova ordem inteiramente cerebrina, edificada somente com proclamações, numa escalada de palavras que se substituem aos fatos históricos.

O Positivismo foi um sistema construído no ar, pela atribuição – unicamente por essa via das palavras – de valores e situações ontológicas aos seus institutos, embora reivindicasse a lição da história, à qual não dava autonomia, no entanto, para compor a Lei dos Três Estados, a Religião da Humanidade, a alterinidade da ciência.

A contribuição positivista para a construção de sistemas, todavia, é inegável. Sua importância para a estruturação do pensamento jurídico não pode ser subestimada e é mesmo indelével, sob pena de um retorno aos postulados do Direito Natural, mas é uma outra ironia que a suposta evolução para o ativismo judiciário (que ultrapassaria os limites do pensamento positivista) na verdade regride a um mundo em que os chamados direitos inatos serve para compor uma deontologia, que só pode ser justificada pelo direito idealizado.

O “pós-positivismo” atribui ao seu sistema gnosiológico uma força redentora – quando ela é somente instabilizadora até um grau superlativo – pela via da interpretação e da aplicação voluntarista das leis. E confunde isso com um Direito novo, refundado em torno de objetivos escolhidos, que – tal como na matriz propriamente positivista – prescindem da história.

Regressão à ordem natural
A importância histórica do Direito Natural está expressa sobretudo em postulados, não em um sistema, que nele é fraco.

Os direitos humanos, a partir do Iluminismo, devem a eles toda a base teórica de sua formulação. Já a construção de um sistema baseado na ordem natural das coisas tem inspiração metafísica e, quando localizada no texto da lei, identifica um certo animismo atributivo.

Cumprir a finalidade predisposta ao Direito e encontrar razões em justificativas antecedentes para fazê-lo atuar, na busca de fins em si mesmos, eis toda a fraqueza de um pensamento basicamente escolástico. Não há dialética no Direito Natural; o quanto sua lógica alcança é aquela do silogismo perfeito. Ora, o silogismo é uma aplicação logicamente primária, quando já se conhece o resultado da operação e ele é utilizado para compor um raciocínio para trás, produzindo uma justificativa muito instrumental e oportuna.

Junto com os direitos humanos, é verdade, o reconhecimento de uma ordem natural atributiva de proteção e garantias ajuda a desenvolver agora o Direito Ambiental, diante dos desequilíbrios de abrangência planetária. Há sempre uma reserva de teorias passadas (não seria diferente quanto ao Direito Natural, pois o conhecimento é cumulativo) a ser retomada no plano dos argumentos da incessante criatividade humana.

Todavia, o ativismo judicial – quando não há um movimento histórico que lhe dê a estruturação de ampla mudança social e econômica – tal a do New Deal nos anos 1930 ou a do próprio movimento ambientalista das últimas décadas – persegue um tipo de intervencionismo que se deixa guiar por uma vontade de potência, tão redentorista que é mesmo deturpadora dessa expressão de Nietzsche.

Intervir na pressuposição de que a lei é anímica resulta em erro. Invocar padrões éticos para a conduta de julgamentos, como se eles fossem determinantes e autônomos da própria ação judicial, consiste em criar uma deontologia que está incerta de seus fins, pois eles resultam aleatórios, caso a caso, presos a uma subjetividade de valoração muito grande que – na verdade – com a pretensão de romper as amarras de um sistema positivista, vagueia em busca de uma ordem natural que estaria na alma, na paz benfazeja ou num modelo teleológico afinal identificado como sub specie aeternitatis.

O temor da militia togata
O dirigismo da democracia tem-se mostrado tão nocivo como a sua adjetivação, ao longo da história. Quase sempre os complementos verbais que são acrescentados a tal palavra, que hoje tem um reconhecimento público que os dispensa plenamente, ganham uma conotação restritiva. Democracias representativas não raro querem dizer que os representantes são usurpadores de um poder concedido, para exercício em seu próprio nome e interesse, e muitas vezes sua representação vem de um prestígio efêmero, decorrente da exposição nos meios de massa, por motivos que podem ser fúteis, aleatórios, comerciais ou de proselitismo religioso, por exemplo. As democracias populares (além da redundância de termos que essa expressão encerra) costumam limitar-se a homologação de listas de representantes escolhidos por uma nomenklatura, que lhes impõe um diktat.

Se já há uma dificuldade na expressão autêntica da vontade popular nas instâncias do poder político efetivo, entender que o arcabouço dessa vontade – expresso teoricamente na formulação das leis – ainda deva ser submetido à teleologia interpretativa de uma judicatura prisioneira da sua própria vontade é, com certeza, variando o sentido que lhe foi dado pelos antigos, criar uma milícia togada.

Muito se tem falado ao longo da história sobre as dificuldades de exercício do poder jurisdicional. Da sua insuficiência, quando a toga sofre os efeitos das ditaduras e da opressão, e perde sua condição reparatória ínsita; ou da sua prepotência de excessos, que enseja o abuso. Ainda há os casos da imensa pressão dos interesses contrariados, do corporativismo rançoso de outros agentes na cena jurídica, da opulência do vil metal corruptor. Mas o pior dos defeitos é a espera de que a investidura dos togados se confunda com o exercício do papel de promover a redenção, quer dizer, que eles tenham a si próprios e sejam assim tidos pelos outros como redentores de todos os defeitos humanos e, como demiurgos, intervenham na vida social como se alguém, seja das alturas, seja do abismo, guiasse a sua mão para reescrevê-la.

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