Quebra de decoro

OAB deve definir seu papel dentro da lei

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21 de novembro de 2010, 8h42

Defensor de uma celebridade esportiva suspeita de ter ceifado a vida de sua parceira e ocultado o seu corpo, caso que repercutiu além oceanos, o advogado Ércio Quaresma declarou publicamente nos últimos dias ser usuário do entorpecente denominado crack.

O assunto tomou as principais capas de jornais e horários nobres da televisão, assim como os sítios virtuais, especialmente os jurídicos e seus fóruns de discussão.

Com isso, considerável parcela da sociedade, que atacava veementemente o citado advogado por este defender um suposto homicida, se solidarizou à causa a ponto de oferecer auxílios para tratamento da tal dependência química.

Mas não foi o que ocorreu, ao menos até onde se conhece, com o conselho de classe ao qual o advogado é vinculado, ou seja, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ao contrário, logo vieram as declarações públicas de necessidade de abertura de processo disciplinar.

Cogita-se, até mesmo, suspender preventivamente o direito do exercício da profissão pelo mencionado advogado sob a alegação de repercussão prejudicial à dignidade da advocacia, conforme dita o artigo 70, parágrafo 3º da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia). Tudo isso com aval do Conselho Federal.

Pesada na balança da justiça, uma vida humana parece ser irrisória diante de interesses profissionais de uma classe que supostamente foram manchados, interesses esses que, ao fundo, visam única e exclusivamente o dinheiro, o poder.

De acordo com Ophir Cavalcante, Presidente do Conselho Federal da OAB, é dever do advogado preservar, em sua conduta, a honra, a nobreza e a dignidade da profissão, além de atuar com decoro, zelando por sua reputação pessoal e profissional. "A partir do momento em que o advogado não tem esse cuidado, obviamente fere as disposições do Código de Ética e Disciplina da OAB. A OAB não abre mão da aplicabilidade do seu Código de Ética porque a respeitabilidade e credibilidade da profissão estão ligadas à ética profissional"[1].

Mas o profissional citado, assim como todas as vítimas da conhecida droga denominada crack, merece o apoio da sociedade em um todo, especialmente da sua entidade de classe, seus pares profissionais que compartilham das dificuldades e privilégios que a confraria vive, e não de um processo eugênico que visa, em tese, impedir que trabalhe para saciar a sua fome e a de sua família.

Não se critica aqui a abertura de processo para apuração. O profissional do Direito sabe que é dentro do devido processo legal que se discutem fatos, direitos e obrigações. O que se critica é o pré-julgamento que se faz diante de um fato que é matéria de saúde pública. Ou seja, dar-se a entender que o citado profissional, por ser dependente químico, infringiu dolosamente o código de ética da sua profissão.

E como o advogado ora citado, existem centenas, talvez milhares, de advogados vítimas de vícios como o alcoolismo, drogas químicas, jogos de azar, etc. A OAB deve estender as mãos para a sociedade, mas não somente a esta, e sim para os seus membros, ainda que seja a mesma mão que outrora segura a caneta da punição.

A Ordem dos Advogados do Brasil deve, primeiramente, começar conceituando a sua natureza jurídica dentro do direito administrativo, de modo a definir qual a sua competência para policiar as atividades dos causídicos. A história é longa, o resumo segue e a dúvida permanece.

Quando o Congresso Nacional editou a Lei 9.649/98, que determinou que os conselhos profissionais tivessem a partir de então natureza privada, a OAB, por razões desconhecidas, conseguiu ser uma exceção e permaneceu entidade pública.

Contudo, mais tarde a Suprema Corte brasileira, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.717, entendeu inconstitucionais alguns dos dispositivos dessa norma, sob o argumento de que entidades privadas não poderiam receber do Estado uma delegação do poder de polícia para fiscalizar as profissões.

Em outra ADI (3.026), a mesma Suprema Corte disse que "a OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como ‘autarquias especiais’ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’", tampouco, "por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária".

Ainda, "a OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público" e que "não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional."

Por fim, esclarece que "não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro".

Portanto, se é serviço público, deve-se respeitar — não se diz aqui que não se respeita — os princípios elencados no artigo 37 da Constituição Federal, bem como haver a necessidade de concurso público para contratação de pessoal, fruição de imunidades tributárias, controle pela Corte de Contas e outros. Mas não é o que ocorre, por força de decisão do STF.

Não se concebe, diante do direito administrativo brasileiro, a existência de um ente público sem ser vinculado ou subordinado a qualquer dos poderes da República, os quais se limitam reciprocamente dentro do sistema de freios e contrapesos. Tem, atualmente, o privilégio de ser uma entidade criada pelo Supremo Tribunal Federal.

Noutras palavras significa dizer, no campo prático, que, segundo a jurisprudência, as anuidades pagas aos conselhos profissionais são tributos, exceto os da OAB por ser "dinheiro dos advogados". Ainda, "não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. Ela pertence a uma categoria ímpar". É o que está cravado na citada ADI 3026/STF.

Portando, deve a honrosa Ordem dos Advogados do Brasil definir a sua conceituação e o seu papel dentro da lei, de modo a, posteriormente, avaliar as suas competências para policiamento administrativo de atividade que vai de encontro com a liberdade do exercício profissional, que é cláusula pétrea da Carta da República.


[1] http://www.oab.org.br/noticia.asp?id=20942, acesso em 18 de novembro de 2010.

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