Falta de perspectiva

Novo CPC esquece da equidade perante as decisões judiciais

Autor

  • Luiz Guilherme Marinoni

    é professor titular de Direito Processual Civil da UFPR pós-doutorado na Università degli Studi di Milano e membro da comissão de juristas instituída pela Câmara dos Deputados para elaboração do anteprojeto do Código de Processo Constitucional.

11 de novembro de 2010, 21h39

Fala-se, sem muita preocupação com a consistência, que as ideias de criação judicial do direito e de stare decisis, próprias ao common law, são frutos da inação do legislativo, e que, por isto, um país de direito legislado nada teria para aproveitar ao olhar para sistemas como o inglês e o estadunidense. Acontece que, se esta falta de atuação – um dia – pode ter contribuído para o desenvolvimento do direito jurisprudencial no primitivo common law, há certamente outra história por detrás dos precedentes obrigatórios[2].

Na Inglaterra, em virtude de contingências culturais e políticas que agora não podem ser melhor desenvolvidas, os juízes e legisladores se mesclaram para defender os direitos do povo contra o monarca. Enquanto isto, a Revolução francesa, além de ter instituído um direito novo e destruído o poder real, também foi obrigada a calar os juízes. Isto porque os magistrados, na França do antigo regime, eram fiéis escudeiros do status quo. Exerciam o poder para impedir quaisquer avanços que pudessem comprometer os interesses do rei e dos senhores feudais. Daí a revolução francesa ter negado o Judiciário, como se vê na célebre fase de Montesquieu – os juízes devem se comportar como seres inanimados, limitando-se a pronunciar as exatas palavras da lei. A revolução francesa transferiu o poder do monarca para o Parlamento – que, mais tarde, tornou-se absoluto e arbitrário. Mas, retenha-se o ponto, colocou o Legislativo e o Judiciário em polos opostos, ao contrário do que ocorreu na Inglaterra diante da chamada Revolução Gloriosa, quando uma mesma casa passou a ser compartilhada pelos legisladores e juízes para fazer valer o direito ancestral dos Englishmen, vale dizer, o common law.

Esta breve introdução é fundamental para demonstrar porque o civil law criou o dogma de que o juiz se limita a atuar a lei, enquanto o common law jamais precisou negar o poder criativo dos juízes. Lembre-se que, logo após a revolução francesa, lei revolucionária proibiu os juízes de interpretar a lei, obrigando-lhes, em caso de dúvida interpretativa, a recorrer a uma comissão formada por legisladores. A célebre corte de cassação, instituída no mesmo ano de 1790, teve igual propósito, pois objetivou cassar as decisões destoantes da lei, compreendidas como as que pudessem comprometer os avanços desejados pelo Parlamento, isto é, pelo novo poder.

A evolução do civil law, portanto, é a historia da superação de uma ideia instituída para viabilizar um desejo revolucionário, e que, assim, nasceu com a marca da utopia. Nesta historia tem lugar de destaque o constitucionalismo, notadamente o controle judicial da constitucionalidade da lei, a submissão da interpretação da lei à Constituição e o conceito de norma legislativa incompleta – ou de norma que deve ser completada de acordo com as circunstâncias concretas, permitindo a infiltração dos direitos fundamentais na resolução do caso. Note-se, assim, que a evolução do civil law inverteu os papéis desejados pela sua tradição, dando ao juiz o poder de interpretar, completar e negar a o direito produzido pelo legislativo, e até mesmo de criá-lo, no caso de omissão do legislador na tutela de um direito fundamental.

Mas é exatamente ai que aparece o brutal problema do nosso tempo. O sistema brasileiro – que adota o controle difuso de constitucionalidade -, não se deu conta de que esta forma de poder judicial coloca em risco a coerência da ordem jurídica, a segurança e a igualdade, valores fundamentais em qualquer Estado de Direito.

A ordem jurídica deve ser coerente. A ordem jurídica, como é obvio, não é formada apenas pelas leis, mas também pelas decisões judiciais. Como diz Neil MacCormick, fidelidade ao Estado de direito requer que se evite qualquer variação frívola no padrão decisório de um tribunal para o outro[3]. Múltiplas decisões para casos iguais revelam uma ordem jurídica incoerente.

Ademais, as decisões judiciais devem ser previsíveis. A previsibilidade das decisões constitui valor moral imprescindível para o homem poder se desenvolver[4]. O mínimo que o cidadão pode esperar, num Estado de Direito, é o respeito à confiança gerada pelos atos e decisões do Poder Público. Daí, aliás, a simbiose entre os princípios da segurança e da confiança.

Fora isto, a tradição do civil law, quando aplicada aos nossos dias, faz pouco da igualdade. O direito processual costuma se preocupar com a igualdade no processo – ou seja, com a igualdade de tratamento no interior do processo – e com a igualdade ao processo – isto é, com a simétrica disponibilidade de técnicas processuais -, mas se esquece, por desprezo à realidade da vida e dos tribunais, da igualdade perante as decisões. O dizer, insculpido na velha placa colocada sobre a cabeça dos juízes, de que a lei é igual para todos, constitui escárnio a aqueles que, diariamente, assistem colegiados de um mesmo tribunal, ou mesmo tribunais estaduais ou regionais distintos, proferindo decisões diferentes para casos absolutamente iguais.

Apenas o sistema que privilegia os precedentes pode garantir a coerência do direito, a previsibilidade e a igualdade. Advirta-se que o stare decisis não nasceu junto com o common law e com ele não se confunde. Como a tradição de common law jamais negou – ou precisou negar – o poder criativo dos juízes, o respeito aos precedentes surgiu naturalmente, no curso do desenvolvimento do common law, para garantir a igualdade e a segurança jurídica.

As normas abertas, ou seja, as normas legislativas incompletas, podem permitir variadas decisões para situações idênticas. Considere-se, por exemplo, a norma do art. 461 do Código de Processo Civil, que dá ao juiz o poder de impor o meio executivo “necessário” à tutela especifica. Somente o respeito aos precedentes é capaz de evitar que um juiz imponha determinada medida executiva, com o conseqüente e gravíssimo prejuízo à esfera jurídica do réu, quando o Superior Tribunal de Justiça já definiu que, para igual hipótese, tal meio de execução não pode ser aplicado.

Por outro lado, é pouco mais do que absurdo pensar em controle difuso da constitucionalidade sem precedentes obrigatórios. O controle de constitucionalidade coloca os juízes numa posição de supremacia em relação aos legisladores. Pergunta-se, assim, como os juízes, não eleitos, podem negar o que foi feito pelos representantes do povo. Ainda que se possa dizer, com acerto, que o Judiciário, ao controlar a constitucionalidade da lei, não nega a teoria democrática ou a vontade do povo, mas apenas controla a decisão da maioria que desborda da Constituição, é evidente que, depois de o Supremo Tribunal Federal ter se pronunciado pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade, nenhum tribunal pode decidir em sentido diverso, uma vez que, se isto pudesse acontecer, teríamos, ao final das contas, duas ou mais Constituições se digladiando e uma total deslegitimação do controle judicial da lei a partir da Constituição.

Não é por outra razão que não se pode deixar de adotar a teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes da decisão tomada em sede de recurso extraordinário, que, bem vistas as coisas, é uma boa versão da doutrina dos precedentes obrigatórios.

Porém, mais preocupante, para o Estado Democrático de Direito, são as decisões de juízes e tribunais que, sob a desculpa de aplicar os direitos fundamentais, afirmam valores morais particulares, impondo as suas opções pessoais sobre a vontade do governo majoritário. Isto coloca no lugar da democracia uma aristocracia em desacordo. Uma aristocracia composta por juízes que não se entendem. Note-se que a plurissignificação judicial do sentido da Constituição, própria a um sistema que não convive com a lógica dos precedentes, retira do controle da constitucionalidade a função de salvaguarda da Constituição, fazendo surgir, isto sim, a sobreposição de vontades morais sobre o produto do legislativo.

O atual sistema brasileiro padece da tirania de alguns juízes que gostariam de poder impor as suas concepções morais sobre a Lei, a Constituição e a Democracia. Atente-se para o que fazem alguns magistrados diante – por exemplo – do direito fundamental de propriedade, que, sem a Constituição Federal nas mãos, preferem utilizar determinadas “cartilhas” ou se esconder atrás de um nebuloso conceito de “interesse público”, proferindo decisões contrárias a própria linguagem da Constituição.

O caos do nosso sistema jurídico gera grande preocupação. Lamentavelmente, o anteprojeto de CPC não trata adequadamente do nosso assunto, já que não tem qualquer base na teoria do direito constitucional, além de confessar, de modo curiosamente contraditório, sequer ter um projeto de futuro, mas apenas a pretensão de reorganizar o tecido normativo processual.

É preciso, para terminar, sublinhar que o processo não mais se legitima mediante os velhos princípios do direito processual civil do século XX, sendo hoje necessário garantir a igualdade perante as decisões judiciais e resultados justos, compreendidos como decisões que afirmem o verdadeiro sentido dos direitos fundamentais.


[1] Texto base da conferência proferida no Congresso de Direito Processual, realizado pelo Instituto dos Advogados do Paraná entre os dias 21 e 23 de outubro de 2010. Pelo Congresso realizado em minha homenagem, agradeço, mais uma vez, aos advogados do Paraná e, em especial, à Dra. Rogéria Dotti – Presidente do IAP – e aos Drs. Vicente Paula Santos, Alcides Munhoz da Cunha e Estevão Corrêa.

[2] Para aprofundar o presente tema, ver o meu livro recém lançado, Precedentes Obrigatórios, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2010.

[3] Neil MacCormick, Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning. New York: Oxford University Press, 2005. p. 188.

[4] Neil MacCormick, Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning., cit., p. 192.

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