Justiça na História

Caso Isabella terminou num espetáculo deprimente

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30 de março de 2010, 9h01

Spacca
Coluna Cassio Schubsky - Spacca

O infanticídio é daqueles crimes que conseguem fazer aflorar as mais desmedidas reações coletivas, partindo da repulsa natural à brutalidade cometida de ser humano contra ser humano.

A comiseração, o dó, a pena despertada pela absoluta falta de capacidade de reação dos pequenos, é atávica, vem de longe, a começar das narrativas bíblicas: quando o faraó do Egito manda matar bebês israelitas do sexo masculino, a mãe do infante Moisés opta por deixá-lo a boiar pelo rio num cesto, para que o filho escape da sanha assassina, suspendendo a respiração aflita de milhões de fiéis ao longo dos séculos, até o fim dos tempos.

O julgamento do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, acusados pela morte da filha dele, a pequena Isabella, terminou, na semana passada, em condenação e em um espetáculo deprimente de histeria coletiva, açulada pelas câmeras de televisão. Um festival de intolerância, que dá o que pensar, em época pascoal de malhação do Judas, e nos anima a rememorar lições que a Justiça na História nos oferta.

O julgamento, chamado de “histórico” pela imprensa, incluiu cenas deploráveis com o advogado de defesa do casal, Roberto Podval, sob ameaça de agressão física e xingado por centenas de manifestantes aglomerados em frente ao local do julgamento; mesmo tratamento receberam familiares dos réus. Se o clamor popular é expressão legítima de anseio por distribuição de justiça, a intolerância deve ser combatida com vigor, porque traz um gérmen de ameaça à paz social que se espraia com furor destrutivo da própria ordem instituída.

Um filme emblemático

Reprodução
Cartaz - O vampiro de Dusseldorf - Reprodução Em 1931, poucos anos antes da ascensão de Adolf Hitler ao poder, institucionalizando a barbárie, o cineasta alemão Fritz Lang produziu uma obra-prima: M., o vampiro de Dusseldorf.

O filme mostra a ação de um infanticida, seduzindo crianças com doces e palavras melosas, para depois assassiná-las. A população da cidade alemã de Dusseldorf, apavorada com os crimes, começa a caçar, em bando, o suposto assassino – Lang, num golpe de mestre, transforma os populares também em vampiros, sequiosos por ver e sorver, em sentido (trans)figurado, o sangue de M.

A sede de vingança, temperada por alta dose de irracionalidade, assusta as autoridades constituídas, apercebidas do grau de ameaça à estabilidade institucional que representa a Justiça com as próprias mãos. A obra cinematográfica é primorosa, porque jogos de luzes, sombras e sons criam empatia do espectador com o perseguido, ameaçado em seu direito a um júri legal, com ampla defesa. Afinal, a Lei de Talião, nos tempos modernos, é uma ofensa à civilização.

Não é difícil perceber que o enredo de Fritz Lang é premonitório do que se passaria logo em seguida na Alemanha nazista, com o Estado disseminando o ódio e a violência, instigando a agressão física da coletividade contra determinados grupos sociais. As consequências horrendas do nazismo são uma chaga aberta na história humana, com sobreviventes do holocausto judeu a provar a dizimação, apesar de hoje tiranos insanos quererem negar o inegável, como o atual presidente iraniano, com o beneplácito do presidente da República do Brasil, para quem – santa ignorância! – negar o genocídio nazista é questão de opinião, de liberdade de expressão.

Bem, voltando ao casal Nardoni-Jatobá. Quando princípios elementares do Direito Penal, como a individualização da pena, adstrita apenas aos réus condenados em juízo, se veem ameaçados, é preciso que o poder instituído reaja, colocando as coisas nos devidos lugares. Foi, aliás, o que fez o juiz Maurício Fossen. Sem entrar no mérito da decisão, podemos dizer que ele agiu com temperança e equilíbrio no decorrer do julgamento do caso Nardoni, garantindo o contraditório, respeitando testemunhas e os outros operadores do Direito envolvidos no caso, prolatando a sentença com serenidade e firmeza, empunhando a espada da Justiça com o rigor que se espera de quem preside o Tribunal do Júri e impedindo excessos de populares ensandecidos. Sua atuação foi a de guardião da ordem democrática, um alento contra a espetacularização da Justiça e o império do olho por olho, dente por dente.

Permita-me o leitor afirmar o óbvio ululante: réu, mesmo cruel, é gente. Cabe ao Poder Judiciário zelar pelo respeito à dignidade da pessoa humana e pela tranquilidade social, impedindo que se cultive O ovo da serpente – título de outro filme, de 1977, dirigido pelo inigualável Ingmar Bergman. Nele, o cineasta sueco mostra como instintos de morte e vingança incontidos e, pior, estimulados, alimentam regimes de força, levando ao Estado totalitário e autoritário, que a sociedade civil organizada brasileira, em sã consciência, repudia e deplora.

Autores

  • Brave

    é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

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