Legitimidade Ativa

Supremo define se MP Estadual pode recorrer à corte

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28 de março de 2010, 9h04

O réu pode reclamar perante o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Estadual não pode? O questionamento, em tom de indignação, é do ministro Cezar Peluso, no exercício da presidência do STF durante a sessão de quinta-feira (25/3). O voto da ministra Ellen Gracie, que somente conheceu de Reclamação do Ministério Público de São Paulo porque a Procuradoria Geral da República assumiu a iniciativa, dividiu a opinião dos ministros do STF. Os mais novos, como Dias Toffoli e Cármen Lúcia, apoiaram a tese da relatora. Mas os ministros mais antigos, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso questionaram o posicionamento. O ministro Carlos Ayres Britto também não se convenceu e pediu vista do processo para oferecer um estudo sobre a questão.

A questão de fundo não traz dificuldade, mas o ministro Marco Aurélio entende que o mérito não pode ser discutido se não for reconhecida a legitimidade do Ministério Público Estadual para chegar ao STF por meio de Reclamação. Trata-se de Reclamação do MP de São Paulo (Rcl 7.358), com pedido de liminar, contra decisão do TJ-SP que, ao dar provimento ao Agravo em Execução 990.08.014874-5, cassou a decisão de primeira instância a qual decretara a perda dos dias remidos do executado, Reinaldo Ponciano, em razão do cometimento de falta grave.

A ministra Ellen Gracie relatou que o juiz da Vara de Execuções Criminais de Presidente Prudente (SP) reconheceu a falta grave do sentenciado e declarou a perda dos dias remidos pelo trabalho, no teor do artigo 127 da Lei de Execuções Penais. Mas, a 12ª Câmara do TJ-SP acolheu Agravo para restabelecer os dias remidos, desconsiderando a falta grave e afastando a aplicação da Súmula Vinculante 9, que teria sido editada em data posterior ao fato.

Ao ratificar a Reclamação, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, informou que a PGR assumiu a iniciativa da demanda, pois o Ministério Público de São Paulo não está legitimado a atuar perante a Suprema Corte, conforme reiterados precedentes. As funções do Ministério Público perante o STF são exercidas com exclusividade pela PGR, conforme o artigo 103, parágrafo 1º da Constituição Federal. Gurgel disse ainda que a Súmula Vinculante 9 não introduz direito novo, se limita a interpretar normas legais anteriores, não havendo que se falar em prejuízo na sua aplicação retroativa.

A ministra julgou procedente o pedido para cassar o acórdão do TJ-SP e restabelecer a sentença originária. Explicou que o julgamento do Agravo ocorreu posterior à edição da Súmula Vinculante 9, mas não procede o fundamento de que o dispositivo não se aplica, por ser posterior à data da falta grave, pois a referida súmula se destina à obediência pelos tribunais. “Portanto, uma decisão posterior à edição da súmula, forçosamente, haveria de respeitá-la”, afirmou. A ministra Ellen Gracie reconheceu a legitimidade da PGR que, segundo ela, corrigiu a ilegitimidade ativa do MP-SP ao assumir a iniciativa da demanda.

O ministro Marco Aurélio, que seria o último a votar, se antecipou para alertar sobre o que considera “um problema seríssimo”. Para ele, “a permanecer a ótica da ilegitimidade de quem apresentou a Reclamação (MP-SP), haveria um obstáculo maior ao surgimento de uma ficção jurídica de uma nova Reclamação subscrita pelo PGR. O Ministério Público Estadual atuou nas duas instâncias anteriores. Vindo a ser provido esse recurso, questiono se o Ministério Público Federal seria parte legítima para alçar a controvérsia ao Supremo. Creio que não, o MPF teria até uma dificuldade de acompanhar o julgamento de todos os casos nos Tribunais de Justiça”, afirmou.

Ellen Gracie disse que o MP Estadual não está privado de sua atuação, poderá representar o PGR para encaminhar a Reclamação. Marco Aurélio voltou a discordar e disse que “o MP Estadual é parte legítima para chegar ao Supremo, via Reclamação. Se assentarmos essa ilegitimidade, nós estaríamos impossibilitados de julgar o mérito da Reclamação”, concluiu.

O ministro Celso de Mello concordou com a divergência. Disse que “o MP do Estado membro dispõe de legitimação par formular Reclamação perante o STF, em situações como esta. O STF deixou assentado que o MP do Trabalho não dispõe dessa legitimidade por uma singularidade, ele integra o MPU, cujo chefe é o procurador geral da República. Mas, não existe qualquer relação de dependência entre o MPF e o MP dos estados”. Celso de Mello disse ainda que o MP Estadual “pode eventualmente se sucumbir, ou porque foi denegada a liminar, ou porque extinguiu-se anomalamente o processo de Reclamação. Caberia ao próprio parquet reclamante fazê-lo, sob pena de se reconhecer ao particular, que é legitimado para a Reclamação, maior poder processual que do que ao Ministério Público contra quem, muitas vezes, ele está contendendo num determinado procedimento”.     

Cezar Peluso entendeu que o MP Estadual interpôs um remédio jurídico junto ao STF. “Ele não está atuando. Atuar perante o STF, com a legitimidade exclusiva do PGR, supõe atuar no âmbito da corte. A interposição de qualquer recurso na origem não significa atuar perante a Corte.”

Ellen Gracie voltou a argumentar contra a legitimidade do MP Estadual. “Alargar essa legitimação ativa corresponde a uma atitude praticamente suicida da corte, fazendo com que acorra um sem número de pedidos que não vai passar pelo crivo da Procuradoria Geral”. A ministra defende que os procuradores estaduais encaminhem as suas representações à PGR, onde haverá necessariamente uma triagem para verificar o que pode ser objeto de ação. “Não fiquemos aqui na Suprema Corte, exatamente na contramão do que ocorre em todos os países do mundo, onde a legitimação para atuar perante a Suprema Corte é extremamente restrita sempre ao contrário do que fazemos nós, que cada vez abrimos mais as portas.”

“Esse caso é semelhante a quando o MP interpõe Recurso Extraordinário ao Supremo”, respondeu Cezar Peluso. Para ele, o MP pode interpor um remédio jurídico direto ao STF contra outra decisão que não é do Supremo. Caso contrário, o MP “jamais poderia ter entrado com Recurso Extraordinário”. Entretanto, a ministra Ellen Gracie não entende que a Reclamação seja um recurso, mas uma ação originária no STF.

Dias Toffoli acompanhou a relatora, mas reconheceu que “pode haver conflito de competência entre o MPF e o MP Estadual”. Para ele, nos casos em que o MP Estadual quiser agir em direito próprio, deverá se fazer representar por sua procuradoria, seu corpo de advogados. Foi contestado pelo ministro Celso de Mello, para quem o MP “tem capacidade postulatória”. Toffoli respondeu que “a própria PGR se socorre da Advocacia Geral da União para entrar com pedido de suspensão liminar em matéria de concurso público”.

Advertido por Cezar Peluso, o ministro Dias Toffoli concordou que a matéria é distinta do caso específico, mas voltou a afirmar que “quando o MP atua nas suas competências restritas, os Ministérios Públicos estaduais devem encaminhar ao PGR a sua demanda para que este ratifique ou não para que tenha seguimento na Corte. Sendo a Reclamação uma ação que tem a sua competência originária no STF, entendo, pela leitura da Constituição, que só o PGR tem essa competência de propor”, disse.

Os ministros discutiram por longo tempo sobre a natureza jurídica da Reclamação. Para Cezar Peluso, no caso específico, o MP usou a medida como remédio jurídico, sendo apoiado por Celso de Mello e Marco Aurélio. Com entendimento contrário, Ellen Gracie disse que o MP só pode atuar no STF dentro dos autos, em caso de recurso à Corte. Porém, a Reclamação não seria um recurso, mas um pedido originário. Recebeu o apoio de Dias Toffoli e Cármen Lúcia.

Outro tema debatido foi a necessidade do MP Estadual se socorrer pela PGR para pretensões regionais. “Frustraria a possibilidade do MP Estadual efetuar o controle quando ao respeito a uma Súmula Vinculante pelo Tribunal local”, advertiu Celso de Mello. Para ele, “o MP Estadual ficaria dependendo de controle do PGR quanto a sua capacidade reclamatória. Porém, no caso, o MP Estadual atuaria como parte, enquanto o PGR atuaria como fiscal da lei”.  Nesse ponto, a discussão girou em torno da submissão do MP Estadual ao MPF ou, em contrário, a unicidade do Ministério Público.

Cezar Peluso reafirmou a legitimidade exclusiva do PGR para peticionar perante o STF, mas recorreu ao texto do artigo 46 da Lei Complementar 75/93, que foi base para aquela orientação, para tentar esclarecer a questão. Disse que a mencionada lei estabelece as funções típicas do Ministério Público Federal, sob a chefia do PGR. “Não regula nada a respeito do Ministério Público Estadual e diz que o PGR manifesta-se previamente em todos os processos de sua competência”. Além disso, “propor Reclamação não é função típica do Ministério Público, é função de todo aquele que se sente agravado”.

Mas, o momento de maior discussão ocorreu quando o ministro Carlos Ayres Britto decidiu participar da discussão e lembrou que “a Constituição Federal, quando tratou da Ação Direta de Inconstitucionalidade, considerou o procedimento uma via de atalho que possibilita desembocar diretamente no STF, habilitando para tal somente o PGR”. Para ele, a situação da Reclamação é idêntica. Mas, o ministro Peluso discordou, dizendo que no caso da ADI a Constituição foi clara em excluir dos legitimados todos os demais entes, inclusive o MP Estadual.

Ayres Britto analisou que “a Constituição trata o Ministério Público como ente binário ou dual, o MPU e o MP dos Estados. Mas, a Constituição contém disposições comuns às duas espécies de MPs. Uma delas é a unidade processual. Quando o PGR atua em matéria de Reclamação direta no STF, o faz em nome do MP como unidade processual”.

“Se for assim, vamos reconhecer que o MP do Estado é menos importante do que o MPF, porque qualquer pessoa pode reclamar perante o STF”, respondeu Peluso. “Veja a diferença de tratamento numa mesma causa, o réu pode vir diretamente ao STF, mas o MP do Estado, que atua no outro ponto da causa, não pode”, disse o ministro. Assim como Celso de Mello, o ministro Peluso não aceita que o PGR atue em nome do MP Estadual, pois é chefe somente do MP Federal. “O MP do Estado vai ficar na dependência do que entende o MPF para exercer a sua função de fiscalizar a execução penal e isso é incompatível com princípios de independência processual. Parece que estamos tirando do MPE a legitimidade que é essencial a suas funções, que não são exercidas pelo MPF”, disse Peluso.

Para Dias Toffoli e Ayres Britto, o artigo 127 da CF estabelece a unidade processual que supera a questão da hierarquia, inexistente entre os dois entes. Mas, Celso de Mello disse que “a unidade do Ministério Público não pode ser invocada para suprimir a autonomia institucional dos MPs estaduais”.

Diante da dificuldade de se chegar a um consenso e considerando a necessidade de votar a questão com a composição completa do Plenário, o ministro Ayres Britto pediu vista do processo. “Eu nunca consegui separar o princípio da unidade do Ministério Público do princípio da indivisibilidade, que são palavras expressas da Constituição. Vou tentar fazer essa distinção conceitual nesse meu pedido de vista”, disse.

Ricardo Lewandowski fez questão de dizer que aguardou “disciplinadamente” a sua oportunidade de intervir no debate. Sugeriu que além da ótica dos princípios de unidade e indivisibilidade, a questão seja analisada “também sob a perspectiva do princípio federativo, para iluminar a autonomia institucional do MP local”. Lewandowski também entende que no caso em discussão, o MP Estadual atuou como parte em Agravo a Execução e lançou mão de um remédio expedito para fazer valer uma decisão do STF útil ao processo em que ele é parte”.

Após os votos da ministra relatora, Ellen Gracie, e do ministro Dias Toffoli, que reconheceram a legitimidade ativa exclusiva do PGR, e dos votos dos ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezer Peluso, que a reconheceram ao Ministério Público Estadual, pediu vista o ministro Ayres Britto. Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski aguardam o voto vista. Eros Grau, Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes não participaram da sessão. 

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