Direito e dever

OAB deve vigiar atos de violação do sigilo

Autor

  • Alberto Zacharias Toron

    é advogado defensor de Aldemir Bendine doutor em direito pela USP professor de processo penal da Faap e autor do livro "Habeas Corpus e o Controle do Devido Processo Legal" (Revista dos Tribunais)

22 de março de 2010, 8h14

O tema posto a nossa reflexão, antes mesmo da definição do que é sigilo profissional, reclama uma importante distinção: o sigilo como dever e como direito para o advogado. No primeiro caso, muitas legislações, há mais de um século, prevêem a criminalização da conduta daquele advogado que, sem justa causa, viola o dever de manter o segredo em relação aos fatos de que tenha conhecimento no exercício da sua atividade (1). Aqui não há novidade alguma a ser discutida. No caso específico do advogado, pode-se dizer que, ao incriminar a violação do sigilo, o legislador protege o cidadão duplamente: de um lado sua intimidade e, de outro, o próprio devido processo legal, pois a eficácia de sua defesa na demanda civil ou na ação penal restaria comprometida se dados fossem revelados ao público ou, pior ainda, à parte contrária. Diante da importância dos bens jurídicos em questão, são antigas as previsões legislativas para punir, entre outros profissionais, o advogado que viola o dever ético do sigilo (2).

Todavia, sem qualquer diminuição da importância do dever que o advogado tem de preservar o segredo profissional, a dimensão concernente ao direito ao sigilo, isto é, como prerrogativa profissional, revela-se, hoje, mais relevante e, não raro, dramática. Diante de seguidas interceptações telefônicas e escutas ambientais efetuadas em escritórios de advocacia; diante das escutas em parlatórios nos estabelecimentos prisionais, captando as conversas do advogado com seus clientes, além, é claro, das famigeradas buscas e apreensões de documentos em escritórios de advocacia, resta evidente que o ponto alto do tema é a criminalização da violação do sigilo por determinação dos juízes e não a violação cometida pelos próprios advogados. Aliás, raridade que a jurisprudência brasileira mal retrata nos seus repertórios. No Brasil, a luta pela “criminalização da ofensa às prerrogativas profissionais dos advogados” expressa, entre outros, o repúdio aos abusos praticados em matéria de investigação penal que atenta contra o sigilo profissional.

O tema, no entanto, é espinhoso e, como se verá, está sujeito às maiores dificuldades. Basta, a propósito, lembrar que hoje, até mesmo leis chegam a obrigar os advogados a realizarem “costumer due diligence” e de reportarem às autoridades operações suspeitas de lavagem de capitais de seus clientes (3). Portanto, mais do que decisões judiciais invasivas, temos agora leis que corroem o sigilo profissional, impondo aos advogados ônus que não se conciliam com a natureza de suas atividades.

Sigiloso, ou merecedor de segredo, é tudo aquilo “que não deve ser divulgado, tornado público ou conhecido de pessoas não autorizadas” (4). É, enfim, “o que se oculta ou não se deve dizer”(5). De um ponto de vista estritamente jurídico, porém, a noção de segredo confina-se a “todo informe cuja revelação possa produzir dano” (6), não sendo, portanto, incriminada a revelação de segredo anódino (7).

Tradicionalmente, ao cuidar do dever do sigilo em relação aos profissionais em geral, isto é, aqueles que em razão do ofício ou ministério ___ tais como, para exemplificar, advogados, médicos, psicólogos e sacerdotes ___ a doutrina aponta como bem jurídico tutelado a liberdade individual e, mais particularmente, a intimidade do indivíduo. No caso específico dos advogados, é de rigor que os assuntos tratados no confessionário de seus escritórios sejam, como regra, de natureza sigilosa. É que os temas ali versados podem ir das mazelas pessoais e familiares a assuntos de segurança nacional, passando, entre outras, por intrincadíssimas questões negociais e societárias. Assim, é natural que a violação sem justa causa do dever de segredo venha incriminada em razão de danos, anda que potenciais, que possa causar. A proteção penal, na linha do escólio de Francesco Palazzo (9) é, portanto, corolário da regra constitucional que tutela a intimidade e a vida privada (Constituição Federal, artigo 5º, inciso X).

Embora não se possa descuidar da proteção à intimidade e da própria imagem das pessoas, quando se trata da incriminação da quebra indevida do sigilo profissional do advogado, há algo transcendente na exigência de manutenção do segredo e que atina com o devido processo legal. Sim, porque sem confidencialidade o cliente não tem a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado, o que, convenha-se, é essencial ao pleno exercício do direito de defesa. Bem por isso, o Tribunal de Primeira Instância da União Européia (Primeira Secção alargada) afirmou: “o princípio da confidencialidade das comunicações entre advogados e clientes constitui um complemento necessário ao pleno exercício dos direitos de defesa”, pois “importa assinalar que a confidencialidade das comunicações entre advogados e clientes responde à exigência de que todo o cidadão deve ter a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado, cuja profissão inclui a tarefa de dar, de forma independente, pareceres jurídicos a todos os que deles necessitem” (acórdão AM&S, n. 18). Esse princípio está assim intimamente ligado à concepção do papel do advogado, considerado um colaborador da justiça (acórdão AM&S, n. 24) (8).

O julgado em exame, com extrema felicidade, retrata uma realidade do nosso cotidiano: “para que um cidadão possa ter a possibilidade de se dirigir utilmente ao seu advogado com toda a liberdade e para que este possa exercer com eficácia a sua missão de colaborador da justiça e de assistência jurídica com vista ao pleno exercício do direito de defesa, pode revelar-se necessário, em determinadas circunstâncias, que o seu cliente prepare documentos de trabalho ou resumos, designadamente para reunir as informações que serão úteis ou mesmo indispensáveis a este advogado para compreender o contexto, a natureza e o alcance dos factos para os quais a sua assistência é pedida” (9). Não por outra razão é que o acórdão conclui ser de interesse público “assegurar plenamente que todo o cliente tenha a possibilidade de se dirigir com toda a liberdade ao seu advogado” (10).

Corolário de tal entendimento foi a consideração da ilicitude das provas obtidas com violação a tal sigilo (11). Portanto, a violação do segredo profissional tem repercussões na própria administração da Justiça. De forma similar, a Corte Europeia de Direitos Humanos entendeu que o segredo profissional representa um capítulo dos Direitos Humanos, pois a sua violação normalmente envolve a quebra do direito a um julgamento justo e o direito à privacidade. E estes são direitos inalienáveis numa sociedade democrática. “If a lawyer were unable to confer with his client and receive confidential instructions from him without such surveillance, his assistance would lose much of its usefulness” (12). A propósito, o Código de Conduta para o Advogado Europeu (Code of Conduct for European Lawyer), no item 2.3.1, ao tratar da confidencialidade, nas águas da intelecção pretoriana, sufraga a seguinte ideia: The lawyer’s obligation of confidentiality serves the interest of the administration of justice as well as the interest of the client. It is therefore entitled to special protection by the state” (13).

Desse modo, podemos dizer que o direito ao sigilo profissional é, a um só tempo, um direito fundamental do cidadão na modalidade do direito à privacidade e, também, um direito ao devido processo legal. Daí a correção do antigo ensinamento de Magalhães Noronha quando, ao se referir à proteção penal ao sigilo profissional, advertia ser inegável existir “um interesse público nessa tutela, pois o Estado é diretamente interessado em que a própria pessoa também busque solução para suas necessidades que condizem com fins que são seus, como a saúde coletiva, a distribuição de justiça, a moralidade dos negócios etc.” (14).

Decorrência inexorável dessas colocações é a de que o sigilo, concebido como um direito do advogado e do cidadão que o procura, representa um limite à intervenção da atividade persecutória estatal. Sem embargo, reina hoje, lamentavelmente em muitos países, a visão segundo a qual a proteção de dados é sinônimo de proteção a delinquentes.


O poder punitivo numa democracia encontra-se limitado por várias disposições de caráter constitucional que atingem e restringem o seu exercício. Fortes nesse sentido são as disposições que regulando a atividade do processo penal inadmitem as provas ilícitas e, no direito penal, vedam as penas cruéis, perpétua e de morte. O conjunto de direitos e garantias individuais inscrito no artigo 5º da Lei Maior brasileira impede, concretamente, que se torture alguém em nome, por exemplo, da eficácia repressiva, descoberta da verdade, etc. O mesmo se pode afirmar em relação aos “grampos telefônicos”: a conversa interceptada ilicitamente, ainda que materialmente possa expressar alguma verdade, é imprestável. Também a desobrigação do cônjuge ou do irmão do réu prestar depoimento representa outra forma de se limitar o trabalho investigativo (Código de Processo Penal, artigo 206). O mesmo, por fim, vale quanto ao depoimento do advogado, cuja proibição é peremptória, salvo se desobrigado pela parte interessada (Código de Processo Penal, artigo 207). Disso se infere que, no campo do processo penal, há limites cognitivos à atividade persecutória estatal erigidos em nome de uma ética reconhecida pelo documento maior de nossa cidadania.

É, portanto, frise-se, em nome do interesse público, reconhecido pela Constituição, que se veda a introdução no processo de provas ilícitas. Por isso e para ilustrar, não se pode admitir que se pretenda válida uma confissão obtida mediante tortura sob o argumento de que em nome do interesse público deva prevalecer a confissão pelo que nela há de verdadeiro. Sustentar o contrário levaria ao absurdo de se afirmar que o direito de o cidadão não ser torturado, identificado como interesse individual, não pode se sobrepor ao da eficácia repressiva ou da descoberta da verdade real. Um disparate tão grande que nos colocaria na condição dos piores regimes totalitários.

No que concerne ao respeito do sigilo profissional do advogado, é evidente que o Estado não pode quebrá-lo para maior eficácia dos esforços repressivos. Como alerta Winfried Hassemer, “los religiosos, notarios o abogados no podrían existir si no se les garantizará un ámbito seguro en el cual pudieran almacenar todos los secretos que les fueron confiados en virtud de su profesión (esa es la convicción del ordenamiento jurídico alemán). En este sentido, el ordenamiento jurídico alemán frena el interés concerniente a la búsqueda de la verdad no sólo atendiendo al interés del profesional sino también atendiendo al interés de todos los ciudadanos de que estas profesiones subsistan pues todas estas son profesiones que se irían a pique se no existiese esta protección” (15).

De fato, em um sistema jurídico estruturado em torno de garantias fundamentais deferidas ao cidadão, soa especioso o asseguramento da amplitude do direito de defesa, que tem como pressuposto a livre escolha do advogado que vai exercer a defesa dos interesses do constituinte (e, portanto, deve com ele estabelecer laços de confiança, lealdade e intimidade), mas ao mesmo tempo se permita devassá-lo ou compeli-lo a revelar dados oriundos da relação profissional estabelecida. Admiti-lo nos conduziria a uma situação de absoluta insegurança e desconfiança, que tornaria impraticável, como já dito, o pleno exercício da defesa e, portanto, a Administração da Justiça ou, noutros termos, o devido processo legal. Só mesmo a mais desprezível das sociedades poderia agasalhar tal possibilidade, isto é, que o depositário da confiança do cidadão possa ser coagido a falar ou ser bisbilhotado por interceptações telefônicas e ambientais. Aliás, pelas mesmas razões, a realização de buscas e apreensões em escritórios de advocacia como meio de facilitar a colheita da prova é inaceitável.

Na discussão pretoriana estabelecida em torno de saber se o advogado constituído pelo investigado poderia ter acesso aos autos de inquérito policial gravado pelo sigilo, chegou-se a afirmar que o interesse deste no acesso às informações não poderia se sobrepor ao interesse público na eficácia das investigações que o inquérito, como instrumento de defesa do Estado, consubstancia (16). Num primeiro e superficial exame parece fazer sentido tal colocação, mas, na essência, tal raciocínio representa o que de mais aniquilador possa existir em matéria de supressão de garantias. Imaginemos a discussão sobre a prova ilícita. O agente público torturador sempre poderá dizer que o interesse maior na descoberta da verdade (ou na elucidação do caso) não pode ficar subjugado ao interesse do particular em não ser torturado. Idem para o popular “grampo telefônico”.

Ou bem se entende que as garantias individuais compõem um sistema que limita a ação do Estado e seus agentes, representando igualmente o interesse público, sendo, portanto, de igual relevância quando cotejadas com outros mecanismos de defesa social, ou as garantias serão meramente nominais, isto é, despidas de qualquer eficácia. Não é, francamente, este o status das garantias individuais, ao menos não em um Estado Democrático de Direito.

No caso brasileiro, dava-se um paradoxo: conquanto o artigo 7º, II, da Lei Federal 8.906/94 (Estatuto do Advogado) garantisse a inviolabilidade dos escritórios de advocacia, seus arquivos e dados, sua correspondência e suas comunicações, inclusive telefônicas, havia, na parte final do dispositivo, uma autorização para a realização de buscas e apreensões quando, tout court, determinadas por juízes.

A ressalva constante na versão original do Estatuto da Advocacia, que admitia a busca e apreensão quando determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB, não mais vigora. Com a reforma introduzida pela Lei 11.767/08, só se pode deferir busca e apreensão em escritório de advocacia quando o próprio advogado for investigado como autor ou partícipe do crime.

Pode parecer contraditório que, de um lado, a citada regra do artigo 7º do Estatuto assegure a inviolabilidade (intangibilidade) do escritório do advogado junto com seus arquivos, dados etc. e, de outro, no parágrafo 6º preveja a busca e apreensão quando o advogado for investigado. Todavia, uma análise da regra sob foco em consonância com o princípio da isonomia, cujo assento é constitucional, deixa claro que na hipótese do advogado que pratica crime no âmbito do seu local de trabalho, guardando, por exemplo, substância entorpecente (imagine-se a situação do advogado que guarda meio quilo de cocaína no cofre do escritório) ou tem petrechos para a falsificação de selos ou documentos oficiais, podem abater-se sobre ele medidas cautelares de caráter processual como a busca e apreensão, prisão processual e até a interceptação telefônica. Afinal, o advogado, tanto quanto o juiz, ou o membro do Ministério Público, estão, quando praticam crimes, como qualquer cidadão, sujeitos ao império da lei. A propósito, como procedentemente gizou o ministro Celso de Mello no voto condutor do Habeas Corpus 80.511-6-MG, no qual figurava como paciente o ex-presidente da República Itamar Franco, depois governador de Minas Gerais, “a responsabilidade dos governantes tipifica-se como uma das pedras angulares essenciais à configuração mesma da idéia republicana (RTJ 162/462-464)” (17).

Bem por isso é que a Lei Federal 11.767/08 cuidou de explicitar a possibilidade de o advogado sofrer busca e apreensão em seu escritório, mas somente quando esteja sendo formalmente investigado e resguardado o sigilo relativo aos documentos dos clientes (Estatuto, artigo 7º, parágrafos 6º e 7º). Mesmo porque, há uma diferença abissal entre o comportamento do advogado que pratica crime dentro ou fora do exercício da profissão e o daquele outro que recebe provas documentais para análise ou relatórios do cliente contando os fatos. Esta conduta se insere rigorosamente nos afazeres do profissional e está protegida de forma absoluta pela inviolabilidade do escritório e dos arquivos (tradicionais ou virtuais). A ressalva constante do disposto no artigo 243, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal (18), que permite a busca e apreensão no escritório do advogado quando este esteja de posse do corpo de delito, não permite que se confundam as coisas. Certo, como leciona Cleunice Bastos Pitombo, que “a inviolabilidade do escritório de advocacia não é absoluta”(19), mas, de acordo com a prudente advertência do saudoso Júlio Fabbrini Mirabete, ressalvado o que não seja representativo do corpo de delito, não se podem apreender outros documentos “em restrição advinda da necessidade de se manter o sigilo profissional e, mais ainda, do amplo direito de defesa”(20). Lembremo-nos que corpo de delito “é o conjunto dos elementos sensíveis do fato criminoso” (21) ou, como esclarece Damásio de Jesus, “é o próprio crime na sua tipicidade”, que se comprova através da perícia (22).


Contudo, uma interpretação conforme à Constituição, tendo em vista o disposto no artigo 133 e a garantia da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV), há de fazer incidir uma exegese ainda mais restritiva sobre o disposto no artigo 243, parágrafo 2º, do Código de Processo Penal editado no Estado Novo (23). A se permitir a busca e apreensão no escritório do advogado quando ele recebe documentos, ainda que representativos do corpo de delito, para os analisar, tornaria inviável o próprio exercício da profissão e a garantia da ampla defesa ficaria reduzida a nada. Estamos aqui no campo das assim chamadas liberdades negativas: por meio da qual se assegura esfera de liberdade ao indivíduo, que não deve sofrer vulnerações por parte do Estado. Portanto, no caso de recebimento de documento para análise, é vedada a realização de busca e apreensão no escritório do advogado ou seu local de trabalho. Outra intelecção retiraria do advogado aquele mínimo de segurança imprescindível para o exercício profissional. Se, porém, o advogado se dispuser a guardar o documento que constitua corpo de delito, a situação muda e ele, a teor do texto legal, poderá sofrer a busca e apreensão. É bom deixar claro que o produto do crime, a res furtiva, para citar um exemplo antigo, também pode ser objeto de busca e apreensão, pois aqui o advogado pode resvalar para o campo da própria prática criminosa na modalidade do favorecimento real (Código Penal, artigo 349) ou até mesmo receptação (Código Penal, artigo 180).

Outra situação pode ocorrer nos crimes econômicos, sobretudo no que diz com fraudes fiscais, evasão de divisas ou mesmo lavagem de dinheiro. Tem sido comum a afirmação de que o advogado que constitui para o cliente as denominadas off-shores (empresas no exterior), geralmente em paraísos fiscais, é partícipe do crime e, por isso, suscetível de sofrer medidas de caráter processual. Aqui, na grande maioria das vezes, quando se procede à busca e apreensão, mal se esconde o objetivo de apenas facilitar o caminho investigatório, obviando garantias constitucionais. Isso marca o viés autoritário dos que conduzem as investigações (e não se trata apenas das autoridades policiais, pois as buscas e apreensões são deferidas por magistrados com parecer favorável do Ministério Público).

O ponto central da matéria em exame está em que o segredo profissional na relação entre o cliente e seu advogado, protegido pela lei, deita suas raízes no interesse público cuja raiz constitucional pode ser encontrada não apenas no direito à privacidade, mas também no da garantia à ampla defesa e, consequentemente, no respeito ao devido processo legal. Sim, porque, como já dissemos, se o cidadão não tiver a segurança de uma efetiva proteção em relação ao profissional que o defenderá, não terá condições de relatar todos os detalhes da acusação que o envolve. Assim, a própria defesa ficará comprometida. Em outros termos, estamos aqui no campo da proteção, ainda que de forma mediata, dos direitos fundamentais e, portanto, o que à primeira vista pode parecer interesse privado do cliente e seu advogado, está de fato entrelaçado com o interesse público.

O diploma brasileiro que disciplina a escuta telefônica, Lei Federal 9.296/96, diferentemente da portuguesa e da italiana (24), não faz qualquer ressalva quanto à interceptação das conversas telefônicas entre o advogado e seus clientes. Todavia, a jurisprudência brasileira firmou o entendimento de que, salvo quando o próprio advogado é investigado pela prática de crime, é ilegal a interceptação de suas conversas telefônicas (25). Prevalece no caso a inviolabilidade assegurada pelo Estatuto do Advogado (artigo 7º, inciso II), uma vez que é lei especial. O Superior Tribunal de Justiça brasileiro ementou decisão em prol de um advogado que sofreu interceptação em suas conversas com seu cliente a qual fala por si só: “Em observância à liberdade de exercício legítimo da profissão, deve ser assegurado sigilo ao teor das interceptações deferidas em desfavor do paciente” (26).

Por outro lado, a escuta ambiental é apenas prevista na assim chamada Lei do Crime Organizado (Lei 9.034/95) a qual “dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”. Não há, de fato, qualquer regulação da atividade como, por exemplo, o estabelecimento de prazo para duração da escuta ou restrição quanto a seus alvos. Assim, no Inquérito 2424, originário do Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, considerou válida a prova consistente na escuta ambiental no escritório do advogado para fins de recebimento da denúncia. No caso, é bom ressalvar, o advogado era coinvestigado.

Seja como for, ressalvado o caso de o advogado ser investigado na qualidade de partícipe do crime, não se pode admitir a escuta ambiental no seu local de trabalho (27) e, ainda assim, as conversas captadas com outros clientes não podem ser admitidas como provas no âmbito de qualquer processo.

Diante do quadro que se apresenta escabroso em razão de abusos praticados no curso de investigações criminais, ou mesmo diante de diplomas que procuram combater a lavagem de capitais, não poucas vozes erguem-se reclamando a criminalização da ofensa às prerrogativas profissionais, entre as quais desponta o direito ao sigilo em face do poder punitivo do Estado. Com o respeito que merecem os que assim pensam, a proposta, ao menos no caso brasileiro, está desfocada e é simplista. É que desde 1979, portanto, há mais de trinta anos, o simples atentado “aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional” já constitui crime (Lei 4.898/65, artigo 3º letra j, com a modificação dada pela Lei 6.657/79). Esta lei não veio para proteger a atividade dos engenheiros, pintores ou médicos. Foi promulgada em plena ditadura militar em prol dos advogados.

Durkheim, no clássico Regras ao método sociológico, há mais de cem anos, já chamava atenção para o fato de que os crimes são definidos não pela "sua importância intrínseca, mas pela importância que a eles atribui a consciência comum" (28). Tome-se como exemplo das variações a recente proteção penal ao consumidor e ao meio-ambiente ou, mais remotamente, o crime de "bruxaria", prática incriminada pelas legislações medievais, mas não pelas modernas. Há, como assinala o professor português Taipa de Carvalho, uma inegável "condicionalidade sócio-cultural do direito penal" (29).

Portanto, a grande questão no Brasil não é a propalada criminalização das prerrogativas, mas sim a de saber o porquê da não-aplicação da já vigorante Lei de Abuso de Autoridade. Pensar que a promulgação de uma nova lei, por si só, venha a alterar o quadro é, para dizer o menos, muita ingenuidade ou exagerado otimismo. Como quer que seja, parece-nos mais aconselhável atentar para que o clima cultural de repressão a qualquer custo, ou de otimização dos meios de investigação, dita as condições de ineficácia da lei em vigor quando se trata de abuso contra o advogado. De resto, a comprovar a mentalidade invasiva em nome da eficácia investigativa, logo teremos leis (e não apenas recomendações), obrigando o advogado a denunciar seus clientes…

Por outro lado, o tema do sigilo profissional esbarra em matéria interpretativa de fatos e do plexo de normas incidentes o que torna ainda mais espinhosa a tarefa de punir abusos que, não raro, são praticados pelos agentes que têm o dever de perseguir crimes e puni-los. Mas há casos, sem cairmos nos “crimes de hermenêutica” a que aludia Rui Barbosa, em que é possível divisar abusos. Nomeadamente quando o juiz decreta a escuta telefônica no escritório do advogado por ser ele “advogado de suspeito” ou apenas para “facilitar as investigações”.

Nesse quadro, torna-se mais importante perceber que o crime de abuso de autoridade tal qual regulado no Brasil não contempla a legitimação ativa concorrente do ofendido e/ou da OAB de modo a viabilizar a propositura da ação penal. Afinal, ninguém vai imaginar o Promotor de Justiça ou o Procurador da República que emitiu parecer favorável à escuta telefônica, ou ambiental, ou para a expedição de mandado de busca e apreensão contra o advogado, venha propor a ação penal contra o juiz que lhe deferiu o pedido.


Dessa forma, no caso brasileiro, devemos lutar pela legitimação ativa concorrente do ofendido e/ou da OAB para o processo. Daí, talvez, consigamos aumentar a eficácia da lei de Abuso de Autoridade quando se tratar de abuso contra o advogado.

É correta a proposta de criminalizar a violação ao sigilo nas suas duas faces. Vale dizer, tanto como ocorre tradicionalmente, quando o advogado descumpre o seu dever de sigilo, como naquelas situações em que o juiz viola a garantia de que se reveste o sigilo, isto é, como limite à atividade persecutória estatal. De fato, nos casos de abusos, reveladores da prepotência investigatória, não se justifica que o agente estatal, tanto quanto o advogado, fique impune.

A criminalização da violação do sigilo joga um papel positivo na defesa deste importante instrumento de realização do devido processo legal. Todavia, é ilusório supor que apenas com a previsão normativa se obviarão as dificuldades e os abusos. A experiência normativa brasileira revela que é fundamental, ao lado da previsão incriminadora, outra de natureza processual, conferindo legitimação ativa concorrente ao advogado ofendido ou ao órgão representativo da classe dos advogados.

Por fim, não custa advertir para o fato de que a degradação das prerrogativas profissionais se dá no mesmo compasso das garantias deferidas aos investigados e/ou acusados no processo penal em nome da eficácia punitiva ou, num português mais elegante e eufemístico, em prol da “otimização” dos mecanismos de defesa social. Dessa maneira, a vigilância da sociedade civil e de suas entidades representativas, dentre as quais sobressai a Ordem dos Advogados, é fundamental para que se respeitem não apenas o sigilo, mas os direitos fundamentais como um todo e se contenha o Estado Policial. Defender as prerrogativas profissionais dos advogados, que existem para garantir o correto exercício da profissão em prol do cidadão, representa, como alerta o ministro Celso de Mello da Suprema Corte brasileira, “um gesto de legítima resistência à opressão do poder e à prepotência de seus agentes e autoridades. Traduz, por tal razão, um exercício de defesa da própria ordem jurídica, pois as prerrogativas profissionais dos Advogados estão essencialmente vinculadas à tutela das liberdades fundamentais a que se refere a declaração constitucional de direitos” (30).

Referências
1. O Direito Penal brasileiro, desde o Código Penal de 1890, punia a violação do sigilo profissional (art. 192). O atual, cuja Parte Geral é de 1940 e ainda está em vigor, pune-a no art. 154: “Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa traduzir dano a outrem: Pena – Detenção, de 3 meses a 1 ano ou multa”. O CP português, no art. 195: “Quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias”. O CP espanhol no art. 199, 1, castiga a conduta em apreço com pena de um a três anos, além de multa. Todavia, se a revelação se dá com descumprimento de obrigação de sigilo ou reserva, a pena é de um a quatro anos, mais multa e inabilitação para o exercício profissional pelo tempo de dois a seis anos (199, 2). O CP italiano, no art. 622, pune a “revelação de segredo profissional” com a pena de reclusão de até um ano ou multa de 30 a 516 euros. Cezar Roberto Bitencourt anota que o código Penal francês de 1810, pioneiramente, criminalizou a violação de segredo profissional (“Tratado de direito penal”, São Paulo, ed. Saraiva, 5ª ed., 2006, II/567).

2. O Código de Ética e Disciplina dos Advogados do Brasil tem um capítulo inteiro dedicado ao tema do sigilo. O art. 25 estabelece que o sigilo profissional “é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente e, em defesa própria, tenha que revelar segredo, porém sempre restrito ao interesse da causa”. O art. 26, na esteira do que dispõe o art. 7º, inc. XIX, do Estatuto do Advogado (Lei Federal 8.906/94), reafirma a possibilidade de o advogado recusar-se a prestar depoimento, mesmo quando autorizado pelo constituinte. Por fim, o art. 27 estabelece que “as confidências feitas ao advogado pelo cliente podem ser utilizadas nos limites da necessidade da defesa, desde que autorizado aquele pelo constituinte”.

3. Cf. a Recomendação n. 12, letra d, do FATF-GAFI (Financial Action Task Force – Grupo de Ação Financeira Internacional. Nesse sentido, no âmbito europeu, a “Directiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo”, em seu artigo 2º, n. 3, letra “b”, alinha-se à supracitada Recomendação. É certo que o dever de reportar operações suspeitas, nos dois âmbitos acima citados, refere-se à intervenção do advogado quando da realização de transações financeiras ou econômicas de seus clientes e não a qualquer tipo de relação advogado-cliente, especialmente as de representação em litígio judicial. Todavia, para que se tenha a dimensão da delicadeza desse tipo de obrigação, não custa lembrar as discussões travadas na Alemanha em torno do caso “Europeans Kings Club” (Bundesverfassungsgericht –BverfG.2.BvR 1520/01) relativamente ao recebimento de honorários maculados por advogados de defesa em caso criminal (cf. RIOS, Rodrigo Sanchez. Advocacia e lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, no prelo).

4. Guilherme de Souza Nucci, “Código penal comentado”, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 6ª ed., 2006, p. 651.

5. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, “Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa”, São Paulo, ed. Civilização Brasileira, 11ª ed., 1969, p.1097.

6. Luiz Regis Prado, “Curso de direito penal brasileiro”, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 5ª ed., 2006, II/378,

7. Nelson Hungria, “Comentários ao Código Penal”, Rio de Janeiro, ed. Forense, 5ª ed., 1982, VI/249.

8. “Valores constitucionais e direito penal”, trad. Gerson Pereira dos Santos, Porto Alegre, ed. Fabris, 1989, p.22 e seguintes. Para o autor, os “princípios constitucionais influentes em matéria penal”, traçam para o direito penal, frequentemente, os grandes rumos disciplinadores. Processos T- 125/03 e T- 253/03; caso Akzo Nobel Chemicals Ltd., itens 120 121.

9. Idem, item n. 122.

10. Idem, item n. 122.

11. Processos T- 125/03 e T- 253/03; caso Akzo Nobel Chemicals Ltd.

12. Niemitz v. Germany (1992) 351 – B EUR Court of Human Rights. Tradução livre: “se um advogado estiver incapacitado de realizar uma conversa com seu cliente e receber instruções confidenciais dele sem vigilância, seus préstimos serão de pouca utilidade”.

13. Tradução livre: “A obrigação do advogado quanto ao sigilo serve ao interesse da administração da justiça e também ao do cliente. Portanto, dá direito a uma especial proteção pelo Estado”. O Código de Deontologia dos Advogados Europeus foi originalmente adotado na Sessão Plenária do CCBE realizada a 28 de Outubro de 1988, e foi subsequentemente alterado nas Sessões Plenárias do CCBE realizadas a 28 de Novembro de 1998, 6 de Dezembro de 2002 e 19 de Maio de 2006. O Código contém um Memorando Explicativo, que foi actualizado na Sessão Plenária do CCBE de 19 de Maio 2006.

14. “Direito Penal”, São Paulo, ed. Saraiva, 26ª ed., 1994, II/192. Em sentido assemelhado, aludindo a que o sigilo é uma instituição que atina com a “ordem pública”, cf. Júlio Fabbrini Mirabete, “Manual de direito penal”, São Paulo, ed. Atlas, 24ª ed., 2006, II/196.

15. “Verdad y búsqueda de la verdad en el proceso penal (la medida de la Constitución)”, México – DF, ed. Ubijus, 2009, p. 26.

16. STJ, 2ª T., RMS n.º 12.516-PR, rel. Min. Eliana Calmon (DJ 27/9/04). Na oportunidade votaram vencidos os Ministros Paulo Medina e Peçanha Martins, brindando-nos o primeiro com um magnífico voto em matéria de afirmação das prerrogativas profissionais. Posteriormente, em julgamento histórico, o STF, no HC n.º 82.354-PR, por votação unânime da sua 1ª Turma, tendo como rel. o Min. Sepúlveda Pertence, reviu a decisão do STJ (cf. DJ 24/9/04).

17. Acórdão publicado no Diário da Justiça de 14/9/01, p. 49. Sobre o tema, Rafael Bustos Gisbert afirma que a responsabilidade dos governantes constitui um dos checks and balances característicos do sistema constitucional de raiz liberal (“La responsabilidad política del gobierno: realidad o ficción?”, Madri, ed. Colex, 2001, p. 14).

18. Art. 243, §2º, do CPP: “Não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito”.

19. “Da busca e apreensão no processo penal”. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2005, p. 19. Em verdade a prestigiosa autora recolheu a citada lição do saudoso Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo no prefácio ao trabalho do Professor Rogério Lauria Tucci, Teoria do direito processual penal: juridição , ação e processo penal”.

20. “Código de processo penal interpretado”, São Paulo, ed. Atlas, 9ª ed., 2002, p. 627.

21. Esta é a clássica definição de João Mendes.

22. “Código de processo penal anotado”, São Paulo, ed. Saraiva, 18ª ed., 2002, p. 157.

23. Entre 1937 e 1945 houve uma ditadura de caráter fascista no Brasil liderada pelo presidente Getúlio Vargas.

24. O CPP luso prevê em seu artigo 189, n. 3, que é “proibida a interceptação e a gravação de conversações ou comunicações entre o argüido e seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objecto ou elemento do crime.” A Itália segue a mesma linha, proibindo a utilização das interceptações entre tais pessoas (art. 271, n. 2).

25. Por todos, STF, Agr. Reg. no HC n. 89.025/SP, relator para o acórdão min. Eros Grau. O voto-vista do min. Cezar Peluso contém passagem de repúdio à hipótese que merece ser lida (cf. www.stf.jus.br).

26. Habeas Corpus n. 114.458.

27. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, com apoio no prestigioso escólio de Paulo Luiz Netto Lobo (“Comentários ao Estatuto de Advocacia”, Brasília, ed. Brasília Jurídica, 2ª ed., 1996, pp. 56/57) já decidiu que se entende por local de trabalho: “qualquer um que o advogado costume utilizar para desenvolver seus trabalhos profissionais, incluindo a residência, quando for o caso. A atual revolução tecnológica aponta para a realização à distância de serviços ligados por redes de comunicação, sem o deslocamento físico das pessoas”. O autor e o julgado ressalvam a possibilidade da interceptação apenas quando o advogado for investigado pelo crime (cf. MS n. 23.452, relator, Min. Celso de Mello, p. 32 do voto. Este julgado pode ser encontrado na Revista Trimestral de Jurisprudência (RTJ) 173/805. 24. Tit. or.: "Las règles de la méthode sociologique", trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz, SP, ed. Cia. editora Nacional, 8ª ed., 1977, p. 60.

25. "Condicionalidade sócio cultural do direito penal", Coimbra, Separata do número especial do Boletim da faculdade de Direito de Coimbra, 1986, p. 49.

30. Prefácio ao livro “Prerrogativas profissionais do advogado”, de Alberto Zacharias Toron e Alexandra Lebelson Szafir (São Paulo, ed. Atlas, 3ª ed., 2009, p. X).

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