Direito local

Na Argentina, despachar com juiz cível é exceção

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20 de março de 2010, 9h27

Quando cursei o mestrado em Direito, na Universidade Gama Filho, em 2005, o meu orientador, Roberto Kant de Lima, um antropólogo-advogado (ou, talvez, um advogado-antropólogo), me “iniciou” no curioso e produtivo mundo da interdisciplinaridade, fazendo-me perceber a importância de se estudar o Direito a partir de outras perspectivas, que não apenas a positivista-legalista-dogmática.

Assim como ele, a minha co-orientadora, Maria Stella Amorim, uma socióloga – quase advogada de tanto estudar o Direito com a lupa da Sociologia – igualmente me fez perceber o quanto seria interessante, criativo e curioso analisar o Direito por outros vieses que não os que, normalmente, sustentam a formação do conhecimento nesse campo.

Caminhando nesse percurso de experimentação do mundo da antropologia, um dos meus primeiros exercícios foi a leitura de um texto muito interessante, de um conhecido antropólogo, chamado Clifford Geertz, intitulado “O Saber Local: fatos e leis em uma perspectiva comparada[1]”.

Eu, como “boa” operadora do campo jurídico, não conhecia nem o texto, nem o antropólogo Clifford Geertz, afinal, até então, não me valia muito dialogar com antropólogos, sociólogos ou cientistas políticos, pois o Direito, com as suas leis, doutrinas e jurisprudências, me bastava.

O texto de Clifford Geertz – ao qual remeto o leitor – não apenas destaca a importância de se articular Direito e Antropologia, como, principalmente, chama a atenção para o fato de que o Direito é um saber local, no sentido de que a sua análise tem de ser, sempre, culturalmente contextualizada.

Em um primeiro momento, essa ideia de relativizar o Direito culturalmente se chocou com a minha segura percepção de que, no Direito, as concepções de certo e errado e de justo e injusto têm de ser universais. Nesse sentido, pensar o Direito de forma particular, localizada, me parecia algo “incompleto”, inclusive porque a universalização desse campo seria óbvia e necessária, vide o exemplo dos direitos humanos.

Mas, diferentemente do que costuma ocorrer no campo do Direito, no da Antropologia, se pode – e se deve – questionar e dizer “não”[2] àquilo que se lê. Logo, embora socializada no Direito, a minha primeira reação ao texto de Clifford Geertz foi a de estranhá-lo e problematizá-lo, em vez de acatá-lo acriticamente, pois o meu orientador já havia me advertido de que eu não deveria ler os textos de ciências sociais com a preocupação de tornar-me discípulo daqueles que os tenham escrito ou adepta de sua corrente doutrinária, conforme o jargão jurídico.

Passado, então, esse primeiro momento – e, na verdade, até hoje – penso bastante sobre o texto de Geertz e, vez ou outra, o releio. E devo dizer que o entendimento empírico das questões discutidas no texto só foi efetivamente possível quando saí do Brasil e realizei estudos comparativos que me permitiram verificar que os significados dos mesmos objetos têm, de fato, representações particulares, locais, e, obviamente, com o Direito – meu objeto (de pesquisa) – não poderia ser diferente.

Estive seis meses em Buenos Aires, fazendo pesquisa de campo sobre as práticas judiciárias dos Tribunais Argentinos, no âmbito de um projeto, financiado pela Capes (Brasil) e pela SPU (Argentina), fruto de um convênio institucional firmado entre a Universidade Federal Fluminense e a Universidade de Buenos Aires, e que a Universidade Gama Filho integra.

A experiência que vivenciei ao realizar o trabalho de campo em Buenos Aires me fez perceber algumas questões acerca do processo argentino que, no contraste com o brasileiro, demonstraram, embora os Códigos Processuais de ambos os países sejam muito similares, que a forma como são aplicados e os significados a eles atribuídos são bastante diferentes.

É certo que, na Argentina, os Códigos Processuais Civis são estaduais e não federais, como no Brasil. O Código adotado nos Tribunais da Capital Federal Argentina (Buenos Aires) é o Codigo Procesal Civil y Comercial de la Nación. Mas, na Província de Buenos Aires, por exemplo, adota-se outro Código de Processo Civil, que é o Codigo Procesal Civil y Comercial de Buenos Aires. E em Córdoba, uma grande e importante cidade da Argentina, adota-se o Codigo Procesal Civil y Comercial de la Provincia de Córdoba.

No entanto, apesar disso, os procedimentos, os incidentes processuais, os recursos, as regras de competência, dentre outras questões, estão legalmente previstas de forma bastante similar no CPC do Brasil e no da Capital Federal Argentina.

O fato interessante é que, embora, legislativamente, os códigos processuais sejam equivalentes, na prática, os dados empíricos colhidos na pesquisa de campo que realizei nos Tribunais da Capital Federal Argentina apontam distinções marcantes e muito significativas nas práticas judiciárias.

Por exemplo, em Buenos Aires, despachar uma petição com um juiz de um Juzgado Civil, correspondente à nossa Vara Cível, é absoluta exceção. Durante os seis meses em que estive lá, acompanhando sistematicamente o cotidiano forense, não vi nenhum advogado ser recebido por magistrados, sendo, sempre, atendidos pelos secretários, que lá, inclusive, têm muito mais prestígio e status do que os secretários de magistrados estaduais brasileiros.

Outra importante diferença é o ritual das audiências cíveis. Segundo o CPC argentino, as audiências serão públicas, sob pena de nulidade (artigo 125), e o juiz é o responsável por presidi-las, sendo, as mesmas, indelegáveis e passíveis de não serem realizadas caso o juiz não esteja presente (artigo 360). Na prática, as audiências não são públicas e os juízes delegam a sua presidência a funcionários do Tribunal, inclusive a daquelas destinadas à produção de prova oral.

Nos meus primeiros dias em campo, fui desencorajada por muitas pessoas a fazer pesquisa de campo em Juzgados Civiles, sempre sob o fundamento de que teria dificuldade de obter dados empíricos, uma vez que não poderia participar das audiências.

De fato, a todas as audiências que compareci, tive de pedir expressa autorização ao juiz e, antes de a audiência começar, o funcionário que a presidiria anunciava a minha presença e perguntava às partes se havia algum problema em que eu ali permanecesse.

Outra fase processual do processo argentino que é bastante distinta no brasileiro é a tramitação dos recursos. Em Buenos Aires, as sessões de julgamento realizadas na Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil, equivalente ao Tribunal de Justiça do Estado, não são públicas e os desembargadores, lá chamados de camaristas, não necessariamente se reúnem em colegiado para decidir. Além disso, inexiste a possibilidade de os advogados sustentarem oralmente as suas razões recursais, ao contrário do que ocorre no Brasil.

Entretanto, dentre tantas diferenças, e algumas similitudes, a que destaco com maior relevo diz respeito à forma como o campo jurídico argentino representa a oralidade processual, tema da minha dissertação de mestrado[3] e que, por isso, exigiu de mim uma maior problematização e investimento intelectual.

Na Argentina, segundo juristas e não juristas, o princípio da oralidade não se manifesta no processo civil, mas, apenas, no processo penal, embora as fases orais do processo civil sejam bastante similares às brasileiras.

O fato é que, quando cheguei aos Tribunais da Capital Federal Argentina para fazer o trabalho de campo, todos me descreviam o processo civil como escrito e sigiloso, destacando que a minha pesquisa estaria obstaculizada nessa área, ao passo que no processo penal eu teria bastantes dados, uma vez que ali, a oralidade se configurava e havia sido pensada como uma garantia do cidadão a um processo democrático[4].

Para mim, pensar o processo civil como sigiloso, rotinizado através de audiências secretas, e o processo penal como público e oralizado, me parecia curioso e especialmente interessante, pois relativamente ao processo brasileiro, esses dados eram absolutamente paradoxais, motivo por que decidi, com ainda mais razão, estudar o tema da oralidade no processo civil argentino, ainda que, para tanto, fosse necessário ter algum contato com a cultura jurídica penal, à qual eu sempre resisti.

Verifiquei que, assim como no Brasil, também na Argentina, os manuais jurídicos reconhecem a identidade física do juiz, a concentração dos atos processuais e a imediatidade como características essenciais da oralidade processual.

O problema estava, portanto, em tentar entender os motivos pelos quais o campo teórico argentino só legitimava e reconhecia como oralizado, o processo penal, não o civil.

Logicamente, neste artigo não há espaço para destacar todos os resultados obtidos durante a pesquisa[5], mas o interessante foi perceber que a representação da oralidade, na Argentina, está atrelada à figura do juiz, não das partes, como normalmente se considera no Brasil.

Na Argentina, os tribunais orais penais são órgãos colegiados, compostos por três juízes, também chamados de camaristas, e adotam uma dinâmica e um ritual muito diferentes de uma audiência cível, pois, nos juízos orais penais, os debates orais ocorrem em tempo real, ou seja, o contraditório, que permite o diálogo entre acusação e defesa, se faz durante o julgamento e não se configura pela troca de papéis, mas por verdadeiras manifestações orais, faladas pela defesa, contrargumentadas pela acusação (fiscalía) e ouvidas/percebidas/sentidas pelos juízes, de forma dinâmica e imediata, o que faz bastante diferença no momento da prolação da sentença, uma vez que aqueles que decidem, participaram do julgamento, pessoal e fisicamente. Já no cível, inexiste este debate, especialmente porque o juiz sequer integra o ato processual, que, normalmente, é presidido por serventuários, por delegação.

Verifiquei, portanto, que a imediatidade, configurada pelo contacto direto do juiz com a parte, é um significativo diferencial entre o processo penal e o civil argentino. Na observação das práticas judiciárias verifiquei que, de fato, os juicios orales penales, na perspectiva do papel do juiz, são muito distintos das audiências cíveis. E, nesse sentido, o processo penal argentino trata a oralidade sob duas perspectivas fundamentais, inexistentes no processo civil, quais sejam, a valorização da presença física do juiz durante o ato processual e a coleta pessoal da prova, sem a delegação a funcionários.

O estudo das práticas judiciárias realizadas nos Tribunais da Capital Federal Argentina permite perceber que a oralidade é pensada na Argentina como um juízo público, no qual a presença física do juiz é um diferencial. A oralidade não é um método, um princípio ou um sistema. É uma etapa e uma forma de processualizar os conflitos.

No Direito brasileiro, diferentemente, a oralidade tem o seu conceito ampliado, sendo considerado oralizado todo aquele processo que incorpora qualquer tipo de manifestação oral, independetemente da presença física do juiz ou de quaisquer atores do processo na audiência.

O período em que estive na Argentina me permitiu ter um contacto privilegiado com o seu sistema processual e a pesquisa empírica realizada naquele contexto foi especialmente relevante para eu compreender a importância do estudo comparado e verificar, inclusive, que, se eu permanecesse no Brasil, apenas lendo o CPC argentino e comparando-o com o brasileiro, iria escrever um artigo bastante diferente deste, sustentando, por exemplo, que o processo civil argentino e o brasileiro, em sua dinâmica, são praticamente iguais.

No entanto, a pesquisa de campo permitiu que eu percebesse – conforme observou Geertz naquele primeiro texto que li durante a minha caminhada encantadora por essa estrada que liga os campos jurídico e antropológico – que instituições e práticas judiciárias semelhantes, quando contextualizadas, social e culturalmente, recebem significados absolutamente distintos. Nesse sentido, eu entendi que o Direito, realmente, é um saber local.


[1] GEERTZ, Clifford. O Saber Local: fatos e leis em uma perspectiva comparada. In: _____ . O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. cap. 8: p. 249-356.

[2] BACHELARD, Gaston. A Filosofia do Não: filosofia do novo espírito científico. Lisboa: Editorial Presença, 1976.

[3] A dissertação que desenvolvi foi publicada no ano de 2008, pela Editora Sergio Antonio Fabris, sob o título “Os Rituais Judiciários e o Princípio da Oralidade: construção da verdade no processo civil brasileiro”.

[4] Ver: ARDITI, Enrique A. Sosa; FERNÁNDEZ, José. Juicio oral en el proceso penal. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994; DÍAZ, Carlos Chiara. La oralidad en la Argentina. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE ORALIDAD EN MATERIA PENAL, 1995, La Plata. Anais del Colégio de Abogados del Departamento Judicial La Plata. Instituto de Derecho Procesal Penal. La Plata, 5, 6, 7 oct. 1995, p. 89-112; JARAMILLO, Carlos Arturo Cano. Oralidad, debate y argumentación. Bogotá: Ediciones Jurídicas Gustavo Ibañez, 2005; MAAÑÓN, Ernesto A.A. García. Juicio oral, sentencia arbitraria y recurso de casación en la Província de Buenos Aires. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2001.

[5] Ver: LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. La materialización de la oralidad en el proceso judicial argentino: reflexiones acerca de la producción de verdad jurídica. In: TISCORNIA, Sofía; KANT DE LIMA, Roberto; EILBAUM, Lucía. (Org.). Burocracias penales, administración institucional de conflictos y ciudadanía: experiencia comparada entre Brasil y Argentina. 1 ed. Buenos Aires: Antropofagia, 2009, v. 1, p. 239-279.

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