Paixão e fúria

Promotor que atirou na mulher é condenado à prisão

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17 de março de 2010, 15h53

O promotor de justiça João Luiz Portolan Galvão Minniccelli foi condenado nesta quarta-feira (17/3) à pena de cinco anos de reclusão, em regime semi-aberto, e à perda do cargo público. A decisão, por maioria de votos, é do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo – principal colegiado jurisdicional e administrativo da corte paulista. A defesa vai recorrer da decisão.

O colegiado foi unânime em acolher a condenação do réu à pena de reclusão, mas divergiu com respeito ao efeito automático da sentença criminal ao castigo administrativo de perda do cargo. O voto divergente foi capitaneado pelo corregedor geral da Justiça, Munhoz Soares, e recebeu a adesão dos desembargadores Laerte Sampaio, José Santana e Barreto Fonseca.

A defesa, a cargo do advogado Alberto Zacharias Toron promete fazer todos os esforços e interpor os recursos necessários para anular a sentença. Para o advogado, a decisão é "profundamente injusta", ja que o tribunal tratou a dor do marido que nãoi aceitava a separação da mulher como a simples atitude de alguém que age por motivo torpe. O advogado afirma também que o TJ ignorou a decisão do STF que considerou como atenuante o fato de o agressor ter se arrependido e prestado socorro à vítima.

O réu responde a Ação Penal por lesão corporal gravíssima. A vítima é sua ex-mulher, a advogada Érika May Trochmann, que dele queria separar-se, mas enfrentava ferrenha resistência do marido. Na falta de alternativa para uma separação amigável, Érika recorreu à Justiça onde conseguiu um alvará de separação de corpos. A medida foi à gota d’água para o gesto insano do marido.

O crime aconteceu em 6 de dezembro de 2002, na residência do casal, uma chácara localizada no condomínio Vale Verde, na cidade de Valinhos (região de Campinas, no interior de São Paulo). De acordo com o procurador-geral de Justiça – a quem cabe oferecer denúncia contra membros do Ministério Público – Minniccelli atirou em Érika com um revólver calibre 38, por motivo torpe e usando de recurso que impossibilitou a defesa da vítima.

O tiro, à queima-roupa, acertou o queixo da advogada, atravessou o pescoço e parou na coluna cervical. Por conta da gravidade, o chefe do Ministério Público apontou a qualificadora de deformidade permanente. A defesa alegou excesso acusatório, com o argumento de que o réu prestou socorro à vítima.

Arrependimento eficaz
A defesa – a cargo do advogado Alberto Zacharias Toron, do escritório Toron, Torihara e Szafir Advogados – impressionou pela atuação, mas não conseguiu mudar a opinião da maioria dos julgadores. Pediu a improcedência da Ação Penal ou, em último caso, o afastamento da qualificadora da deformidade permanente e o reconhecimento da atenuante de confissão espontânea. 

O eixo da argumentação do defensor foi à tese do arrependimento eficaz. Esta é uma exclusão da adequação dos fatos ao crime, mas não tem o condão de extinguir a punibilidade do criminoso. A fundamentação foi a de que o promotor de Justiça, depois da agressão, salvou a vida da mulher. A defesa tentou atenuar o caso com as cores do ato de uma pessoa fora de seu juízo próprio. Nas palavras de Toron, o promotor de Justiça foi tomado de um “surto” na hora em que atirou na mulher.

“É uma pessoa, que, na época, depois de atuar por mais de 20 anos como promotor de Justiça, se viu envolvido numa grave crise emocional”, sustentou o advogado. “Um homem que, sofrendo a dor da rejeição, se transformou num farrapo humano”, pincelou com maestria o advogado, na tentativa de sensibilizar os julgadores para sua tese.

De acordo com a linha de raciocínio da defesa, a intenção do promotor de Justiça não era matar Érika, como afirma a acusação, mas cometer suicídio por se sentir rejeitado pela mulher. Ele já teria resolvido tirar a própria vida, mas antes disso queria deixar “uma marca” na advogada. Os fatos, no entanto, saíram do controle do réu e este, diante, do resultado que não pretendia, saiu em socorro da então companheira buscando, desesperadamente, salvar sua vida, levando-a a um hospital.

Com esses argumentos, a defesa pretendia afastar as agravantes de motivo torpe e de recurso que impossibilitou a defesa da vítima e a qualificadora de deformidade permanente. O advogado avançou em seus argumentos a ponto de atribuir à vítima a imprudência de tentar desarmá-lo e, com isso, provocar o resultado que ele não pretendia – o disparo acidental que atingiu sua ex-mulher. Foi além, na tentativa de explicar os motivos que levaram o promotor de Justiça a fechar portas e janelas da casa antes de atirar na mulher apresentou a versão de que queria evitar a entrada de pernilongos.

“Estamos diante de uma tragédia familiar”, disparou com veemência o advogado. “Os fatos não têm testemunhas, falam por eles os acusados e as vítimas”, completou o defensor. De acordo com Toron, seu cliente, um ex-seminarista, sofreu um “surto”, naquela tarde de dezembro de 2002, mas logo teve um “click”, acordou para a realidade e, como prova de seu arrependimento, da chamada desistência voluntária, colocou a vítima em seu veículo e partiu em alta velocidade na tentativa de salvar a vida de Érika.

A defesa ainda acusou a Procuradoria-Geral de Justiça de pretender pelo caminho da ação penal expulsar o promotor de Justiça dos quadros do Ministério Público. “Pela via penal, a acusação quer alcançar a pena administrativa”, afirmou o advogado.

Adiamento
O julgamento foi suspenso há duas semanas, depois que o relator, o revisor e mais dois desembargadores votaram pela condenação às penas de privação de liberdade e de perda do cargo ou função pública, enquanto o corregedor-geral da Justiça, Munhoz Soares, discordava da pena administrativa.

O desembargador Maurício Vidigal pediu vistas para analisar a segunda questão e trouxe seu voto nesta quarta-feira acompanhando o relator. Segundo Vidigal, a perda do cargo como efeito da condenação penal é perfeitamente possível, não contrariando a Lei Orgânica do Ministério Público.

O relator Palma Bisson citou o caso envolvendo um juiz de Minas Gerais que perdeu o cargo por efeito da condenação por peculato. Bisson ainda citou o acórdão do desembargador José Osório, que foi relator do julgamento de outro promotor de Justiça paulista, Igor Ferreira da Silva, em que foi aplicada uma pena superior a 16 anos e permitia a perda do cargo como extensão da condenação penal.

“Do promotor, fiscal da lei, garantidor das separações alheias, defensor da sociedade, acusador das condutas delitivas, não se espera nem convém que as pratique, ainda mais prenhas de maldade, haja vista que, consumando-se a prática com tal agente e tais vestes, agita-se a sociedade passando de um tanto a descrer até, essa a verdade, no Ministério Público como instituição”, argumentou o relator ao final da leitura de seu voto para justificar a pena, por ele imposta ao promotor de Justiça.

A divergência foi apontada pelo do corregedor-geral da Justiça, desembargador Munhoz Soares. Ele se manifestou contrário à parte final do voto do relator, Palma Bisson, que impunha ao réu a perda do cargo. Para Munhoz Soares, a decisão contrariava a Lei Orgânica do Ministério Público.

Segundo o corregedor-geral, membro vitalício do Ministério Público só perderá o cargo depois do trânsito em julgado da ação penal e em sede de ação civil própria. “Não podemos, agora, ignorar a norma e decretar a perda do cargo do promotor de Justiça na ação penal”, afirmou Munhoz Soares.

O crime
O promotor de Justiça atuava em São Paulo, no fórum da Lapa, e morava com a mulher em Valinhos. Érika queria se separar, porque o relacionamento do casal passava por dificuldades. Minniccelli se opunha à separação. Diante da resistência do marido, Érika decidiu ingressar na Justiça. No dia do crime ela recebeu o alvará judicial autorizando a separação de corpos.

De acordo com a denúncia, desconfiando da decisão da Justiça, o promotor decidiu ficar naquela sexta-feira, dia do crime, em Valinhos. Em casa, mandou as duas filhas do casal acompanharem a irmã da advogada, depois dispensou o jardineiro e prendeu o cachorro no canil. Fechou portas e janelas da casa e convidou, gentilmente, a mulher para tomar um cafezinho, que ele mesmo preparara.

Logo depois, sacou a arma – um revólver calibre 38, marca Rossi, número de série D630747, engatilhou, e dominou Érica: “Ajoelha e começa a rezar, porque você vai morrer”, disse o acusado à mulher, segundo narram os autos. Desesperada, a advogada suplicou ao promotor para não matá-la e então pediu para que este a deixasse ir até o banheiro, pois precisava fazer xixi. O réu permitiu, acompanhado-a até o lavabo com a arma apontada em sua direção e obrigando-a a deixar a porta aberta.

Num momento de distração do promotor de Justiça, a mulher tentou fechar a porta, mas foi facilmente dominada. Nesse instante travaram um briga corporal e Minniccelli a derrubou no lavabo, numa área de cerca de três metros quadrados. De acordo com o chefe do Ministério Público, foi nesse momento que o acusado desferiu o tiro que atingiu Érika e um outro disparo que resvalou em sua mão direita (ele é canhoto).

Com o tiro, Érika desmaiou e começou a sangrar. Ao acordar pediu ao marido que não a deixasse morrer. Minniccelli  a conduziu até o carro e saiu em direção à cidade de Valinhos. Na entrada da cidade, o casal se deparou com uma blitz da polícia. Desesperado, o promotor rompeu a barreira policial e saiu em disparada. Nesse instante propôs a mulher, como condição para ajudá-la, que os dois apresentariam à polícia a versão de que eram vítimas de um assalto, que foram baleados e estavam à procura de ajuda médica.

Com a concordância de Érika, rumou em direção à Santa Casa de Valinhos, sendo perseguido pelos policiais. Ao chegar ao hospital foi logo contando sua versão para médicos, enfermeiros e funcionários e para os policiais que haviam chegado. Quando se viu livre do promotor de Justiça, a mulher passou a apontar que ele tinha sido o autor do disparo que a atingiu.

Desconfiados, os policiais pressionaram Minniccelli que acabou confirmando a versão de Érika. Ele foi preso em flagrante. Com ele foi apreendido um revólver calibre 38.

No entendimento da acusação, diante da vontade de separação de Érika, o promotor de Justiça se moveu imbuído de sentimentos de intolerância, prepotência, egoísmo e despeito com o intuito de matar a vítima. Ele, porém, impediu a morte dá ex-mulher quando a transportou no carro até a Santa Casa de Valinhos.

Desclassificação
Uma semana depois do crime, o então procurador-geral de Justiça, Luiz Antonio Marrey, ofereceu a primeira denúncia contra Minniccelli, imputando ao acusado a prática do crime de tentativa de homicídio duplamente qualificado. Essa denúncia foi recebida pelo Órgão Especial do TJ em janeiro de 2003, ocasião em que a corte paulista concedeu liberdade provisória ao promotor de Justiça.

A defesa conseguiu uma vitória em agosto de 2005, quando o Supremo Tribunal Federal rejeitou a denúncia. Os advogados do promotor de Justiça haviam recorrido à corte suprema alegando excesso acusatório, com o argumento de que o acusado prestou socorro à vítima. Diante desse fato, alegaram os advogados, a hipótese penal seria de lesão corporal e não de tentativa de homicídio. A defesa pediu que a denúncia já recebida pelo tribunal paulista fosse rejeitada.

O STF aceitou o pedido da defesa, formulado por meio de Habeas Corpus. A corte entendeu que houve arrependimento do ato já que o promotor socorreu a vítima após ter atirado nela e por isso não seria o caso de enquadrá-lo em tentativa de homicídio duplamente qualificado, abrindo as portas para a desclassificação do delito para lesão corporal.

O artigo 15 do Código Penal prevê que “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado (do delito) se produza, só responde pelos atos (criminosos) já praticados”. Por isso, de acordo com os ministros da 1ª Turma, o promotor de Justiça não poderia responder por tentativa de homicídio duplamente qualificado.

Em 29 de dezembro de 2005, nova denúncia foi oferecida ao Tribunal de Justiça, desta vez assinada pelo então procurador-geral de Justiça, Rodrigo Pinho, pelo crime de lesão corporal gravíssima. A gravidade estaria estampada na deformidade permanente da vítima. Quase um ano depois, em outubro de 2006, a denúncia foi recebida pelo Órgão Especial, com a instalação da Ação Penal. O réu foi interrogado e apresentou defesa prévia. O Tribunal ouviu a vítima e testemunhas.

[Texto alterado em 16/5/2011 para corrigir informação]

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