Medidas da discórdia

Inconstitucionalidades na exploração do pré-sal

Autor

  • Francisco Eduardo Carrilho Chaves

    é advogado e consultor legislativo do Senado Federal. Tem pós-graduação em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federa e em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público. É membro-fundador do Instituto Brasileiro de Direito e Controle da Administração Pública.

16 de março de 2010, 11h06

Estão em discussão no Congresso Nacional quatro projetos de lei que têm por finalidade regulamentar a exploração de jazidas petrolíferas e de gás natural nas áreas do pré-sal e em áreas estratégicas. Com a certeza de que no Estado Democrático de Direito as vozes devem ser tão livres quanto responsáveis, e na qualidade de cidadão que pode estudar as proposições legislativas encaminhadas pelo governo, avaliei necessário trazer a lume considerações sobre o modelo proposto.

Somente alguns pontos controversos serão abordados, com privilégio para os aspectos jurídicos. A limitação de espaço impede que tudo seja tratado em um único texto. Contudo, antes de abordá-los, faz-se o necessário registro de que este artigo não professa valores de correntes político-partidárias ou se propõe a atacar a Petrobras, empresa de que todo brasileiro se orgulha. Defende-se, tão-somente, a obediência ao ordenamento jurídico. Demonstrar-se-á a inconstitucionalidade das transformações infraconstitucionais pretendidas. Algumas até são viáveis, desde que alterada a Constituição, com o emprego dos meios legítimos para tanto.

Começo com uma imagem muito utilizada para expressar o uso de artifícios para desviar atenção de um determinado tema ou assunto: o “boi de piranha”. Tropeiros dos rincões brasileiros conhecem bem o recurso de oferecer a esses peixes carnívoros um boi velho e doente rio acima, tirando a atenção do cardume da boiada que irá passar rio abaixo, com segurança. A fratricida discussão sobre os royalties é o “boi de piranha” do projeto de lei que institui o regime de partilha de produção. A proposição é um manancial de inconstitucionalidades, mas a polêmica em torno da repartição dos royalties consome as energias dos parlamentares e vem funcionando como “boi de piranha”, garantindo que outras questões absolutamente importantes nem sejam tratadas. Para o grande público, e até para parte da imprensa, transparece que a tal partilha do “regime de partilha” é de royalties. Um grande erro. O projeto original do governo sequer propunha alteração na repartição dos royalties, surgida em face de emendas parlamentares na Câmara dos Deputados. Na essência, o regime de partilha estabelece regras para a participação do Estado e de particulares no que se extrair das jazidas do pré-sal e de áreas consideradas estratégicas.

A primeira inconstitucionalidade da proposição está na própria instituição por lei de um novo modelo de exploração de jazidas. No parágrafo 1º do artigo 176, a Constituição é clara em exigir que a pesquisa e a lavra de quaisquer recursos minerais somente poderão ser efetuadas mediante autorização ou concessão da União. A partilha de produção não é uma coisa nem outra. Para que a criação do regime de partilha de produção obedecesse ao ordenamento jurídico, seria preciso alterar a Carta Política, criando em seu texto a possibilidade do uso desse regime, ao lado da autorização e da concessão. O governo não apresenta uma proposta de emenda à Constituição por saber que será muito difícil aprová-la no Congresso Nacional, em especial no tempo recorde que pretende. Assim, ignora e volta suas costas para a Lei Fundamental brasileira.

Antes que se levantem vozes afirmando que, com base no artigo 177 da Constituição, a União pode contratar terceiros (empresas estatais ou privadas) para pesquisar e lavrar as jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos, desde que obedeça simplesmente condições previstas em lei, lembra-se que o Texto Magno deve ser interpretado em sua inteireza. É vedado interpretar isoladamente o artigo 177, esquecendo o artigo 176 e o restante da Constituição.

O constituinte não produz normas inócuas. O artigo 177 não conflita com o artigo 176. O objetivo do artigo 177 é relacionar atividades monopolistas da União, entre elas: “a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos”. É incabível imaginar que essas jazidas não estão englobadas em “quaisquer recursos minerais”, referidos no artigo 176.

Com um discurso ufanista e de fácil absorção por quem ama o Brasil, o governo propõe outras violações à Constituição. Antes de expô-las, é oportuno lembrar que a história demonstra que regimes de exceção nos quais o Executivo subjuga ou aniquila os demais poderes sempre nascem de nobres ideais. Todos os bons brasileiros querem o melhor para o país e para a Petrobras. Inadmissível é garantir isso rasgando a Carta Magna. Os favorecimentos dados à Estatal nos projetos em discussão são flagrantemente inconstitucionais.

Não se deve esquecer que a Petrobras, que atua em regime concorrencial, a despeito de ser estatal, tem participação majorativamente privada no seu capital total. A essa empresa se está conferindo um tratamento diferenciado e privilegiado em relação às demais pessoas jurídicas de direito privado que com ela disputam o mercado. Esse privilégio é inconstitucional. Além dos princípios da isonomia e da igualdade, são muitos os dispositivos constitucionais expressos feridos, mas a atenção pode ser centrada em quatro.

O caput do artigo 170, que consagra a livre iniciativa como um dos fundamentos da ordem econômica. Da forma como está sendo proposto, as empresas privadas, e mesmo a Petrobras, são obrigadas a formar vínculos associativos compulsórios (os consórcios obrigatórios). A livre iniciativa é jogada ao chão. Completamente diferente de permitir às empresas privadas explorar jazidas minerais em consórcio, com entes estatais ou não, é obrigá-las a associações inegociáveis, sem as quais lhes é impedido o acesso ao mercado e o alcance de seus fins societários.

É importante que se diga, ainda, que nos consórcios para exploração das jazidas no regime de partilha da produção tudo leva a que a empresa privada não tenha força na condução do empreendimento, pois a participação dos parceiros privados nos comitês operacionais que gerenciarão esses consórcios será sempre minoritária. Neles, 50% dos assentos caberão à Petro-Sal (ou Petro-Brasil, como está sendo dito que se chamará), a quem incumbirá indicar o presidente, detentor de poder de veto e do voto de desempate. À Petrobras é garantido o mínimo de 30% de participação nos restantes 50% (o que significa o mínimo de 15% do total de votos do comitê). Ao parceiro privado restarão, no máximo, 35% dos votos do comitê. Dessa maneira, estará ele sempre a reboque da parte estatal do consórcio.

A participação da Petrobras no consórcio é de 30%, no mínimo, mas nada impede que seja estipulada em patamares muito superiores. Não há limite máximo, e quem definirá o quinhão de participação da estatal em cada uma das licitações será o Executivo, sozinho. Em uma área tão sensível e lucrativa, é muito poder concentrado em um único Poder da República.

O inciso IV do art. 170 traz o princípio constitucional da livre concorrência, que está sendo desobedecido pela reserva de mercado que se dá à Petrobras, com a participação compulsória da empresa na pesquisa e lavra de petróleo e gás natural em todas as áreas do pré-sal e em áreas estratégicas. A estatal com sede no Rio de Janeiro será a operadora de todos os blocos contratados sob o regime de partilha de produção, cabendo-lhe conduzir e executar, direta ou indiretamente, todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção.

Antes de abordar outro dispositivo constitucional violado, é preciso anotar que as regras que se critica serão aplicadas não somente a áreas do pré-sal. Áreas denominadas estratégicas também serão abrangidas pela nova regulamentação, que, inclusive, define área estratégica como “região de interesse para o desenvolvimento nacional, delimitada em ato do Poder Executivo, caracterizada pelo baixo risco exploratório e elevado potencial de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos”. Ou seja, o Executivo poderá definir áreas estratégicas a seu livre arbítrio, sem ouvir o parlamento. Novamente, afirma-se que é demasiada concentração de poder, ainda mais quando associada a outras pretensões dos projetos de lei, ainda a serem comentadas.

O inciso II do artigo 173 também é vulnerado. Empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços devem sujeitar-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, sem qualquer forma de privilégio.

O parágrafo 2º do artigo 173 é ainda mais explícito, o que faz com que também se perceba mais claramente o seu desrespeito. Por ele, as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado. Privilégios fiscais não se resumem a direitos e obrigações de natureza tributária. O termo “fiscal” é muito mais amplo do que “tributário”, estando associado à atuação do Estado na consecução de seus objetivos. Não há dúvida da falta de isonomia nas regras do pré-sal, com as regalias conferidas à Petrobras.

Além da possibilidade de atuar em consórcio com empresas privadas, a Petrobras poderá concorrer sozinha a contratos no regime de partilha da produção. Nesse caso, também terá que se consorciar, mas somente com a Petro-Sal (ou Petro-Brasil). Em acréscimo, lhe está sendo cedido, com dispensa de licitação, o exercício das atividades de pesquisa e lavra de cinco bilhões de barris equivalentes de petróleo em áreas não concedidas localizadas no pré-sal. Porém a cessão é onerosa! Pode ser levantado em sua defesa. Sim, mas qual petroleira não quer ter garantida a exploração de cinco bilhões de barris de óleo, com as praticamente afiançadas repercussões positivas em sua contabilidade? Qual a conseqüência para o valor das ações da empresa no mercado? Quais os efeitos no seu poder de alavancagem e no tratamento que lhe será dispensado pelos agentes financeiros?

Mais uma vez, frisa-se que a participação privada no capital social da Petrobras é majoritária, apesar da sua natureza estatal. Alguns acionistas privados serão beneficiados, em detrimento da maioria da população brasileira, que é a verdadeira dona do óleo que está nas profundezas do pré-sal.

Tratemos da comercialização do óleo extraído. Simplificando, a União ficará com a propriedade desse óleo, depois de pagos, em óleo, os custos ao consórcio explorador – composto por quem quer seja. Portanto, a União ficará com uma boa parcela do petróleo extraído. Ainda que uma parte possa ser destinada a formar estoques estratégicos, parcela significativa será comercializada. Ora, o governo não é um trader, não sabe comercializar óleo. Será preciso contratar alguém para fazer isso. Ninguém melhor do que a Petrobras. É uma ilação, claro. Com fundamentos sólidos, porém.

Nada nos projetos impede que o estoque de óleo seja utilizado com fins não comerciais. É possível que o Estado decida vender o óleo a custo subsidiado a quem lhe aprouver. Na forma como está proposta a regulamentação, o Congresso Nacional não poderá opinar sobre uma eventual ação governamental nesse sentido. Será possível que o governo federal, mesmo que de boa-fé, faça política industrial à revelia do parlamento. Certamente, essa possibilidade não é o melhor dos mundos. Isso para ficar somente no campo das, em princípio, boas ações. O Executivo disporá de um poder imenso nas mãos, sem precisar se preocupar com as aborrecidas discussões legislativas.

Por fim, o projeto de lei que estabelece o regime de partilha de produção determina sua aplicabilidade em áreas do pré-sal e áreas denominadas estratégicas. Estas últimas são definidas como “região de interesse para o desenvolvimento nacional, delimitada em ato do Poder Executivo, caracterizada pelo baixo risco exploratório e elevado potencial de produção de petróleo, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos”. Ora, caberá ao Poder Executivo, que amplo grau de discricionariedade, e sem ouvir o Congresso Nacional ou a sociedade, definir novas áreas a serem exploradas sob o regime de partilha de produção, já demonstrado inconstitucional. Tornando-me repetitivo: é força demasiada reunida em um só Poder.

Concluindo, como já disse um senador, considerando a anabolizada que, direta ou indiretamente, os projetos de lei dão ao Executivo, está faltando apenas um artigo em um deles mudando o nome do Palácio do Planalto para Palácio Miraflores.

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    é advogado e engenheiro mecânico, pós-graduado pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, consultor legislativo do Senado Federal.

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