Natureza indenizatória

Vale-transporte em dinheiro não gera contribuição

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13 de março de 2010, 6h29

Na sessão de quarta-feira (10/3), os ministros do Supremo Tribunal Federal travaram um longo debate para decidir uma causa antiga, o Recurso Extraordinário 478.410, interposto pelo Unibanco em 1999. Em julgamento, a natureza jurídica do vale-transporte quando pago em dinheiro e se nesse caso incide contribuição previdenciária, como entendeu o Tribunal Regional Federal de São Paulo.

Por maioria, vencidos os ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa, ficou decidido que o vale-transporte, tanto em tíquete como em dinheiro, tem natureza indenizatória e sobre o mesmo não há qualquer reflexo trabalhista ou fiscal. O ministro Gilmar Mendes esclareceu que ficou afastada a Repercussão Geral da decisão.

O relator do processo, ministro Eros Grau, disse que após seis anos no STF, do ponto de vista constitucional, esse foi “um dos casos mais importantes” que apreciou. “O tema transcende a subjetividade do debate entre as partes”, disse. Para formar seu entendimento, estabeleceu o conceito jurídico de moeda e fez uma distinção da moeda como instrumento monetário e como padrão de valor. “O que está sendo considerado aqui é a totalidade da Constituição. Quando se fala em funções da moeda estamos falando numa parcela do poder do Estado. A cobrança de contribuição previdenciária sobre valor pago em dinheiro a título de vale-transporte, que efetivamente não integra o salário, afronta a Constituição em sua totalidade normativa”, explicou.

Em seu voto, o relator lembrou que vale-transporte é um benefício que o empregador, pessoa física ou jurídica, antecipa ao empregado pela utilização efetiva em despesa de deslocamento de sua residência para o trabalho e vice-versa, através do sistema de transporte coletivo público intermunicipal ou interestadual. É benefício em favor do empregado que implica em dever do empregador que adquire uma quantidade de vales-transporte necessária ao deslocamento do trabalhador. Implica o dever da empresa de transporte coletivo de emitir e comercializar o vale-transporte.

Conceito de moeda
O relator explicou que o deslinde da questão “importa em necessária consideração do conceito de moeda, conceito jurídico e não o específico, da ciência econômica”. Segundo ele, “os enunciados legais, contratuais, obrigacionais, as condenações civis trabalhistas e penais de cunho pecuniário, a generalidade das manifestações jurídicas que encerram a diminuição patrimonial somente se podem efetivar mediante alusão ao padrão definido como moeda pelo Direito positivo. Eis aí então a moeda como padrão de valor”, disse.

Conforme Eros Grau, a moeda está inserida enquanto conceito jurídico na estrutura dos negócios. “Instrumentar o pagamento e constituir padrão de valor são funções que a moeda desempenha a mercê de sua validade e de sua eficácia jurídica. No plano do padrão de valor prevalece o atributo da qualidade do enunciado. Enquanto instrumento de pagamento, a ele é agregado o da eficácia.” O ministro explicou que “o que possibilitou o uso da moeda como instrumento de troca foi a institucionalização normativa da unidade monetária. Se não existisse tal norma jurídica, não teriam sentido as promessas de pagamento”. E citou como exemplo o Real, que passou a ser moeda brasileira em 30 de junho de 1994 devido à Medida Provisória 542.

Por esse entendimento, Eros Grau esclareceu que “é eficaz o pagamento realizado através do instrumento válido para tanto”. Segundo ele, é preciso indagar o que se pode comprar e com o que se pode pagar. Explicou que determinadas questões são solucionadas em razão da definição pela ordem jurídica da moeda. “É no plano da linguagem jurídica que se resolve qual é esse padrão de valor e qual é o instrumento monetário que se pode usar com eficácia.” Assim, o vale-transporte como “instrumento monetário válido é padrão de valor, enquanto instrumento de pagamento dotado de poder liberatório. Sua entrega ao credor libera o devedor”, pois “o instrumento monetário valida e confere eficácia aos negócios”.

Ao aprofundar-se no conceito de moeda, o ministro Eros Grau chegou a três conclusões: 1. A moeda assegura a liberdade e independência do seu titular; 2. Parte do poder do Estado integra-se a cada unidade monetária, essa parcela do poder que é exercida pelo sujeito de Direito na prática de atos de consumo, poupança ou investimento, ou simplesmente o exercício dos diferentes direitos subjetivos que pode deter o titular da moeda; 3. A moeda estabelece uma relação de igualdade entre o sujeito de Direito, em termos de igualdade formal, na medida em que opera a redução de complexidade.

Eros Grau afirmou que a aptidão da moeda para o cumprimento dessas funções “decorre das circunstâncias dela ser tocada pelos atributos do curso legal e do curso forçado”. Segundo explicou, “o curso legal expressa a qualidade do valor líquido da moeda, razão porque ela não pode ser recusada. O curso legal assegura ampla circulação e imposição de aceitação da moeda o que permite que ela se caracterize como meio de pagamento”. Por outro lado, “o curso forçado atinge o instrumento monetário enquanto valor e importa apenas em que não possa ser exigido o poder de sua conversão em outro valor”.

O ministro explicou ainda que o curso legal é determinante do poder incondicionante das duas funções básicas da moeda, a de instrumento de pagamento e a de padrão de valor. Assim, “a suposição de que o curso legal respeita apenas ao dinheiro fisicamente considerado sem afetar a função da moeda de padrão de valor não é correta. A validade do negócio jurídico depende da adoção da moeda que definirá o montante a pagar. O Decreto-lei 857/69 disciplina o curso legal da moeda nacional, cujo artigo 2º dispõe sobre as hipóteses de que excepcionalmente se admite a cláusula de pagamento em moeda estrangeira. Não derrogou a exclusividade de circulação da moeda brasileira e seu caráter de instrumento de pagamento no país”.

O julgamento
Ao verificar, em seu estudo, a função da moeda como padrão de valor, o ministro Eros Grau considerou viável o pagamento do vale-transporte tanto em tíquete como em dinheiro. De qualquer forma, o benefício “não tem natureza salarial, nem se incorpora à remuneração para quaisquer efeitos. Não se constitui base para incidência da contribuição previdenciária, FGTS e não se configura como rendimento tributável do trabalhador para fins de Imposto de Renda”, disse o .

O relator explicou que a contribuição previdenciária “não incide sobre o montante a que corresponde o benefício se esse montante vier a ser concedido ao trabalhador mediante a entrega dos vales. Quanto a isso não há dúvida”, disse. A discussão é se a substituição dos vales por dinheiro teria o condão de conferir ao benefício caráter salarial em razão do que este passaria a constituir base de incidência da contribuição previdenciária.

O acórdão recorrido em RE deu provimento à tese da Procuradoria do INSS, pela incidência da contribuição previdenciária sobre o vale-transporte pago em espécie, por força de acordo trabalhista. Para Eros Grau, “o pagamento do vale-transporte em moeda absolutamente não afeta o caráter não salarial do benefício. Não admitirmos isso, estaríamos a relativizar o curso legal da moeda nacional. Qualquer ensaio de relativização do curso legal da moeda brasileira afronta a constituição em sua totalidade normativa. Equivaleria a tornarmos relativo o poder do Estado que é integrado a cada unidade monetária”, concluiu.

Dias Toffoli acompanhou integralmente o relator. Já o ministro Marco Aurélio abriu divergência e deu início a um longo debate sobre a natureza do vale-transporte pago em dinheiro. “Estamos diante não do vale-transporte tal como definido em lei, que não pode ser em pecúnia, há proibição”, disse. Considerando que o pagamento em dinheiro é “uma vantagem proporcionada” ao trabalhador, o ministro lembrou que o artigo 7º, IV da CF define o salário mínimo como remuneração suficiente para as despesas do trabalhador, inclusive as de transporte. “Temos de fazer a distinção, o vale-transporte que é previsto na lei e esse outro vale-transporte que não é em si definido na lei própria e que é satisfeito em pecúnia, podendo o prestador de serviço se utilizar de veículo próprio e dar um destino diverso à importância paga.”

Cezar Peluso acompanhou o relator, mas fez uma reflexão sobre a natureza do benefício, a partir da proibição legal para que o vale seja pago em dinheiro, pois existe o risco de dissimular salário. “Continua sendo vale-transporte, tanto se for oferecido em um tipo de vale como se for pago em dinheiro”, disse o ministro.

Marco Aurélio argumentou que o vale-transporte satisfeito em pecúnia “se descaracteriza do que foi querido pela legislação, que é o vale entregue e, não sendo em pecúnia, representa a possibilidade do prestador de serviço se locomover. Na lei há uma proibição, devido aos desvios de utilidade, de se utilizar esse vale em outro transporte”.

O ministro Joaquim Barbosa mostrou-se decidido e votou antes do final do debate, para negar provimento ao RE. Lembrou que a Constituição (art. 201, § 11) diz que os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e consequente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.

Foi exatamente a análise desse dispositivo que levou a ministra Cármen Lúcia a discordar do ministro Joaquim Barbosa e também acompanhar o relator. Para ela, independente da forma de pagar, não muda a natureza de ressarcimento do benefício. “Trata-se de uma situação em que não se tem um ganho. A lei diz o ganho, mas aqui não é um ganho e, sim, um valor para que o empregado possa ter o transporte”, afirmou a ministra.

“O vale-transporte tem natureza indenizatória, tanto que não se converte em benefício ao trabalhador por ocasião de sua aposentadoria, nem em pensão pós morte para seus dependentes”, disse Ayres Britto. O ministro considerou que o valor pago é para ressarcir despesas de transporte e lembrou que não incide Imposto de Renda sobre o valor.

Marco Aurélio voltou a discordar, dizendo que “o vale-transporte da lei não é parcela remuneratória, mas o benefício sendo satisfeito em pecúnia tem natureza remuneratória e não pode se eximir de contribuição previdenciária”, afirmou. A ministra Cármen Lúcia lembrou que o Supremo firmou jurisprudência no sentido de que “em determinado tipo de falta tributária não se admite sanções políticas. Aqui seria uma sanção pela via da contribuição”, ressaltou.

O ministro Peluso acrescentou que “o descumprimento da norma (não pagar em dinheiro) não descaracteriza a natureza do vale para efeito de incidência de tributo”. Para ele, “a lei quer evitar exatamente a fraude (tributária) por dissimulação”, mas isso “não autoriza a decidir-se que o instituto tenha mudado de natureza e, portanto, não justifica que cobre tributo. No caso, seria cobrar tributo sem lei que o defina e que o autorize”, ressaltou.

A ministra Ellen Gracie, que também acompanhou o relator, acrescentou que “agregar a contribuição previdenciária ao benefício só serviria para aumentar o famoso custo-Brasil”. Celso de Mello também afirmou que “a parcela satisfeita em pecúnia não é de natureza remuneratória e portanto não integra o salário e nem a base de cálculo da contribuição previdenciária. A procuradoria do INSS busca fazer incidir contribuição previdenciária sobre uma parcela de natureza indenizatória”, disse.

Ricardo Lewandowski considerou o risco de negar provimento ao RE. “Se admitir-se agora a incidência da contribuição, estaria ferindo não apenas o princípio da segurança jurídica, mas também o princípio da boa-fé do empregador, porque a legislação infraconstitucional estabelece taxativamente que o vale-transporte não integra o salário”, disse. O ministro entende que “o empregador paga o vale-transporte com a expectativa de que ele está isento da contribuição previdenciária e teria frustrada essa expectativa porque satisfez o benefício em dinheiro. Uma decisão contrária a esse entendimento, a meu ver, levaria a paulatina extinção do vale-transporte que é um benefício importante para o trabalhador”, advertiu Lewandowski.

Protesto isolado
A decisão levou o ministro Marco Aurélio a fazer um protesto isolado em Plenário. Para ele, o desfecho dessa ação, que tramita há mais de dez anos, “é a sedimentação da ilegitimidade com o passar do tempo”. O ministro disse que “a questão foi colocada sob o ângulo fiscal, mas o entendimento da corte repercutirá no campo dos direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. Precisamos interpretar as leis à luz da Constituição Federal”, reclamou.

Ressaltando a sua origem na Justiça Trabalhista, Marco Aurélio fez uma ampla avaliação do caso. “O que nos vem da CF é que o salário mínimo visa cobrir certas necessidades do trabalhador. Sabemos que não é suficiente. Os tomadores de serviço não estão impedidos de avançarem no campo social e outorgar parcelas acima do salário mínimo. No âmbito do Direito do Trabalho, nós temos remuneração satisfeita em pecúnia e remuneração satisfeita em utilidade. É possível que o empregador pague pela educação, saúde do trabalhador, lazer, higiene e o próprio transporte. Dir-se-á que no caso houve acordo coletivo que estabeleceu que o benefício feito em pecúnia não integraria a remuneração. Essa cláusula cede ao princípio da realidade e impede as circunstâncias de as normas trabalhistas, protetoras do trabalhador, serem normas não dispositivas que somente atuem havendo lacunas quanto à manifestação de vontade. São normas imperativas. Tudo que é satisfeito, tudo que é pago ao trabalhador ante à relação jurídica estabelecida do vínculo empregatício integra a remuneração.”

O ministro Eros Grau informou que não considerou em seu voto a questão da convenção coletiva. “Porque esse vale-transporte que se trata aqui é o disposto no artigo 1º da Lei 7.418”, explicou.

O ministro Marco Aurélio considerou que “o TRF foi muito explícito em seu entendimento e apontou, em primeiro lugar, que o pagamento da ajuda transporte em dinheiro — faça o empregado o que quiser com esse quantitativo — e necessariamente não corresponde ao valor do transporte da residência até o local de trabalho, o que é vedado na lei, configura salário e compõe a remuneração”.

Sobre a incidência de tributos e os reflexos nos benefícios trabalhistas, Marco Aurélio concluiu que é lícito exigir a contribuição previdenciária sobre tal verba. Segundo ele, se o prestador dos serviços compor a remuneração, “passa a ter os reflexos previstos na legislação em vigor, inclusive quanto ao recolhimento do FGTS, satisfação do décimo terceiro salário e até mesmo das férias, com que se sobrepõe o princípio da realidade”.

“Não se tem aqui o vale-transporte que foi imposto pela Lei 7.418”, rebateu o ministro. Além disso, “a lei diz em seu artigo 4º que é ônus do empregador apenas uma parte do quesito considerado transporte. A remuneração satisfeita já cobre o deslocamento. Nos deparamos com uma situação concreta em que se nos foi potencializada a nomenclatura em detrimento do fundo. O que foi satisfeito. A verdade estampada no acórdão é que houve uma vantagem remuneratória. Não se trata do vale-transporte à razão de 6% do salário e tido como verba indenizatória. Esse valor que fica a critério do prestador dos serviços destinar a essa ou aquela finalidade se enquadra no gênero ganhos habituais do empregado e, portanto, integra a remuneração para todas as consquencias trabalhistas e o salário contribuição para efeito de recolhimento da previdência com repercussão em futuros benefícios”.

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RE 478.410

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