Contraditório constitucional

Delação feita na polícia não pode servir de amparo

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8 de março de 2010, 12h24

Justiça consensuada é um gênero que comporta quatro espécies: (a) Justiça reparatória (que se faz por meio da conciliação e da reparação dos danos. Exemplo: juizados criminais); (b) Justiça restaurativa (que exige um mediador, distinto do juiz; visa a solução definitiva do conflito, que é distinta de uma mera decisão); (c) Justiça negociada (que se faz pelo plea bargaining , tal como nos EUA); (d) Justiça colaborativa (que premia o criminoso quando colabora consensualmente com a Justiça criminal).

Os sub-modelos de Justiça consensuada que acabam de ser elencados não tem similitude com a Justiça retributivo-protetiva instituída com a Lei Maria da Penha (lei de proteção da mulher em razão da violência de gênero). A Lei Maria da Pena (11.340/2006) afastou a possibilidade de aplicação da lei dos juizados (artigo 41), ou seja, fechou as portas para o consenso dos juizados. Apesar do disposto no artigo 41, a 3ª Seção do STJ, com base no artigo 16 da lei Maria da Penha, firmou o entendimento de que a lesão corporal culposa ou leve exige representação da vítima (nos termos do artigo 88 da Lei 9.099/1995) (STJ, HC 96992 e REsp 1097042, j. 28.02.10). Nessa mesma linha impeditiva de qualquer tipo de consenso acham-se os crimes militares (que também se distanciaram do consenso).

A delação premiada, nesse contexto, faz parte da Justiça colaborativa. Nada mais significa que assumir culpa por um crime (confessar) e delatar outras pessoas. Delação é traição (que não é uma virtude), mas em termos investigatórios ela pode eventualmente ser útil, principalmente em países com alto índice de corrupção, como é o caso do Brasil.

Mas há uma série de cuidados e providências que devem cercá-la, porque ela pode dar ensejo a abusos ou incriminações gratuitas ou infundadas. Nos últimos meses, paralelamente às investigações das CPIs da corrupção, ela vem ganhando enorme notoriedade entre nós. Há anos já faz parte da cultura de vários países, destacando-se, dentre eles, a Itália (que combateu o crime mafioso por meio da delação, denominada de pentitismo ) e os Estados Unidos (recorde-se que 92% dos processos criminais nos E.U.A. terminam por força de acordo e a grande maioria desses acordos consiste em delação).

No Brasil a delação premiada está prevista em várias leis: lei dos crimes hediondos, lei de proteção das vítimas e testemunhas etc. Mas são leis cheias de lacunas. Urgentemente necessitamos de uma nova legislação que cuide da veracidade nas informações prestadas, exigência de checagem minuciosa dessa veracidade, eficácia prática da delação, segurança e proteção para o delator e, eventualmente, sua família, possibilidade da delação inclusive após a sentença de primeiro grau, aliás, até mesmo após o trânsito em julgado, prêmios proporcionais, envolvimento do Ministério Público e da Magistratura, transformação do instituto da delação em espécie de acordo criminal (plea bargaining) etc.

Não se pode confundir delação premiada com colaboração premiada (sem delação). Esta é mais abrangente. O colaborador da Justiça pode assumir culpa e não incriminar outras pessoas (nesse caso, é só colaborador). Pode, de outro lado, assumir culpa (confessar) e delatar outras pessoas (nessa hipótese é que se fala em delação premiada).

Quanto ao colaborador da Justiça não existe nenhum questionamento ético. A mesma coisa não se pode afirmar em relação à delação, que implica traição, falta de lealdade etc. A traição não é uma virtude, não deve ser estimulada, mas em termos investigatórios, como afirmamos, pode (eventualmente) ser útil. O modelo eficientista de Justiça na pós-modernidade está mais preocupado com sua eficácia prática que com pruridos éticos. Por isso é que o instituto da delação premiada tem futuro.

Aliás, esse futuro torna-se mais promissor na medida em que se agrava a falência da máquina investigativa do Estado. Quanto mais o Estado é dotado de capacidade investigativa menos necessita da delação dos criminosos. E vice-versa. De qualquer maneira, não sendo possível eliminar radicalmente a delação, há uma série de cuidados e providências que devem cercá-la.

Em primeiro lugar, não há dúvida que a delação pode dar ensejo a abusos ou incriminações gratuitas ou infundadas. O preocupante é que tudo isso vem a público imediatamente, porque o tempo da mídia não é o mesmo da Justiça. A presunção de inocência, lamentavelmente, não vale para a mídia. O tempo que se gasta para divulgar uma notícia hoje (fundada ou infundada, até porque se sabe que há setores no jornalismo que são enormemente irresponsáveis) é o mesmo que se consome para pronunciar as palavras delatoras.

Esse quadro é mais preocupante quando se trata de um delator político ou de uma delação com interesses políticos. Os políticos contam com ética própria, interesses específicos etc. O poder é a meta. E para se alcançar a meta (o fim) às vezes o legislador deixa de se preocupar com os meios. Delação de políticos ou feita por interesses políticos deve ser vista com redobrado cuidado.

No ordenamento jurídico atual há previsão de delação premiada em várias leis: lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei 9.807/1999), lei do crime organizado (Lei 9.034/1995), lei de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998), nova lei de tóxicos (Lei 11.343/2006)etc. Cada uma conta com suas peculiaridades. Não existe um regramento único e coerente. É chegado o momento de se cuidar desse tema com atenção, pondo em pauta questões relevantes como: prêmios proporcionais, veracidade nas informações prestadas, exigência de checagem minuciosa dessa veracidade, eficácia prática da delação, segurança e proteção para o delator e, eventualmente, sua família, possibilidade da delação inclusive após a sentença de primeiro grau, aliás, até mesmo após o trânsito em julgado, envolvimento do Ministério Público e da Magistratura no acordo, transformação do instituto da delação em espécie de plea bargaining etc.

Claro que o correto é o Estado se aparelhar cada vez mais para não necessitar da delação. Mas enquanto isso não acontece, a prioridade deve ser um detalhado regramento desse instituto, para se evitar denúncias irresponsáveis, o sensacionalismo da mídia, o vedetismo das CPIs, o afoitamento de autoridades da Polícia e da Justiça etc. O que não parece suportável é o atual nível de insegurança jurídica gerada pelas delações, que têm produzido efeitos muito mais midiáticos que práticos.

Em suma, delação sim, mas com (muita) responsabilidade. Subsidiando o entendimento de que é positiva a adoção desse instituto, pode-se afirmar que ele serve como estímulo à verdade processual, a qual é buscada também por meio da confissão espontânea. Além disso, com a sofisticação da criminalidade, nem sempre a polícia judiciária conta com meios suficientes para a elucidação de crimes. Desse modo a colaboração de algum envolvido (réu colaborador) se reveste de grande valia para o desmantelamento da organização criminosa por ele integrada. Assim, não há dúvida que a adoção desse instituto (tal como ocorreu no caso do Governador Arruda) viabiliza um crescimento na identificação da autoria de crimes. Ademais, há que se ressaltar o benefício da redução significativa da pena que pode ser aplicada àquele que decide por colaborar com a investigação policial.

De qualquer modo, não se pode deixar de sublinhar que a adoção do instituto em tela fomenta ainda mais a traição, comportamento de grande reprovação moral em toda sociedade. No âmbito legal, há quem sustente que rompe a proporcionalidade das penas, uma vez que agentes que desempenharam a mesma conduta típica serão apenados diferentemente. Esse argumento, no entanto, não pode prosperar. Cada um deve ser punido de acordo com sua culpabilidade (e responsabilidade).

Quanto à efetiva aplicabilidade da delação temos que fazer algumas reservas, uma vez que muitos agentes deixam de se valer do benefício da redução da pena por medo das conseqüências que de sua traição podem advir. Ex.: perseguição sua e de sua família, morte na prisão etc. Outro fator que não contribui para a eficácia do instituto é a dúbia posição do juiz (a lei não prevê sua participação da negociação; aliás, quando ele participa está impedido de presidir o processo principal).

Pode a delação de um co-réu incriminar outro co-réu? Temos sustentado que a delação de um co-réu só pode ser válida contra outro co-réu quando houve contraditório. Faz parte do devido processo legal o direito ao contraditório. Sentença que leva em conta a delação não produzida regularmente é nula. De se observar que o novo art. 157 do CPP diz que a prova é obtida por meio ilícito quando viola uma regra legal ou constitucional. Delação de co-réu sem a observância do contraditório é prova ilícita, que deve ser desentranhada dos autos.

Delação feita na polícia jamais pode servir de amparo para a sentença judicial. Na fase policial não existe o contraditório constitucional, logo, essa prova não vale judicialmente. Quando essa delação foi retratada em juízo, com muito mais razão não pode ter nenhum valor probatório. Ela não pode ser tomada como testemunho (disse o julgado). Delação retratada em juízo não serve como fundamento para nenhuma condenação.

Artigo publicado originalmente pelo portal da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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