Arranhão tênue

Intervenção no DF traz mais benefícios a cidadãos

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1 de março de 2010, 8h47

Em manifestação dirigida ao Supremo Tribunal Federal no início do mês de fevereiro, o ilustre procurador-geral da República, Roberto Gurgel, requereu intervenção no Distrito Federal (mais especificamente, nos Poderes Executivo e Legislativo, conforme esclarecimentos posteriores). O requerimento aludido invoca o artigo 34, inciso VII, alínea “a”, da Constituição, como fundamento para a medida extrema (“A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: … VII – assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático;”).

Nos últimos dias, a imprensa noticia uma forte movimentação da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal contra a decretação da intervenção. Segundo declarações do eminente Presidente da OAB-DF, Francisco Caputo, a autodeterminação política do povo do Distrito Federal não deveria ser afetada eis que os serviços públicos e as instituições funcionam normalmente.

Com todo o respeito que merecem a OAB-DF e o seu digno presidente, o atual contexto histórico vivenciado no Distrito Federal reclama a intervenção, ajustando-se aos ditames constitucionais para a adoção da providência excepcionalíssima.

A intervenção pressupõe uma resposta positiva, do Supremo Tribunal Federal, a seguinte pergunta: na atual quadra histórica do Distrito Federal encontram-se significativamente (e suficientemente) comprometidos: a) o princípio republicano de comportamento político-institucional; b) o sistema representativo e c) o regime democrático?

Infelizmente, a resposta, na nossa modesta opinião, é um sonoro e categórico SIM!

A análise não passa pela constatação da existência de um funcionamento formal das repartições públicas (estão de portas abertas, os telefones tocam, os documentos são carimbados, etc) ou dos serviços públicos (os semáforos acendem e apagam, os policiais estão nas ruas, as sirenes tocam, etc). Trata-se de uma avaliação substancial quanto à observância dos princípios antes alinhados nas mais relevantes manifestações do poder político distrital (nas relações internas no Poder Executivo e no Poder Legislativo, nas relações entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, nas relações entre os governantes e a sociedade civil, entre outras).

É bem verdade que os princípios referidos, assim como os princípios de uma forma geral, possuem uma certa plasticidade, um certo grau de indeterminação. A dificuldade de enquadramento de situações ou casos nas normas-princípios é, de certa forma, natural. Ademais, uma decisão tão grave como a intervenção não pode estar fundada em subjetivismos, voluntarismos, avaliações e conveniências político-partidárias, gostos ou inclinações pessoais, e outros elementos nesses sentidos.

Ocorre que os princípios funcionam, na atualidade, como os principais veículos de introdução de valores na ordem jurídica. Os princípios em questão impõem costumes políticos baseados na transparência (ou publicidade), na conduta pautada em padrões éticos adequados, na busca da realização do interesse público, no respeito ao patrimônio público, entre outros vetores igualmente importantes.

Nessa linha, existem contundentes dados objetivos, fatos públicos e notórios, para além de qualquer subjetivismo, que demonstram a significativa e suficiente corrosão, nos círculos mais importantes dos poderes políticos distritais, dos princípios republicano, representativo e democrático. Vejamos os elementos mais salientes, sem esgotá-los, até porque são produzidos e assistidos diariamente, como que numa novela de terror:

a) os veementes indícios (na forma de filmes e outros documentos) que apontam para a provável (mais do que possível) existência de uma ampla rede de corrupção envolvendo diretamente o governador do Distrito Federal e uma quantidade considerável de assessores diretos, deputados e empresários. Ressalte-se que existe algo em comum, ao menos nos filmes que vieram a público: maços volumosos maços de dinheiro, que mudam de mãos com a maior “tranquilidade” e “naturalidade” (um verdadeiro deboche para com a cidadania);

b) a inviabilidade prática da Câmara Legislativa do Distrito Federal dar andamento efetivo e expedito a investigações sérias, ante os envolvimentos diretos e as múltiplas vinculações e comprometimentos políticos, observados em todos os tipos de esquivas;

c) um inquérito (no âmbito da operação “Caixa de Pandora”, conduzida pela Polícia Federal) com dezenas e dezenas de filmes e referências de várias naturezas a atos de corrupção de inúmeros deputados, do primeiro escalão do Executivo distrital e de parte ponderável do empresariado local;

d) a tentativa de suborno de um jornalista, fartamente documentada, conduzida diretamente pelo principal núcleo do poder político do Distrito Federal;

e) a inédita prisão (cautelar) do governador do Distrito Federal. Registre-se que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decretou a prisão para garantir a ordem pública, entre outros motivos (Inquérito 650-DF). Assim, o segundo Tribunal mais importante do País atestou expressamente o atual comprometimento da ordem pública no Distrito Federal. Merece uma consideração especial o “apego” insuperável do governador do Distrito Federal ao cargo. Ao manter-se no posto, “contra tudo e contra todos”, gera uma profunda instabilidade político-institucional na cúpula do Poder Executivo distrital e inviabiliza o processo “normal” de sucessão, inclusive com a escolha, pela Câmara Legislativa, de um governador para concluir, com um mínimo de estabilidade, o atual período de governo;

f) a manutenção da prisão cautelar do governador do Distrito Federal pelo Supremo Tribunal Federal, na medida em que o nobre Ministro Marco Aurélio não concedeu liminarmente habeas corpus voltado para a liberação do preso;

g) a renúncia do então vice-governador do Distrito Federal, no exercício do cargo de governador naquele momento, ante as inúmeras e graves denúncias e a inviabilidade de obtenção de apoio político-parlamentar para se manter no posto;

h) a “posse” do terceiro governador (o presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal) em menos de trinta dias. É inegável que a sucessão de comandos na Administração Pública distrital cria tensões, descontinuidades, e toda sorte de dificuldades para a adequada condução dos negócios públicos;

i) a decisão da Executiva Nacional do (partido) Democratas no sentido do afastamento dos filiados de todos os cargos na Administração Pública do Distrito Federal. Perceba-se que não se trata de um desligamento da direção superior do Executivo, mas de todos os níveis da Administração (sinalizando claramente um quadro de comprometimento geral da máquina administrativa);

j) o próprio pedido de intervenção formulado pelo Procurador-Geral da República, autoridade com todos os predicados de um homem ponderado, sem inclinações para aventuras ou radicalismos.

Assim, nunca antes na história deste país houve um tão cabal e notório comprometimento visceral dos níveis decisórios mais elevados de um ente da Federação. Se a situação vivenciada não reclama intervenção, somente a paralisia física, a imobilidade completa, dos órgãos e instituições públicas autorizariam a medida extrema.

Não acreditamos que o constituinte da definição de um Estado Democrático de Direito tenha inscrito o instituto da intervenção somente para a situação terminal, extrema ou absoluta, algo como o epitáfio do ente da Federação. Pensamos que a intervenção pode e deve, se for o caso, e é o caso, concorrer para se evitar a situação de completa falência ou comprometimento das instituições locais. Observe-se que o constituinte trabalha com a processualidade, com a dinâmica da vida político-social, tanto para alcançar situações positivas como para evitar as negativas. O artigo 3º do Texto Maior fala em construir uma sociedade livre, justa e solidária. Já o artigo 60, parágrafo quarto, da Carta Magna, proíbe a deliberação sobre proposta de emenda tendente a abolir certas definições fundamentais.

Importa destacar que a intervenção no Distrito Federal efetivamente afeta (arranha) a autodeterminação política do povo local. Entretanto, esse “arranhão” é muito tênue ante o tamanho da afronta aos mais caros princípios (e valores) a serem observados na arena político-social, notadamente o profundo e vil golpe desfechado contra a própria auto-estima do povo do Distrito Federal.

Em suma, o povo do Distrito Federal exige e merece sua autodeterminação política. Mas não a autodeterminação como veículo meramente formal, protetor do império da corrupção, da impunidade e das práticas mais censuráveis jamais vistas, literalmente vistas, na história da República. É melhor, é infinitamente melhor, um curto eclipse na autodeterminação política local, sob controle, vigilância e acompanhamento da Nação brasileira, do que a convivência forçada e surrealista com dinheiros “sujos” nas bolsas, nos bolsos, nas meias, nas cuecas e com todas as consequências daí decorrentes. Superado o breve eclipse, teremos a retomada do pleno exercício da autodeterminação do povo do Distrito Federal em outras e mais sadias bases.

A providência extrema da intervenção é o remédio extremo (e amargo) para o quadro de extrema afronta aos mais elementares e caros princípios norteadores da prática político-institucional a serem rigorosamente observados no exercício do poder político no Distrito Federal.

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