O Constitucionalista

"Hegemonia da Justiça se deve a um Legislativo fraco"

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26 de maio de 2010, 6h10

O constitucionalista Luís Roberto Barroso, que participou dos julgamentos no Supremo Tribunal Federal sobre nepotismo, pesquisas científicas com células-tronco embrionárias e extradição do italiano Cesare Battisti, deu uma entrevista ao blog Os Constitucionalistas.

Durante a entrevista, Barroso conta porque decidiu deixar a Faculdade de Economia para se dedicar apenas ao Direito, e do seu interesse pelo Direito Constuticional, que à sua época não tinha muito charme. "Posso afirmar que me interessei por Direito Constitucional desde o tempo em que isso não dava prestígio para ninguém. As pessoas no Brasil valorizavam a lei ordinária, o regulamento, a portaria, o aviso ministerial. Nos piores momentos, um telefonema bastava", revela.

E lembra do conselho do seu pai: "Meu filho, você precisa parar com esse negócio de fumar, ser Flamengo e estudar Direito Constitucional, que não vai levar você a lugar nenhum. Estuda Processo Civil".

Quando questionado sobre a vivência de uma possível "supremocracia" pelo brasileiros, ressalta que o "Supremo tem servido bem ao país". E que a hegemonia do Judiciário se deve a um Legislativo fraco e sem credibilidade. "Em uma democracia, não é bom que exista uma instância hegemônica. É preciso que os poderes se contrabalancem efetivamente. Vivemos um momento em que há certa proeminência do Supremo e do discurso jurídico, o discurso da racionalidade do Direito", explica.

Ele defende o "semipresidencialismo para o Executivo e reforma política com o voto distrital misto em lista fechada e fidelidade partidária para o Legislativo”. Barroso também fala sobre a sua experiência com professor visitante na Polônia, onde integrantes da Corte Europeia dos Direitos Humanos e do Tribunal Constitucional Polonês são avessos à ideia de que o Judiciário pode ser um legislador positivo.

O advogado, que também é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tratou ainda da sua expectativa sobre o entendimento do STF em outras questões que ainda virão e com as quais ele também está envolvido diretamente. Uma delas é a possibilidade de a gestante de feto anencéfalo interromper a gravidez. A outra pede que a relação homossexual ganhe o mesmo caráter jurídico de união estável garantido aos casais heterossexuais.

Leia a entrevista

Por que o senhor escolheu o curso de Direito?
Luís Roberto Barroso – Eu queria ser compositor. O Direito veio por acaso (risos). Na verdade, eu nunca tive muitas dúvidas. Sempre me identifiquei com o Direito. Talvez minha primeira grande identificação tenha sido com a política, mas não em termos de ser candidato, e sim, como uma pessoa que pensava o Brasil. O fato que me despertou para a política antes de eu entrar na faculdade foi a morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975. Aquele episódio acendeu a luz amarela de que havia um país fora do discurso oficial. Então eu comecei a prestar atenção nas notícias desse caso e a perceber que havia uma censura intensa à imprensa. Eu tinha 17 anos. Desde essa época eu me tornei uma pessoa que gosta de pensar as coisas pela própria cabeça. Ir para a faculdade de Direito foi uma coisa natural.

Houve influência familiar?
Barroso – Meu pai era promotor de Justiça e a minha mãe, digamos, era da primeira safra de advogadas do Rio de Janeiro na década de 1950. Eles se conheceram na Faculdade Nacional de Direito. Uma mulher, fazendo curso superior, era pouco comum naquela época. O Direito era parte da minha casa, da minha vida cotidiana.

Onde o senhor nasceu?
Barroso – Sou de Vassouras, uma charmosa cidade do interior do Estado do Rio. Mudamos para a capital porque meu pai passou no concurso para promotor de Justiça. Eu tinha 5 ou 6 anos quando chegamos ao Rio, mas só fui gostar da cidade no início da vida adulta. Durante toda a minha juventude eu ia regularmente para Vassouras. Passava os fins de semana lá. Tinha uma vida mais no interior do que na capital. Mas depois me tornei um ser totalmente urbano.

Foi quando entrou na faculdade?
Barroso – Fui cursar Direito na UERJ e Administração-Economia na PUC. Fiz os dois vestibulares. Eu participava intensamente do movimento estudantil.

Em que época?
Barroso – Na segunda metade da década de 1970. Na PUC, as disciplinas eram Cálculo 1, Cálculo 2, Estatística 1, Estatística 2, Matemática financeira… Um dia descobri que não era feito daquele material, aquilo não me fazia feliz. Então, tranquei a faculdade de Economia, no quinto período, e me dediquei só ao Direito. Eu gostava muito de estudar e do movimento estudantil. Não era filiado a nenhum partido. Éramos todos de esquerda, naturalmente, mas a ideia de não ser pautado, de pensar pela própria cabeça, foi algo que despertou cedo em mim, atitude que é importante tanto para a cidadania como para o Direito.

Em uma época de hegemonia do Direito Civil, como o senhor descobriu o Direito Constitucional?
Barroso – O Direito Constitucional, ao longo da segunda metade da década de 1970, não tinha nenhuma relevância. Os professores de Direito Constitucional falavam de história, de política, contavam casos, mas não havia um Direito normativo que servisse para a tutela efetiva de situações subjetivas. Quando a ditadura começou a se diluir, eu percebi, no início da década de 1980, que havia demanda por conhecimento na área de Direito Constitucional e decidi estudá-lo. Posso afirmar que me interessei por Direito Constitucional desde o tempo em que isso não dava prestígio para ninguém. As pessoas no Brasil valorizavam a lei ordinária, o regulamento, a portaria, o aviso ministerial. Nos piores momentos, um telefonema bastava. O desprestígio era tanto que meu pai, preocupado com meu futuro, me disse: “Meu filho, você precisa parar com esse negócio de fumar, ser Flamengo e estudar Direito Constitucional, que não vai levar você a lugar nenhum. Estuda Processo Civil”.

Mas o senhor não o obedeceu…
Barroso – Não. Em 1985 ou 86 escrevi meu primeiro trabalho de alguma relevância. Chamava-se “Por que não uma Constituição para valer?”. Era sobre a efetividade das normas constitucionais. Esse trabalho foi o embrião da minha tese “O Direito Constitucional e a efetividade de suas Normas”. A partir daí, eu comecei a me interessar por um Direito Constitucional normativo. Estudei Processo Civil com José Carlos Barbosa Moreira, que era um grande professor, meu amigo querido. Suas lições me levaram a fazer um casamento do Direito Constitucional com o Direito Processual. O meu livro sobre a efetividade é um pouco a história desse casamento. Em resumo, eu fui para o Direito por uma identificação natural. E para o Direito Constitucional como uma forma de participar politicamente da vida do país.

Participar argumentativamente…
Barroso – Exato. A ideia de efetividade da Constituição era um avanço político. Ou seja, migrar da teoria crítica para a doutrina da efetividade foi transformar o Direito Constitucional em algo capaz de interferir na realidade social. E, depois, a combinação da doutrina da efetividade com a teoria dos princípios e com a teoria dos direitos fundamentais promoveu este ambiente, nas palavras do professor Paulo Bonavides, pós-positivista. Um ambiente que não despreza a demanda do Direito por segurança jurídica e por objetividade, mas que não aceita que o Direito se esgote na literalidade das normas.

E aí o sonho de ser compositor morreu?
Barroso – Eu adorava música. Sou da geração em que despontaram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gonzaguinha. O meu problema é que eu não tinha grande talento musical. Tinha a pretensão de ser um letrista razoável, mas eu não era um virtuose na música. Eu dependia de parceiros e tal. Essa dependência me afastou desse projeto de vida. Eu não sei se teria tido sucesso, mas eu gostava muito sim. Sempre gostei também de poesia.

Que tipo de poesia?
Barroso – Em certa época, eu gostava de poesia engajada (risos). Thiago de Mello, Ferreira Goulart… Depois, a vida nos adoça um pouco e passei a gostar de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Helena Kolody, que é uma poetisa do Paraná. Gosto do Paulo Leminski e adoro Fernando Pessoa.

Vivemos hoje uma Supremocracia?
Barroso – Não. O Supremo tem servido bem ao país. Nós vivemos, em alguma medida, o risco de uma hegemonia judicial porque o Legislativo atravessa uma fase difícil. Como não há democracia sem Legislativo forte e com credibilidade, devemos voltar as nossas energias para recuperar o prestígio e o espaço próprio do Parlamento, provavelmente com uma reforma política. Em uma democracia, não é bom que exista uma instância hegemônica. É preciso que os poderes se contrabalancem efetivamente. Vivemos um momento em que há certa proeminência do Supremo e do discurso jurídico, o discurso da racionalidade do Direito.

Então essa proeminência do Supremo é negativa?
Barroso – Esse quadro tem servido bem ao país, mas não pode ser um estado permanente. Não vivemos uma Supremocracia, mas em breve precisaremos de um novo reequilíbrio entre os Poderes. Minha proposta para o reequilíbrio dos Poderes é o semipresidencialismo para o Executivo e reforma política com o voto distrital misto em lista fechada e fidelidade partidária para o Legislativo.

E o voto obrigatório?
Barroso – Não tenho simpatia pelo voto obrigatório. Mas não sei se já podemos abrir mão dele. É esquisito um direito ser imposto. Mas é preciso estimular o seu exercício. Há um bom livro sobre essa questão, sobre o “empurrãozinho” que se deve dar na direção certa. Chama-se Nudge, que em uma tradução sumária significa o empurrão para a escolha certa. É do Cass Sunstein. Ele inicia o livro dizendo: “No final da fila em que você está servindo a comida numa escola primária, no momento da sobremesa você coloca primeiro as frutas e depois o doce. Ou você coloca mais facilmente ao alcance da mão a fruta do que o doce”. Não é proibido o doce. Quem prefere doce, pode ir ao doce, mas você, ligeiramente, favorece a escolha da melhor opção. Não tenho simpatia por nada que seja compulsório, mas talvez fosse o caso de se pensar em algo que mobilizasse as pessoas a votar. O Brasil é uma democracia muito jovem e os jovens devem ter liberdade de escolha, mas precisam ser orientados. Orientação não envolve escolha de mérito, mas apontar o melhor caminho.

O Supremo pode ser uma casa do povo, como o Parlamento?
Barroso – O Supremo é, ou pode ser, em alguma medida, o representante argumentativo da sociedade. Mas, casa do povo, não. Casa do povo é um rótulo que só cabe para os espaços em que os agentes políticos ali presentes são escolhidos pelo povo. O Judiciário é um Poder representativo porque todo Poder de uma democracia é Poder representativo. Como age em nome do povo e deve contas à sociedade, o Judiciário tem o dever de ser transparente e de ter sintonia com as aspirações sociais. Porém, aí há uma linha muito tênue e difícil: o Judiciário não pode ser um Poder populista. O Judiciário não pode ter o seu mérito aferido em pesquisa de opinião pública.

Por quê?
Barroso – Porque muitas vezes a decisão correta é a decisão impopular. Querem um exemplo? O ministro Gilmar Mendes. Ele é um exemplo de juiz que, em mais de uma ocasião, e eu acho que corajosamente, desagradou o clamor popular fazendo aquilo que ele achava que era certo. Eu nem sempre concordo com as posições dele. Tenho até uma ou outra queixa (risos). Mas admiro a independência com que ele exerce o seu ofício.

O Judiciário hoje legisla?
Barroso – Quando se lida com cláusulas gerais, como princípios ou conceitos jurídicos indeterminados, a vagueza da norma aumenta significativamente o papel do intérprete na determinação do sentido da norma. Normas como dignidade da pessoa humana, razoabilidade, eficiência, solidariedade, fazem com que o intérprete tenha que produzir a solução do caso concreto. É ele que vai verificar se aquela hipótese viola ou não a dignidade da pessoa humana.

O senhor pode citar um caso de interpretação do princípio da dignidade da pessoa humana?
Barroso – Há um caso famoso do Conselho de Estado Francês, o do arremesso de anão. Em uma cidade francesa, havia um estabelecimento comercial que tinha como atração a atividade de arremessar um anão. Quem arremessasse o anão mais longe ganhava o grande prêmio da noite. Um dia, o prefeito da cidade, compreensivelmente horrorizado com a atração, proibiu o evento. O estabelecimento recorreu contra a decisão do prefeito, tendo como litisconsorte ativo ninguém menos do que o anão.

O próprio anão?
Barroso – Sim. E ele alegou, sem trocadilho, que não se sentia diminuído com aquela atividade (risos). A jurisdição administrativa deu ganho de causa ao estabelecimento e restabeleceu a prática do arremesso de anão. O prefeito recorreu ao Conselho de Estado, que reformou a decisão e interditou a atividade em nome da ordem pública e da dignidade da pessoa humana. O argumento foi o de que um indivíduo deve ser sujeito de Direito e não objeto de Direito para ser arremessado de um lado para outro como se fosse uma coisa.

Um objeto…
Barroso – A sociedade tem que assegurar e restabelecer a dignidade de uma pessoa mesmo quando ela, voluntariamente, esteja abrindo mão disso. Esta é uma forma de ver este assunto. Mas nos Estados Unidos, onde houve muitas ações envolvendo a mesma questão, prevaleceu a ideia oposta, a de que a dignidade da pessoa humana assegura, antes e sobretudo, a autonomia privada. Portanto, se o anão quer e espontaneamente participa do evento, o Estado não tem o direito de impedir que ele exerça a sua vontade neste sentido. O exemplo aqui citado mostra como a dignidade da pessoa humana pode ter mais de uma compreensão, dependendo do ponto de observação e dos valores que você coloca dentro deste rótulo abrangente e complexo.

Duas interpretações completamente diferentes sobre o mesmo princípio…
Barroso – Com sua carga axiológica, e a partir de um ponto de observação diferente, as pessoas interpretam de maneira completamente diversa o mesmo princípio. A tese que eu sustentei no caso das células-tronco embrionárias foi a de que quando você tem um desacordo moral razoável, ou seja, quando os dois lados têm argumentos que merecem consideração e respeito, o papel do Estado e do Direito não é escolher um dos lados, mas assegurar que cada um viva sua crença, que cada um viva a sua autonomia privada.

E no caso das células-tronco, ADI 3.510, o Supremo fez isso?
Barroso – A lei das pesquisas com células-tronco embrionárias exigia autorização dos genitores, de quem tinha doado o material genético para a concepção dos embriões que tinham sido congelados. A lei trata isso da única forma possível, que é permitir a quem queira doar para a ciência, que doe. E assegurar que quem não queira doar, não doe. Nessas matérias que dividem a sociedade, o papel do Direito e do Estado é assegurar que cada um viva seus próprios valores, e não impor autoritariamente uma visão de mundo. Em algumas matérias eu acho que isso é relativamente fácil de fazer, em outras é muito complexo.

A solução seria a mesma na discussão da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos?
Barroso – Sim. A questão do aborto é difícil em qualquer parte do mundo por causa das implicações éticas envolvidas. Mas a interrupção da gestação de fetos anéncefalos não tem nada a ver com aborto. No caso de anencefalia, a mulher faz o diagnóstico e descobre no terceiro mês de gestação que o seu filho não terá cérebro e não terá vida extrauterina. Portanto, a discussão não é a mesma. O aborto é uma discussão sobre autonomia da vontade da mãe, de um lado, e a potencialidade de vida do feto, de outro. É uma discussão complexa. A questão da anencefalia é saber se o Estado tem o direito de impor seis meses de imenso sofrimento a uma mulher, período no qual ela sofre as transformações físicas e psicológicas pelas quais passa uma mulher durante a sua gestação, se preparando para ter um filho que ela não vai ter. Um filho que não vai ter um berço, mas um caixão.

Se julgar procedente a ADPF 54 o Supremo se torna legislador positivo?
Barroso – Não. Mas também não há nenhum problema de o Supremo ser legislador positivo. Essa resposta me lembrou um episódio. Quando minha sobrinha tinha 10 anos de idade, portanto, 20 anos atrás, os pais viajaram e eu a levei para passear na praia de Copacabana. Ela estava triste, com saudades dos pais. Eu a levei à pérgula do Copacabana Palace, um lugar muito bonito, com uma piscina linda, nós pedimos uma coca-cola e, em certo momento, já mais feliz, ela se virou para mim e disse: “Ô tio, qualquer um pode entrar aqui?”. Aí eu respondi: “Minha querida, em primeiro lugar, eu gostaria de lhe dizer que o seu tio não é qualquer um; em segundo lugar, sim!” (risos).

Moral da história…
Barroso – No caso da anencefalia, o Supremo não será legislador positivo se julgar a ação procedente. Mas, se fosse, não teria nenhum problema. Esse dogma Kelseniano de o Judiciário não poder ser legislador positivo permanece nos sistemas jurídicos que ainda não conseguiram fazer a transição para uma nova compreensão do Direito. No ano passado, passei um período como professor visitante na Polônia, que é um país de redemocratização recente. Eu compartilhei algumas dessas ideias com pessoas da Corte Europeia dos Direitos Humanos, do Tribunal Constitucional Polonês, e a discordância deles foi muito veemente. Ou seja, em outras partes do mundo também ainda se vive esse dogma do Judiciário não poder ser legislador positivo. Mas esse dogma presta tributo a um outro: o de que as soluções para os problemas jurídicos estão prontas na lei. Se você admite que o juiz, quando interpreta conceitos jurídicos indeterminados, quando dá sentido aos princípios ou desempata os desacordos morais razoáveis, é co-participante do processo de criação do Direito, a ideia de que ele é legislador puramente negativo cai por terra. A norma é construída para o caso concreto. Vivemos uma época em que estão superados os dogmas da neutralidade científica da interpretação, superado o mito do juiz como alguém que desempenha apenas uma função técnica de conhecimento para revelar a solução que está presente na norma. Sobretudo na interpretação constitucional, o juiz é um co-participante do processo de criação do Direito. Soluções jurídicas são criadas argumentativamente e é preciso demonstrar à luz de cada caso concreto porque aquela razão é a melhor solução.

O senhor pode ilustrar com um exemplo?
Barroso – O caso em que um jornalista escreveu uma biografia sobre o cantor Roberto Carlos e ele foi a juízo para impedir a divulgação do livro. O Roberto Carlos, de quem eu gosto muito, diz: “Eu não quero que publique porque isso viola meu direito de privacidade e viola minha imagem. O autor está usando minha imagem e violando minha privacidade contando a história da minha vida”. E o cantor invoca em seu favor dois dispositivos constitucionais. Então o jornalista, a meu ver com melhor razão, sustenta: “Eu estou exercendo minha liberdade de expressão. O público tem o direito à informação e nós estamos lidando com uma personalidade pública”.

Qual o problema deste litígio?
Barroso – É o pior problema na vida de um juiz. Os dois lados têm razão, e razão constitucional, mas o juiz não pode julgar a lide empatada e condenar o escrivão a pagar as custas (risos). O juiz precisa construir uma solução para aquele problema e terá que, argumentativamente, dizer por que ele entende que naquele caso concreto deve prevalecer uma solução e não a outra. Esse juiz não é legislador positivo? Ele está criando a solução que não está pronta em lugar nenhum.

Se não está pronta, como se afere a legitimidade da solução que o juiz constrói?
Barroso – A legitimação passa a ser argumentativa. Ele tem que convencer um auditório, ao qual a decisão dele se dirige, que aquela decisão é a melhor decisão do caso concreto. Qual é o auditório? O auditório do juiz de primeiro grau é o seu tribunal. Se for uma questão constitucional, o auditório do tribunal de segundo grau vai ser o Supremo. Mas também o Supremo tem o seu auditório. O Supremo não julga para ele mesmo e nem para desfastio dos seus ministros. A Corte precisa estar sintonizada com a sociedade. Como eu disse antes, o Supremo pode tomar uma decisão impopular. Mas mesmo quando toma uma decisão impopular ele precisa ser capaz de expor suas razões para a sociedade e tentar convencê-la. Eventualmente a sociedade pode até não se convencer.

Mas estar em sintonia com a sociedade, como o senhor disse, é diferente de populismo…
Barroso – Sim. O Supremo pode, e deve em certos casos, tomar uma decisão contrária à demanda social. Mas se ele proferir uma decisão contrária ao sentimento social e depois uma segunda, uma terceira, uma quarta, você vai ver um Tribunal que começa a perder a sua identidade com a sociedade e, progressivamente, a sua legitimidade. Portanto, há hipóteses em que uma Corte Constitucional não vai atender à demanda social. Mas se na rotina da vida ela não for capaz de atender, há um problema de legitimidade que precisa ser reequacionado. Por isso que o mito do legislador negativo da jurisdição constitucional é algo que deve ficar para trás.

Como isso se encaixa na discussão da anencefalia?
Barroso – A questão da anencefalia não levará o Supremo a atuar como legislador positivo. O que se cuida na ADPF 54 é de interpretação conforme a Constituição. Existem três teses na ação da anencefalia. A tese número um envolve a atipicidade, o princípio da legalidade. Aborto pressupõe a existência de uma potencialidade de vida. No Direito brasileiro, não há normas sobre o momento em que tem início a vida, mas existem normas sobre o momento em que ocorre a morte. A morte é a morte encefálica. Como feto anencefálico não chega a ter vida cerebral, do ponto de vista legal ele não é uma vida em potencial. Consequentemente, a interrupção da gestação é um fato atípico. A norma do Código Penal que criminaliza o aborto simplesmente não incide nesta hipótese porque o aborto pressupõe a potencialidade de vida.

Qual a segunda tese?
Barroso – A da interpretação evolutiva. Aprendemos que existem quatro elementos de interpretação: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. A interpretação histórica é, de todas, a que desfruta de menos prestígio, sendo aquela interpretação que procura reconstituir o momento de edição da norma e a intenção do legislador. Uma norma, a partir do momento em que ela é posta no mundo, se liberta da vontade subjetiva que a criou e passa a ter uma existência objetiva, que permite que ela se adapte às novas circunstâncias e às novas demandas sociais. A interpretação histórica é substituída pela interpretação evolutiva. Os princípios, os valores subjacentes a esta norma, como é que eles se aplicam às novas situações. Veja: o Código Penal de 1940 permitiu a interrupção da gestação no caso de grave risco de vida para a mãe; e também no caso de estupro. Não previu a hipótese de inviabilidade fetal. Em 1940, não havia meio tecnológico de se fazer ultrasonografia, ecografia e o diagnóstico. Pois bem: interromper a gestação de um feto anencefálico é bem menos traumático do que interromper a gestação de um feto gerado por estupro. No caso do feto gerado por estupro há uma vida potencial, mas, em respeito ao sofrimento da mãe, vítima de uma violência, à honra da mãe, como se pensava antigamente, permite-se a interrupção da gestação. Por que razão a “honra”, considerada absolutamente, deve valer mais do que o imenso sofrimento dessa mesma mulher? Tenho amigos por quem tenho grande carinho que, por convicção religiosa, são contrários à minha tese. Mas, no espaço público, deve prevalecer a razão pública.

Como definir a razão pública?
Barroso – É igualmente um conceito dificílimo do debate filosófico e constitucional contemporâneo. A razão pública é um conceito que vem de John Rawls, autor americano que faleceu há poucos anos. Razão pública significa que o Judiciário de um Estado laico e democrático plural não pode justificar as suas decisões com argumentos religiosos ou ideológicos. Precisa justificá-las com argumentos que possam ser compartilhados por pessoas que tenham religiões e ideologias diferentes. “Em nome do comunismo, eu decido dessa forma” não é um argumento de razão pública. Ou “em nome da superioridade masculina eu decido dessa forma”, também não. A ideologia tem lugar no debate público, mas não tem lugar nas decisões judiciais, pelo menos conscientemente. Então, o segundo argumento é o da interpretação evolutiva. O Supremo não estará criando uma situação nova, mas apenas declarando uma hipótese de interrupção de gestação que está compreendida na lógica moral do Código Penal.

E a terceira tese?
Barroso – É um pouco mais sofisticada. É o argumento da dignidade da pessoa humana, em que se pede a interpretação conforme a Constituição para declarar que os dispositivos do Código Penal que cuidam do aborto não incidem no caso de anencefalia. Se incidissem, estariam violando o princípio da dignidade da pessoa humana. Por que estariam violando o princípio da dignidade da pessoa humana? Por que o Estado estaria impondo um imenso sofrimento inútil a uma mulher. Evidentemente, se a mulher quiser levar a gestação até o final é um direito dela. Violar a dignidade da pessoa humana é impor um sofrimento inútil e evitável contra a vontade daquela mulher. Com o devido e merecido respeito a quem pensa diferentemente, em nenhum dos três argumentos o Supremo atuará como legislador positivo.

O Supremo Tribunal Federal suprirá então uma omissão do Congresso, que não enfrenta a questão da anencefalia?
Barroso – Se o Congresso legislasse, o problema estaria resolvido. Porém, é preciso distinguir omissão de lacuna e de silêncio eloquente. Silêncio eloquente é quando você, ao não dizer, está se manifestando. Lacuna é quando você não cuidou de uma matéria. E omissão é quando você não cuidou tendo o dever de cuidar. No caso dos fetos anencéfalos, estamos diante de uma omissão inconstitucional. E na vida política existem espaços que não foram legislados. Nesses espaços, quando você precisa tomar uma decisão, você deve tomá-la à luz dos princípios constitucionais.

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