Bode expiatório

Recursos constantes podem ser única solução

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18 de maio de 2010, 14h31

É usual atribuir-se aos advogados militantes o uso abusivo de recursos. Tal escusa genérica tem servido de esteio, dentre outros mais louváveis, a tantos precedentes esforços de atualização da legislação instrumental, na busca, esta sim inalcançável, de compatibilizar-se a cidadania à garantia constitucional do processo célere. Multiplicam-se as emendas legislativas e renovam-se os códigos vigentes. Surpreendentemente, no entanto, pouco ou quase nada se fala acerca do atual despreparo que qualifica a outorga da prestação jurisdicional. A precariedade no preenchimento das vagas postas em concursos seguidos, ou ainda, o permanente silêncio correicional, viraram regra de lamentável observância. Tudo a legitimar, justificando-o, o uso não excessivo dos recursos legais, como alternativa derradeira na busca do legalmente devido ao cidadão.

A combatividade postulacional não se equipara à litigância improba. Com ela não se confundindo, tampouco sana os errores in iudicando e in procedendo, tão seguidamente abrigados na garantia do duplo grau jurisdicional, em prejuízo do bom Direito. Afinal, o colegiado nem sempre melhor decidirá.

Com efeito, para ilustrar o dever inafastável, na defesa da causa, do uso dos recursos disponíveis, resgate-se rumoroso processo recém transitado perante o C. Superior Tribunal de Justiça sob número 1.081.432-SP, depois de tramitação que beirou 12 anos, alcançando menina em estado vegetativo permanente desde que, na piscina condominial onde sempre vivera, teve seus cabelos aprisionados pelo sistema de drenagem ali instalado. O sistema, disponibilizado no mercado sem as devidas advertências ao consumidor leigo, fora irresponsavelmente comprado e operado pelo condomínio.

O caso envolveu o novo Direito de Danos, o alcance da responsabilidade civil e do direito consumerista, o dever securitário de indenização e, principalmente, a necessidade premente de o prudente arbitramento judicial, na difícil tarefa de bem valorar seríssimos gravames morais, diuturnamente renovados, além de vultosos danos materiais e estéticos, finalmente abandonar a visão de que qualquer demandante é mero oportunista sequioso de riqueza indenizatória.

Não se pode aceitar, definitivamente, que em nome da reputação ilibada que regra o apontamento dos integrantes das instâncias maiores do Judiciário, juízes sejam merecedores de indenizações substanciais enquanto, ao mesmo tempo, a família do morto receba o equivalente a cem salários mínimos de compensação. Ou ainda, em casos que nitidamente justificam maior compensação, as partes sejam quase obrigadas à indesejada mendicância justamente no Planalto Central.

“Aliás, uma mãe muito injustiçada, segundo o acórdão recorrido. Uma mãe a quem se tributa a responsabilidade de ter deixado uma criança que sabia nadar — e nadava bem — nadar na piscina do condomínio. A criança mede 1,5m, e a piscina, 95 cm. Não entendo como se pode falar em culpa concorrente. Quem é que mora em condomínio e acompanha seu filho de dez anos toda hora à piscina? Se a mãe estivesse lá, diante da situação, a menina puxada pelo cabelo, teria acontecido o mesmo, porque os irmãos estavam lá, a vizinha gritou, tentaram ajudar e a dificuldade foi muito grande. (…) Perdoem-me, mas essa mãe foi muito injustiçada. É de cortar o coração quando se examinam os autos e se vê atribuírem à mãe tal responsabilidade. Nossos filhos de dez anos, quando vão nadar, sabendo nadar, vão para uma piscina funda. Mas era uma piscina rasa. Essa mãe foi duplamente atingida.”[1].

Essa a crítica sem precedentes ao acórdão oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo, que, à unanimidade, nessa parte confirmara, violando o melhor Direito, em triste exemplo do menosprezo às tradições da Justiça paulista, a inteligência do juízo singular. Pior. Muito pior. Na instância derradeira, depois de longa tramitação, a turma julgadora parcialmente proveu o recurso das autoras da demanda, reconhecendo a relevância dos temas jurídicos agitados.

Consignou a d. relatoria — quase 12 anos decorridos do aforamento da lide — que “o malsinado incidente, ocorreu não por descuido dos familiares da menina, mas pelo fato de ter a mesma, como concluíram as instâncias de ampla cognição, sido vítima de afogamento decorrente de ter seu cabelos sugados por sistema de recirculação e tratamento de água super dimensionado, indevidamente instalado e mal operado pelo condomínio réu. A presença da genitora da vítima no local só adicionaria ao evento mais uma testemunha ao acidente que imputou à menor gravíssimas sequelas que a acometeram. Destarte, sem precisar maiores indagações, tenho que não há falar, in casu, em culpa da genitora da vítima, revelando-se merecedor de reparos o aresto impugnado, neste ponto.”[2].

Mais do que isso. Diante da manifesta relevância dos temas versados, o julgamento mereceu, com a imediata veiculação, a atenção da Secretaria de Imprensa do C. Superior Tribunal de Justiça. Naquela semana, porque reproduzida a notícia na ConJur[3], foi uma das matérias mais lidas pelo mundo jurídico. O mesmo se deu, por iniciativa materna, no blog por ela criado (cf. www.flaviavivendoemcoma.blogspot.com).

Nada obstante, ainda assim a via recursal não se esgotara. No julgamento colegiado, silenciou-se no tocante a vários temas recursais, culminando por omitir, desprezando-a, qualquer imposição sucumbencial às vencedoras. Ora, se verdadeiro que “a Magistratura só estará à altura do idealizado Estado Constitucional e Democrático de Direito se (e quando) for confiável. E para ser confiável necessita de independência e imparcialidade, evidentemente. Além disso, precisa com humildade reconhecer suas mazelas e tudo fazer (transparentemente) para corrigí-las”[4], a dedução de tempestivos declaratórios foi obrigatória.

Outro ano fluiu. Com a invocação aos sempre vislumbrados efeitos infringentes, não teve jeito. O provimento parcial, ao menos, se impôs e a condenação honoratícia foi de rigor, ditando-se ao Condomínio vencido pagar a ultrajante quantia de singelos R$ 5 mil pelo trabalho desenvolvido durante quase 12 anos — cerca de R$ 454,55 por ano de trabalho efetivo, ou ainda, R$ 1,25 por dia.

Muito pior do que o acanhamento decisório foi a constatação de que, além da direta ofensa à lei instrumental na parte dizente com a justa remuneração advocatícia, também à jurisprudência daquela Alta Corte de Justiça nenhuma atenção se emprestou. Insistindo. “Sem a jurisprudência do caso, às vezes nada se pode decidir com seriedade. (…) Tudo o que for escrito no processo deve ser lido[5], para que se possa responder a cada alegação. Não se pode omitir nada. As omissões são um dos pontos que mais acarretam inconformismo razoável dos advogados e das partes.”[6]. Afinal, dizem os doutos, “a jurisprudência é, nos tribunais, a sabedoria dos experientes. É o conselho precavido dos mais velhos. Quem conhece a lei e ignora a jurisprudência, diz, com exagero embora, Dupliant, não conhece quase nada. Manter quanto possível a jurisprudência, será obra de boa política judiciária, porque inspira no povo a confiança na Justiça.” (n.g.).[7]

Que fazer? Novamente recorrer e esperar outro ano para se iniciar a liquidação do julgado, com o direto compromentimento do bem estar das lesionadas? Finalizando, urge que os Eméritos Julgadores não abdiquem da missão constitucional de decidir, nem em termos verbais.[8]. Urge, outrossim, detida ponderação decisória, com o específico propósito de acelerar, finalmente, a outorga da legítima prestação jurisdicional. Caso contrário, sim, recorrer é preciso.

Errare humanum est, sed perseverari diabolicum. Com a palavra, a Comunidade Jurídica, a Secção Paulista da Ordem dos Advogados, por seu ilustre presidente, o Conselho Federal da OAB, os ilustres magistrados, é claro, e, por que não, o Conselho Nacional de Justiça.


[1] cf. STJ, REsp nº 1.081.432-SP, Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, voto vencedor, p. 39, grifamos.

[2] cf. STJ, Resp nº 1.081.432-SP, rel. Ministro CARLOS FERNANDO MATHIAS, j. em 03.03.2009, por maioria.

[3] cf. “STJ define limites da responsabilidade civil”, ed. de 09 de março de 2009.

[4] cf. LUIZ FLÁVIO GOMES, A Dimensão da Magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito, Rev. dos Tribs., 1997, p. 182, grifamos.

[5] cf. Ministro MÁRIO GUIMARÃES, O Juiz e a Função Jurisdicional, Forense, Rio, 1958, p. 326 : “Leia o juiz acuradamente, período por período, a norma que pretende aplicar. Leia-a desde a epígrafe e em todos os artigos. …” (nossos grifos).

[6] cf. Ministro SIDNEI AGOSTINHO BENETI, Da Conduta do Juiz, Saraiva, 1997, págs. 34 e 37, n.g. .

[7] cf. Ministro MÁRIO GUIMARÃES, O Juiz e a Função Jurisdicional, Forense, Rio de Janeiro, 1958, p. 327.

[8] cf. Ministro SIDNEI AGOSTINHO BENETI, Da Conduta do Juiz, Saraiva, 1997, pág. 125, grifamos.

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