Justiça Transparente

Defesa não teve espaço no julgamento dos Nardoni

Autor

16 de maio de 2010, 10h50

Quando aceitei defender o casal Nardoni, tinha absoluta ciência da comoção potencial do caso. Mas o que ocorreu durante a desgastante semana do júri superou completamente as minhas mais exageradas expectativas. 

Por esse motivo, passado um mês do julgamento, decidi tecer algumas considerações que me parecem pertinentes à democracia, aos direitos individuais e à modernização do sistema criminal brasileiro. Principalmente à luz do balanço que se faz hoje das transmissões ao vivo das sessões do Supremo Tribunal Federal, a mais alta corte do país. 

Desde logo adianto que não irei trazer nenhum fato relativo ao processo em si, que ainda tem seu trâmite na Justiça. É fato que a vítima, Isabella Nardoni, era uma criança, e, como qualquer criança, linda e inocente. Também é fato que os envolvidos pertencem a uma família de classe média, um ingrediente a mais no caldo da curiosidade popular. 

Mas é possível imaginar um julgamento justo diante de todo o clamor que se acumulou durante dois anos, entre a morte da pequena Isabella e o início do julgamento? 

Se o corpo de jurados é formado por sorteio dentre os membros da sociedade, e se demais membros dessa mesma sociedade permaneceram na porta do fórum clamando por vingança e linchamento, como encontrar pessoas predispostas a ouvir as partes com imparcialidade? 

Como esperar neutralidade de jurados que passaram dois anos sob cobertura jornalística pouco técnica, embora legítima e cada vez mais profissional? Como convencer os jurados a relevar o bombardeio de emoções a que foram submetidos no período? 

Não se trata aqui de criticar a figura dos jurados sorteados, e que ali estavam exercendo seu papel da forma mais digna possível. Trata-se de refletirmos sobre a possibilidade ou impossibilidade de essas pessoas se desprenderem do peso das ruas, do peso do público ruidoso -que podíamos ouvir à distância- cobrando a cabeça dos réus. Éramos, os membros da defesa, chamados de "assassinos". 

Diante da impossibilidade – feliz, aliás – de calarmos os meios de comunicação, pensamos exatamente no oposto. Requeremos ao juiz, pouco antes de a solenidade começar, que o julgamento fosse televisionado (com a óbvia preservação da identidade dos jurados), assim como no STF. 

Dessa forma,os fundamentos poderiam ser expostos com a mesma rapidez com que todas as teses acusatórias haviam sido transmitidas à mídia durante os dois anos que antecederam aquele momento. Entendíamos que só assim poderíamos transmitir à opinião púbica uma outra visão do processo. 

O pedido, contudo, foi negado pelo magistrado. Ele entendeu que a publicidade já estava garantida por meio de uma pequena plateia autorizada a acompanhar o julgamento, suposição elaborada no passado, quando TVs, rádios e jornais não tinham um centelho do poder de hoje, a internet não existia e, imaginava-se, era possível blindar os jurados do clamor popular.

A decisão do magistrado nos pareceu sem sentido, simbólica de um desajuste entre a instantaneidade dos meios de comunicação e o anacronismo de certo pensamento jurídico. E aqui vem o ponto principal deste artigo. Fico com a sensação de que só com o televisionamento dos júris a sociedade pode entender a absolvição de réus nos casos em que a população clama por linchamento. 

Talvez só assim os jurados possam ter a tranquilidade necessária para eventualmente resolver a dúvida em favor dos réus, sem temor das reações populares -afinal, o público também acompanharia os argumentos técnicos expostos durante o julgamento. 

O surpreendente é que, tendo negado nosso pedido, o juiz autorizou a transmissão da sentença, ao final do julgamento, por microfone e caixas de som instaladas na rua. O público não pôde acompanhar a defesa, mas, sob fogos de artifício, ouviu a condenação ser proferida, acirrando os ânimos e sentimentos mais primitivos dos populares ali presentes. 

Saí do episódio sem esperança, com a sensação de alguém que se vê impotente diante de tamanha fúria. Só depois pude ler as matérias publicadas e veiculadas ao longo dos cinco dias de julgamento. Elas nem de longe retrataram o que se passou lá dentro. Refleti sobre o ocorrido, sobre a administração e a transparência da Justiça e sobre meu ofício. 

Por isso, deixo publicamente essa sugestão. Por mim e por tudo em que acredito. E pela crença de que todos, efetivamente, são merecedores de defesa. Quanto mais prejulgados forem os acusados, mais efetiva defesa merecerão. E, da minha parte, é justamente a indelével fé na justiça que me leva a continuar essa caminhada tão espinhosa. 

[Artigo publicado na edição deste domingo (16/5) no jornal Folha de S. Paulo.] 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!