Habermas e Luhmann

Decisões judiciais devem fazer diferença

Autores

  • Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

    é advogado em Minas Gerais e mestre e doutor em Direito Constitucional (UFMG) e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

  • Rafael Lazzarotto Simioni

    é pós-doutor em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra doutor em Direito Público pela Unisinos mestre em Direito pela UCS graduado em Direito pela UCS professor da FDSM e da Univás e pesquisador na área de hermenêutica e iconografia jurídica.

12 de maio de 2010, 8h14

Saber “como” os juízes decidem é uma questão fundamental em um Estado Democrático de Direito que propugna pela proteção dos Direitos Fundamentais. Sabemos que, diferentemente do Estado Liberal e do Estado de Bem-Estar, no Estado Democrático de Direito (Democratic Rule of Law) (1) há uma grande preocupação não apenas com a declaração de direitos, mas também com garantir formas de se proteger os mesmos.

Entre as “garantias constitucionais”, os meios judiciais assumem singular importância. Daí porque sabermos a “forma” em que a decisão se dá (ou como deveria) é fundamental na promoção dos Direitos Fundamentais. Entretanto, se por um lado, deve-se superar concepções positivistas, que reduzem a aplicação do direito à mera subsunção, não se deve, por outro lado, transpor o “código” próprio do Direito e transformar a resolução de casos jurídicos em sopesagem de valores, como se direitos fossem “bens” que pudessem ser “maximizados” ou “minimizados”, tal qual propõe Alexy e vem se utilizando o STF, através do princípio da proporcionalidade.

Para responder às exigências do Estado Democrático de Direito, propomos no presente mostrar as respostas que, a partir de Habermas e de Luhmann podem ser dadas. Com Habermas e Luhmann chamaremos a atenção para o caráter deontológico do Direito, que, como subsistema social, se move por um código próprio (direito/não direito) — e não por códigos graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de Luhmann, vemos que Direito e Política são subsistemas sociais autopoiéticos, cada um se reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição se revela como acoplamento estrutural (Luhmann) — ou, em Habermas, como “dobradiça” — que permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal forma que ambos podem prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo, perderem suas respectivas identidades.

Tomando-se os postulados de Habermas, entendemos que qualquer decisão judicial deve ser o produto de uma reconstrução do caso concreto, tomado como evento único e irrepetível e do Ordenamento Jurídico como “mar revolto de normas”, em sua “integridade”, é dizer, deve o magistrado mostrar como foi formado seu convencimento, tendo em mira a conformidade ou não das pretensões a direito levantadas pelas partes face às especificidades do caso sub judice — de tal forma que a decisão seja o produto daquilo que foi produzido em contraditório pelas partes, com a cooperação do magistrado, de modo racional.

Sobre o conceito de racionalidade, Habermas faz uma diferença entre a “razão prática”, própria da filosofia da consciência e a “razão comunicativa”, própria da filosofia da linguagem. Para ele, após Auschwitz não há mais como continuar se acreditando no poder emancipador da razão (prática), tal como defendido pelo cartesianismo e kantismo (2). Por outro lado, Habermas não entende que a crítica pura e desconstrutiva (como Nietzsche e Derrida) à razão seja possível, já que toda crítica da razão também é produto da razão (HABERMAS, 1998, página 59) por razões semelhantes não acredita em uma pós-modernidade, já que também acredita que há promessas ainda não cumpridas pela mesma. Sua alternativa é a ideia de “razão comunicativa”, em uma perspectiva procedimental, haja vista que, se de um lado há a crítica aos excessos da razão solipsista, por outro não há nada “mais alto” para além de nós mesmos, mas agora não considerados isoladamente, mas entendendo que compartilhamos formas de vida que são estruturadas (intesubjetiva e) linguisticamente (HABERMAS, 1998, página 59).

O que é problemático, para alguns no Direito, isto é, enxergar que a crença cega no absolutismo da razão não faz mais sentido após os excessos vivenciados nos dois últimos séculos, onde, ao invés de gerar “libertação e igualização” gerou exploração e genocídio instrumentalizados. Assim, quando se aprovam mecanismos como “Súmulas Vinculantes” e “efeitos vinculantes” em controle concentrado de constitucionalidade de leis o que se tem ainda é a crença cartesiana de que a realidade é um dado objetivo, estático, que possa ser “presa” através de fórmulas — de forma semelhante como se pensou ser possível com o Código Civil francês. Complementar a isso estão outras reformas no processo nada mais fazem do que diminuir a esfera de discussão, na ideia de que a diminuição gerará celeridade, quando, na verdade, o efeito é justamente contrário, ou seja, que é justamente a possibilidade do amplo debate e esclarecimento no primeiro grau que pode, potencialmente, reduzir a possibilidade de recursos desnecessários (NUNES; BAHIA, 2009).

A razão comunicativa supõe que o entendimento sobre algo no mundo se dá intersubjetivamente, a partir de um conjunto de condições contrafácticas possibilitantes; supõe, por isso, compreender o outro como igual portador dos mesmos direitos (3).

Entretanto, a possibilidade do entendimento fica “prejudicada” por uma sociedade descentrada e pós-metafísica, onde não há mais homogeneidade sobre conceitos de moral, ética, etc. (HABERMAS, 2001, página 94) Há que se atentar, no entanto, que, mesmo não compartilhando as mesmas expectativas, existem “consensos de fundo”, isto é, temas não questionados que possibilitam o mínimo de entendimento (a esse pano de fundo de silêncio Habermas reutiliza a ideia de mundo da vida) (HABERMAS, 1998, página 83).

A todo momento, no entanto, quaisquer temas podem sair do “silêncio” e adentrar a arena pública de discussão, o que, mais uma vez, faz ressurgir a possibilidade do dissenso (HABERMAS, 1998, página 87 e OLIVEIRA, 1989, página 32), que deve ser compensado por arenas públicas de integração social (4). O meio institucional que, contingencialmente, surgiu na modernidade para fazer frente a isso foi a constituição do Direito como medium de integração social, possibilitando a estabilização de expectativas de comportamento (5).

O Direito não apenas possibilita que tenha curso a ação comunicativa, mas também possui o poder de conter ações estratégicas (isto é, orientadas apenas ao próprio êxito)(6). Ele aparece, então, como coerção (facticidade), mas também como conjunto de normas legítimas (validade), de forma que os destinatários das normas podem obedecê-las por lhes reconhecer sua validade ou então simplesmente por temer a coação. A validade do Direito advém do reconhecimento, por parte dos destinatários das normas, como também sendo normas feitas por eles (através de seus representantes) — o processo legislativo é o meio institucional através do qual se gera “solidariedade social”, de forma que a possibilidade de obtenção de consenso pode se dar não porque todos concordem sobre (isto é, compartilhem) certos valores, mas porque concordam sobre a forma (o procedimento) de discordar (FARIA, 1978, página 65).

Esse Direito, na Modernidade, se origina a partir da tensão entre Soberania Popular (autonomia pública) e Direitos Humanos (autonomia privada). Os cidadãos de um Estado, através do processo legislativo (autonomia pública) se dão direitos, mas eles apenas podem fazer isso porque, ao mesmo tempo, se reconhecem como livres e iguais portadores dos mesmos direitos (autonomia privada). O conjunto desses direitos de participação política e dos direitos individuais forma o que Habermas chama de “Sistema de Direitos”, ou seja, aqueles direitos que os indivíduos reconhecem reciprocamente quando decidem regular sua convivência através do Direito (HABERMAS, 1998, página 164ss.).

Através da institucionalização de um procedimento legislativo democrático, cria-se uma arena institucional para onde temas fundados nos mais diversos tipos de argumentos (éticos, morais, econômicos, pragmáticos, etc.), têm a possibilidade de adentrar e, após discussão, virem a ser transformados em normas (e, a partir daí, serem regidos pelo código próprio do Direito) (HABERMAS, 1998, páginas 94 e 175). O mencionado Sistema de Direitos é fundado através da Constituição e pode garantir coerção às suas normas através do Estado de Direito, meio institucional que possui o poder de garantir institucionalmente a co-originalidade das autonomias públicas e privadas: sua atuação protege e faz cumprir normas garantidoras da autonomia privada (direitos “humanos”) ao mesmo tempo em que cria uma arena pública institucionalizada na qual influxos comunicativos da periferia podem adentrar e “influenciar” a formação da opinião e da vontade pública vinculante (legislativa, administrativa e judicial) na medida em que influenciam a agenda do procedimento legislativo institucionalizado e este, por sua vez, fornece subsídios às decisões dos outros poderes (7).


Ao contrário do que se tradicionalmente pensava, o Ordenamento jurídico não era um sistema “completo”, possuindo “lacunas e antinomias”. Para solucioná-las foram propostos uma série de “métodos”: literal, histórico, sistemático, etc. (além de regras para solução de antinomias: lei superior derroga inferior, etc.). A partir do uso destes métodos, acreditava-se, achar-se-ia “o verdadeiro” sentido da lei, seja isso significando a mens legislatoris, seja a mens legis. A percepção de que tal intento não era realizável se tornou mais evidente quando o Direito passou a regular profundamente novos temas (economia, contratos, trabalho, previdência e mesmo família). Isso levou autores como Kelsen e Hart a proporem que, caso o juiz tivesse diante de si um caso sobre o qual não houvesse clareza quanto à norma aplicável ou o sentido dessa norma (ou, de qualquer modo, não houvesse norma), estaria o juiz “autorizado” a dar a solução que entendesse melhor (HABERMAS, 1998, página 271; BAHIA, 2004). Esse “decisionismo” se tornou inevitável para concepções do Direito como sistema fechado de regras.

Para Habermas, há que se repensar o Judiciário, desde uma perspectiva procedimental do Estado Democrático de Direito. Todo processo judicial se move na tensão entre a segurança jurídica (dada pela positivação das regras que regem o procedimento, bem como pelas normas que geram direitos levados a juízo) e a pretensão de se obter decisões corretas (isto é, racionalmente aceitáveis) (HABERMAS, 1998, página 267) — para isso o procedimento judicial toma as normas como dados e cria uma estrutura que possibilita a argumentação (sem, contudo, interferir no conteúdo da argumentação mesma).

Entretanto, essa é uma tarefa complexa. Se já não mais é possível afirmar-se que a aplicação do Direito consista em mera subsunção, por outro lado, não se pode pretender do Judiciário que seja colocado como o guardador das “virtudes” (pressupostamente compartilhadas) da comunidade. De um lado, desde Kelsen já não se acredita mais que o uso de “métodos de interpretação” nos faz alcanças “o verdadeiro” sentido da norma (BAHIA, 2004). De outro lado, não é possível sustentar teorias que supõem valores compartilhados (como ALEXY, por exemplo), haja vista que confundem o caráter deontológico do direito com a graduação, própria dos valores e ainda supõe a existência de valores que, por serem compartilhados, poderiam ser escalonados. Sabemos que tal compartilhamento não existe em sociedades pós-tradicionais, o que poderia levar o Judiciário — caso adotasse tal método — a um puro decisionismo (8).

Garantido-se a estrutura do processo de argumentação, a decisão judicial se consubstancia no resultado daquilo que os sujeitos do processo, em simétrica paridade, trouxeram; é dizer, a sentença será legítima se, obedecido o contraditório, for ela o produto da reconstrução do caso e do ordenamento, dessa forma respondendo às pretensões a direito levantadas pelas partes (NUNES, 2008).

Em Niklas Luhmann podemos encontrar um tipo diferente de intelecção a respeito de como os juízes decidem. No âmbito da sua teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, a investigação da decisão jurídica é realizada por meio de uma análise das operações de decisão como formas de distinção. Decisões são, nessa perspectiva, operações de indicação e distinção (SPENCER-BROWN, 1979, página 1) que produzem uma diferença no sistema. E que assim produzem também uma atualização do sistema dentro da sua dinâmica de clausura operativa (autoreferência) e abertura cognitiva (hetero-referência).

Importante ter presente, antes disso, que a teoria dos sistemas de Niklas Luhmann procura observar a sociedade como formas de comunicação funcionalmente diferenciadas (1998; 2003 e 2007). Formas de comunicação diferenciadas em sistemas/função dotados de clausura operativa e de autopoiese, como são os sistemas/função direito, política, economia, arte, ciência, religião, meios de comunicação de massa etc. Cada sistema disponibiliza uma racionalidade diferente para as decisões. Cada sistema estrutura formas de comunicação que produzem sentido de modo diferente. E ao se transitar, como um observador externo, de um sistema de referência para outro, os diversos sentidos são reconstruídos de modo contingente, de modo policontextural.

No caso específico do sistema/função do direito, essa estruturação da comunicação ocorre através do código da diferença entre direito e não-direito. Assim, toda comunicação da sociedade que faz referência a essa diferença entre direito e não-direito fica atribuída ao sistema jurídico, quer dizer, ganha o sentido já estruturado simbolicamente pelo sistema do direito. Um evento qualquer da sociedade pode ser observado em termos de verdade e falsidade (código da ciência), como também pode ser observado em termos de pagamento ou não-pagamento (código da economia) e igualmente pode ser observado em termos de governo ou oposição ao governo (código da política) ou entre informação nova e redundância (código dos meios de comunicação de massa), entre outros inúmeros contextos de significação possíveis. Mas se esse evento for observado em termos de direito ou não-direito, então já se está fazendo referência ao sistema jurídico da sociedade.

Uma decisão jurídica, portanto, é toda decisão que faz referência à diferença entre direito e não-direito. Nessa perspectiva da teoria dos sistemas, torna-se possível observar a produção de decisões jurídicas em todos os contextos da sociedade e não apenas nos tribunais. Qualquer decisão que utiliza o direito como sistema de referência já é uma decisão jurídica, ainda que decidida no âmbito de sistemas de organização que não fazem parte das instituições jurídicas tradicionais, como o Estado ou mais especificamente os tribunais. Uma empresa ou sujeito qualquer pode decidir entre o lucro e o prejuízo em uma determinada situação, como também pode decidir entre a verdade e falsidade. Pode decidir também por salvar sua alma evitando o pecado em um contexto de referência religioso. Pode também julgar uma situação segundo um código moral de bondade ou maldade. Mas sempre que usar, como sistema de referência para a sua decisão, o código do direito, já se está decidindo segundo a estrutura sistêmica do direito.

O nível inusitado de abstração dessa conceituação luhmanniana exige uma aproximação prévia. Pode-ser partir, a título de ilustração, da explicação tradicional da doutrina jurídica sobre como se decide uma questão jurídica. Com efeito, na doutrina jurídica tradicional pode ser encontrada uma técnica de decisão que parte daquele silogismo aristotélico entre premissa maior (a lei, geral e abstrata), premissa menor (o caso, especial e concreto) e conclusão (o resultado, o comando de eficácia da decisão).

Mas por trás dessa operação nós podemos ver uma série de pressupostos que já estão previamente decididos na estrutura do sistema jurídico mesmo: a escolha da premissa maior já é uma decisão contingente, que precisaria ser decidida e justificada; a definição do caso concreto também já é uma decisão por ressaltar algumas e não outras características do fato; como também a conclusão é uma decisão que recomenda uma ou algumas eficácias normativas que poderiam ser diferentes. E alguém poderia então contestar: mas então uma decisão jurídica é impossível! E é exatamente nessa impossibilidade que começa a idéia de decisão jurídica.

A decisão jurídica é impossível de ser decidida e, paradoxalmente, exatamente por ser impossível, é que ela exige uma decisão. Se não fosse impossível, não exigiria uma decisão, exigiria apenas uma operação de reprodução de decisões anteriores, sem nenhum conteúdo inovador, sem nenhuma exigência de argumentação da escolha decidida e sem nenhuma produção de diferença no âmbito do sistema jurídico.


Existem portanto decisões jurídicas que apenas reproduzem as operações anteriores do sistema, sem produzir nenhuma diferença, produzindo apenas redundância, confirmação de decisões pretéritas. Mas existem também decisões jurídicas que inovam as operações anteriores, que produzem diferença, produzem variações. As decisões reprodutoras são operações de comunicação jurídica, mas não são decisões no sentido que queremos destacar a partir da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. Já as decisões que introduzem uma diferença nas operações do sistema, estas sim são decisões, porque não apenas decidiram entre esta ou aquela regra ou princípio, esta ou aquela solução, este ou aquele argumento. E também não se tratam de decisões que decidem apenas entre manter a tradição jurisprudencial ou inová-la com um novo precedente diferente, inaugurando uma nova corrente jurisprudencial. A decisão jurídica é mesmo aquela que era impossível de ser decidida e, precisamente por ser impossível de ser decidida, teve que ser criada, inventada, decidida. E como tal, também, justificada.

A decisão está, portanto, na impossibilidade da decisão. Porque se a decisão fosse possível, já não seria uma decisão, seria apenas uma operação de reprodução da diferença já distinguida na história do sistema. Exatamente quando não é possível decidir, quando não é possível a reprodução redundante de uma operação, é que temos então a autêntica decisão jurídica: a introdução de uma diferença que produz variação, que mexe com a redundância do sistema e que, por isso, pode – não necessariamente – provocar transformações estruturais no sistema se essa variação for tolerada (selecionada) pelas próprias estruturas e assimiladas como re-estabilização[9]. Já se pode ver, portanto, que as próprias transformações no sistema só ocorrem em níveis toleráveis pelo próprio sistema, como se fossem pre-adaptative advances.

Por isso que, por mais inovadora que seja uma decisão jurídica, ela só passa a constituir-se como referência para novas operações jurídicas se o próprio sistema do direito a tolerar dentro de suas estruturas. A decisão inovadora, portanto, sempre será uma decisão já esperada pelo sistema, tolerada pelo sistema e estruturalmente compatível com o estado imediatamente anterior da rede de operações do sistema. Ela inova em relação às operações anteriores, mas não inova em relação às potencialidades desde já sempre projetadas pelo sistema[10].

Com isso fica claro que a decisão jurídica — gize-se: decisão realizada com base no código da diferença entre direito e não-direito —, é uma operação do sistema jurídico. É uma operação que faz parte do direito. É uma operação que se endereça, ela mesma, ao sistema jurídico como sistema/função de referência. Por mais que se possa ver, do ambiente do sistema jurídico, uma decisão jurídica como sorte, como inspiração divina (religião), como bela (arte), como pagamento (economia), como um ato de poder (política), como verdade (ciência) etc., ela continua a possuir a identidade da decisão jurídica na medida em que decidida com base no código “direito/não-direito”.

Nesse contexto da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, então, podemos compreender de um modo diferente a pergunta pelo como os juízes decidem. A decisão jurídica decide sempre em condições de incerteza e, ao mesmo tempo, pressionada pela regra do non liquet. Isso faz com que a decisão jurídica tenha que decidir inclusive quando não pode decidir. Como então a decisão torna possível a sua própria impossibilidade? A resposta que Luhmann coloca a esse paradoxo é a metáfora do décimo segundo camelo (LUHMANN, 2004), quer dizer, a introdução de uma referência externa para completar a ausência da possibilidade da decisão. A introdução de um valor lógico do ambiente do sistema para completar a incompletude do teorema. Para isso servem os recursos argumentativos a valores exteriores ao sistema de referência.

Junto com Jacques Derrida, também podemos chamar esses recursos argumentativos externos ao sistema jurídico de “suplementos” (11). Nós encontramos “suplementos” em todas as decisões jurídicas que recorrem a valores lógicos exteriores ao sistema jurídico para suplementar a ausência de um fundamento jurídico unívoco na decisão, para tornar “presente” o fundamento “ausente”, para completar a falta de justificação com um suplemento argumentativo. Esses suplementos, na prática das decisões judiciais, podem ser observados quando a decisão recorre a princípios morais, valores éticos ou religiosos etc. E também podem ser observados quando a decisão recorre àquilo que se convencionou chamar de “orientação às conseqüências”, isto é, o uso do recurso à previsão dos prováveis efeitos colaterais ou impactos da decisão jurídica na economia, na ciência, na política, na educação etc.

Um dos aspectos mais interessantes dessa operação é que sobre esse uso de suplementos argumentativos não há nenhum tipo de controle. Não há nenhuma regra ou princípio positivo que permita controlar, nem mesmo há um procedimento que permita monitorar o uso legítimo desses suplementos argumentativos na práxis das decisões jurídicas.

Assim a decisão passa a constituir-se, a si mesma, como fundamento do próprio sistema jurídico. Não no sentido de Carl Schmitt (1984), mas no sentido de que a validade das normas jurídicas encontra a sua referência de sentido na decisão, que por sua vez encontra nas normas jurídicas a sua validade. Uma relação circular de validação então acontece: a decisão baseia a sua validade nas normas jurídicas que ela mesma afirma serem válidas. Ou em termos circulares: a decisão valida as normas que validam a decisão.

A introdução de uma referência externa então assimetriza esse paradoxo. Há princípios, há valores, há conseqüências etc. Mas o paradoxo não se resolve, apenas se desdobra para novas configurações: a referência aos princípios cria, ela mesma, a projeção de conseqüências para serem usadas na fundamentação da decisão judicial. Como também a referência às conseqüências da decisão cria, por si só, a projeção de princípios e valores normativos. Claro que, no nível das autodescrições do sistema jurídico, esses princípios e valores são fundamentados com independência da positividade do direito e também com autonomia em relação aos casos concretos. E é exatamente esse o ponto: um fundamento externo para ser introduzido argumentativamente na decisão, um “terceiro incluído”, um “suplemento”.

A partir de Habermas, compreendemos que o Direito hoje deve ser concebido como um sistema aberto de princípios, sendo insustentáveis quaisquer propostas positivistas ou literalistas de aplicação do Direito. E por meio da teoria dos sistemas de Luhmann, pode-se entender que a decisão jurídica sempre constitui um ato criativo de desdobramento de paradoxos que, exatamente por esse motivo, exige graus mais sofisticados de justificação.

Habermas e Luhmann chamam a atenção para o caráter deontológico do Direito, que, como subsistema social, se move por um código próprio (direito/não direito) — e não por códigos graduais de valor, como propõe a teoria alexyana. A partir de Luhmann, vemos que Direito e Política são subsistemas sociais autopoiéticos, cada um se reproduzindo a partir de seus códigos próprios e que a Constituição se revela como acoplamento estrutural (Luhmann) — ou, em Habermas, como “dobradiça” — que permite que haja comunicação entre aqueles sistemas, de tal forma que ambos podem prestar serviços mútuos um ao outro, sem, contudo, perderem suas respectivas identidades.


No contexto dos ideais políticos e normativos do Estado Democrático de Direito, temos que esperar, portanto, que as decisões jurídicas levem à sério os valores e princípios constitucionais atualmente importantes para a sociedade. Não que o direito possa efetivamente substituir a política na concretização dos objetivos políticos do Estado Democrático de Direito, mas que pelo menos as decisões jurídicas possam criar diferenças no sentido desses ideais.

Referências
1. A expressão não é nova, como nos lembra Fix-Zamudio (1968, p. 11) já a Lei Fundamental de Bonn (1949) prescrevia que a República Federal alemã se constituía em um “Estado de derecho democrático de carácter social” (art. 20, I). Entretanto, o Estado que (res)surgia após a 2ª Guerra será marcadamente “Social” (Welfare State), como FIX-ZAMUDIO (idem) lembra, fazendo menção ao que afirmou Forsthoff, para quem, só como Estado Social um Estado de Direito se mantém. Sabemos, no entanto, que é da crise do Welfare State que surgirá um novo paradigma de Estado, o Estado Democrático de Direito, que possui como referenciais legais, as Constituições de Portugal – 1976 (Estado de direito democrático, art. 2º) e Espanha – 1978 (Estado social y democrático de Derecho, art. 1º, I). Sobre os paradigmas constitucionais da Modernidade e suas implicações sobre a interpretação do Direito, cf. BAHIA (2004).
2. Vale lembrar que é a Modernidade que cria o conceito de indivíduo, ao mesmo tempo em que lhe atribui uma razão inata capaz de conhecer todas as coisas. Daí afirmar Manfredo de Oliveira (1989, p. 29) que na tradição racionalista da filosofia da consciência “a subjetividade emerge como a fonte de todo sentido”, logo, a partir do “eu” se constrói um “outro”, que se objetualiza — “o processo de subjetivação coincide com o processo de objetivação universal” (idem). Daí a perfeita formulação de uma ciência assentada no tripé: “sujeito, objeto e método”. São justamente essas verdades cartesianas, baluartes da Modernidade que sofrerão duros golpes no século XX.
3. Sobre isso ver SALCEDO REPOLÊS (2003, p. 49-50) e BAHIA (2006a).
4. “A cada novo impulso de modernização abrem-se os mundos da vida divididos de modo intersubjetivo para se reorganizarem e novamente fecharem” (HABERMAS, 2001, p. 105).
5. Na verdade, além do Direito, há dois outros sistemas de integração social: Mercado e Poder Administrativo. Entretanto, apenas o Direito se move por ações comunicativas (cf. HABERMAS, 1998, p. 89; 2001, p. 194 e 1987, p. 112).
6. Sobre a diferença que Habermas estabelece entre Ação Comunicativa e Estratégica, cf. HABERMAS (1990, p. 75)
7. Este Estado de Direito passou por variadas (re)leituras, desde o advento da Modernidade, no movimento de mudanças de paradigmas do constitucionalismo, ou seja, a forma como “liberdade e igualdade” foram compreendidas ao longo do tempo. Sobre o tema ver BAHIA; NUNES, 2009.
8. Percebe-se tal fato quando juízes, a partir do princípio da proporcionalidade, passam a “julgar as opções do legislador” não tendo em vista sua constitucionalidade e sim a “razoabilidade” da lei. O que se tem aí é uma perda dos limites do Judiciário (perda, inclusive, dos limites à crítica, já que a decisão, teoricamente, se funda em argumentos racionais de custo-benefício sobre o que é “melhor” para a sociedade). Cf. BAHIA (2006b e 2005).
9. A teoria da evolução de Luhmann explica como ocorre esse processo de variação, seleção e re-estabilização sistêmica, para a qual remetemos o leitor (LUHMANN, 2003 e 2007b). E no caso específico do Direito, ver-se Luhmann (2005).
10. Talvez seja necessário destacar, contra uma grande quantidade de críticas inadequadas a essa perspectiva sistêmica, que essas potencialidades já projetadas pela estrutura do sistema não tem nada a ver com a idéia da quadratura do direito de Hans Kelsen. Dizer que o sistema projeta para o futuro potenciais de sentido que podem se confirmar /condensar ou não nas operações jurídicas não significa dizer que há uma discricionariedade na interpretação de normas. Até porque entender o direito como um sistema é vê-lo como uma estrutura social muito mais complexa do que apenas um conjunto sistemático de normas.
11. Para Derrida (2004, p. 178), “acrescentando-se ou substituindo-se, o suplemento é exterior, fora da positividade à qual se ajunta, estranho ao que, para ser por ele substituído, deve ser distinto dele. Diferentemente do complemento, afirmam os dicionários, o suplemento é uma ‘adição exterior’”. Observa-se também esta passagem de Derrida (2007, p. 109-110): “sem estar aí imediatamente presente, ela [a violência] aí está substituída (vertreten), representada pelo suplemento de um substituto. O esquecimento da violência originária se produz, se abriga e se estende nessa différance, no movimento que substitui a presença (a presença imediata da violência identificável como tal, em seus traços e em seu espírito), nessa representatividade différantielle.”

Referências
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