Detido por dívidas

Supremo avança ao não permitir prisão civil

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9 de maio de 2010, 7h37

Obteve grande repercussão a decisão do Supremo Tribunal Federal, de 3 de dezembro de 2008, à respeito do Recurso Extraordinário 466.343-SP, que discutiu acerca da impossibilidade da aplicação da prisão civil do depositário infiel face o disposto no artigo 7º, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que estabelece o que segue:

“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”

Percebe-se que a tese da supralegalidade dos tratados internacionais que versam sobre direitos humanos concilia algumas ideias da corrente que prevê a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, pois rechaça a paridade em relação à lei ordinária, destacando nesse âmbito a superioridade do direito internacional, porém ao mesmo tempo, assinala a necessidade de respeitar-se a Constituição da República, não contrariando seus dispositivos. Depreende-se desse modo, que a norma internacional que versar sobre os direitos humanos posicionar-se-á hierarquicamente abaixo da Carta Magna, contudo apresenta status superior ao das leis ordinárias.

No julgamento do Recurso Extraordinário 466.343-SP, em que pese o voto do ministro Celso de Mello, ter sido no sentido de que os tratados de direitos humanos devem ter hierarquia materialmente constitucional, o voto-vista do Ministro Gilmar Mendes, seguido pelos demais ministros, conferiu status supralegal aos referidos tratados. Acerca do assunto, assevera Mazzuoli:

“Assim, no julgamento (histórico) do dia 3 de dezembro de 2008 prevaleceu no Supremo Tribunal Federal o voto do ministro Gilmar Mendes (por cinco votos a quatro), ficando afastado (pelo menos por enquanto) o posicionamento do ministro Celso de Mello, que reconhecia valor constitucional a tais tratados. Como se percebe (e, sob esse aspecto, só temos o que comemorar), o STF não mais adota a equiparação dos tratados de direitos humanos às leis ordinárias. Porém, ainda que os tratados de direitos humanos tenham minimamente (voto do ministro Gilmar Mendes) nível supralegal no Brasil, a nova dúvida que deve assaltar o jurista (notadamente o internacionalista) diz respeito ao acerto desta tese. (1)

Para os que coadunam com a tese ora analisada, formou-se uma nova configuração da pirâmide jurídica em nosso ordenamento jurídico, nos seguintes termos:

“Temos que admitir, por conseguinte, uma nova pirâmide jurídica no nosso País, segundo o STF: no patamar inferior está a lei, na posição intermediária estão os tratados de direitos humanos (aprovados sem o quorum qualificado do §3º do art. 5º da CF) e no topo está a Constituição. (2)

Outrossim, na mesma obra citada, Valério de Oliveira Mazzuoli e Luiz Flávio Gomes, elencaram a fundamentação utilizada pelo ministro Gilmar Mendes, a fim de justificar a supralegalidade dos tratados de direitos humanos, quais sejam: a impossibilidade de uma norma infraconstitucional derrogar o conteúdo de uma Convenção internacional, bem como a aplicação do princípio da proporcionalidade, nesse passo:

“O ministro Gilmar Mendes, no mesmo julgamento, agregou outros dois fundamentos: considerando-se que a Convenção Americana só prevê a prisão civil por alimentos (artigo 7º, 7), é certo que nossa legislação ordinária relacionada com o depositário infiel conflita com o teor normativo desse texto humanitário internacional. O conflito de uma norma ordinária (que está em posição inferior) com a Convenção Americana resolve-se pela invalidade da primeira. É o que ficou espelhado no voto do ministro Gilmar Mendes, que ainda mencionou o princípio da proporcionalidade como ulterior fundamento para não permitir a prisão de depositário infiel” (3)

Por conseguinte, foi extinta a possibilidade de prisão civil do depositário infiel no Brasil, posto que estabelecido o conflito entre uma norma constitucional e o disposto em um tratado internacional de direitos humanos, prevaleceu o segundo, em virtude de o fato beneficiar de maneira mais ampla o ser humano, trata-se da aplicação do princípio da primazia da norma mais benéfica ao ser humano, denominado de princípio pro homine. Coadunando com este raciocínio, asseveram Valério de Oliveira Mazzuoli e Luiz Flávio Gomes:

“De qualquer modo, em matéria de direitos humanos, quando os tratados internacionais conflitam com a Constituição brasileira (esse é o caso da prisão de depositário infiel) a solução não pode ser buscada no princípio da hierarquia. Não funciona (no conflito entre os tratados e a Constituição) a hierarquia e sim o princípio pro homine, que significa o seguinte: sempre prepondera a norma mais favorável ao ser humano. Não importa a hierarquia da norma, mas sim o seu conteúdo. (…)No caso da prisão civil a norma mais favorável é sem dúvida , o artigo 7º, 7, da Convenção Americana (que combina com o artigo 11 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos).” (4)

Cumpre ainda, tratar a respeito da distinção no que tange a conseqüência jurídica em relação à norma não aplicada, em virtude da observância do princípio pro homine. Nesse ínterim, deve-se atentar para o fato de a norma interna ser constitucional ou infraconstitucional, sendo que se corresponder à primeira sua vigência permanece, em que pese a aplicação do preceito insculpido no instrumento internacional, porém se identificar-se com a segunda modalidade jurídica, a referida norma inferior perderá a validade. (5)

Assim, todas as leis que cuidam da prisão do depositário infiel no Brasil perderam sua validade. E se for editada lei superveniente disciplinando este assunto, também não terá validade. No entanto, se a nova lei inferior for mais ampla que os tratados, ela terá plena validade e eficácia por força do princípio pro homine. (6)

A respeito da contribuição trazida pelo princípio da primazia da norma mais favorável à vítima, assevera o professor Cançado Trindade:

“O critério da norma mais favorável às pessoas protegidas, consagrado expressamente em tantos tratados de direitos humanos (…) contribui, em primeiro lugar para reduzir ou minimizar as pretensas possibilidades de ‘conflitos’ entre instrumentos legais em seus aspectos normativos. Contribui, em segundo lugar, para obter maior coordenação entre tais instrumentos, tanto em dimensão vertical (tratados e instrumentos de direito interno), quanto horizontal (dois ou mais tratados).” (7)

Por derradeiro, mister destacar que, após praticamente duas décadas, considerando a paridade entre os tratados de direitos humanos e as leis ordinárias, o Supremo Tribunal Federal avançou reconhecendo a tese da supralegalidade dos referidos instrumentos internacionais.

Recentemente, na Sessão Plenária do dia 16 de dezembro de 2009 (Diário Oficial da União de 23/12/2009), o STF, visando realmente solidificar e sedimentar tal entendimento, publicou a Súmula Vinculante 25 que aduz: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.” Tal dispositivo tem como base, além da própria Constituição Federal em seu artigo 5º, parágrafos 2º e 3º, os já citados Tratados Internacionais (Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), isto se dá vez que, sendo aprovado um tratado internacional de direitos humanos, seja pelo quórum qualificado ou não, este possui hierarquia superior à lei ordinária (supralegal ou constitucional), ocorrendo a revogação das normas contrárias por antinomia das leis (8). Desta forma, os poderes Executivo e Judiciário ficam vinculados a esta disposição, vez que tais Súmulas possuem eficácia contra todos (erga omnes).

Certamente a edição desta Súmula Vinculante marca o progresso do ordenamento jurídico brasileiro, tratando-se do surgimento de um novo modelo de Estado Constitucional Internacionalista (transnacional) (9), ou seja, um Estado inserido no contexto mundial, consequência do fenômeno da globalização, que cria cadeias/teias de comunicações, interações e relações de todas as ordens, seja econômica, política e social.

Importante frisar-se a diferença de concepções à respeito do status dos tratados internacionais de direitos humanos em relação à Constituição Federal. Para internacionalistas de peso como Cançado Trindade, Flavia Piovesan e Valerio Mazzuoli(10), tais tratados são (materialmente) constitucionais, por força do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal/88, sendo formal e materialmente constitucionais quando aprovados por dois turnos e por três quintos de votos de cada casa legislativa do Congresso Nacional (artigo 5º, parágrafo 3º da Constituição Federal/88). Assim, não importa o modo como o tratado internacional de Direitos Humanos é integrado no Estado Brasileiro, de qualquer forma possui posição hierarquicamente semelhante à Carta Magna.

Entretanto, esta não é a posição do Pretório Excelso, como podemos perceber no julgado do Recurso Extraordinário (11) citado. Para a suprema Corte só possui status constitucional o tratado internacional de Direitos Humanos que obedecer ao rito do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal. Os tratados que não forem aprovados pelo quórum qualificado terão posição supralegal no ordenamento jurídico, ou seja, estarão abaixo apenas da Constituição Federal.

Insta informar ainda que no dia 25 de agosto de 2009 foi promulgado o Decreto 6.949 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Esse foi o primeiro tratado de direitos humanos ratificado com o quórum qualificado do artigo5º, parágrafo 3º da Constituição Federal, possuindo assim status material e formalmente constitucional.

A partir deste momento será possível controlar a convencionalidade (12) das leis, ou seja, verificar sua compatibilidade vertical com um tratado internacional de direitos humanos de forma concentrada no Supremo Tribunal Federal. Tal instituto, apresentado pioneiramente no Brasil pelo professor Valerio Mazzuoli, possibilita a utilização das ações de controle concentrado de constitucionalidade — Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental — pelos legitimados do artigo 103 da Carta Magna, quando quaisquer leis infringirem tratados internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.

Infelizmente, mesmo com a edição da Súmula Vinculante 25, não são raros os casos de expedição de mandados de prisão de cidadãos, em decorrência de serem depositários infiéis, em diversos juízos do Judiciário Brasileiro. Sem dúvida tal ato é nitidamente ilegal, devendo tal prisão ser imediatamente relaxada pela autoridade judicial.

Desta forma, possui o cidadão meios eficazes para combater tal arbitrariedade, quais sejam, o Habeas Corpus, com fundamento no artigo 5º, LXVII da Constituição Federal/88 e artigos 647 e seguintes do Código de Processo Penal; e, por tratar-se de violação expressa de Súmula Vinculante, a Reclamação, instituto previsto no artigo 102, I, “l”da Constituição Federal/88, regulada pelos artigos 13 a 18 da Lei 8.038/90.

É possível vislumbrar recentes julgados das Cortes Brasileiras que estão atuando neste sentido, de não permitir a prisão do depositário infiel, é o caso do Habeas Corpus C 994.092.718.925 (13), julgado pelo TJ-SP, que reconhece a ilegalidade da prisão civil, baseando-se no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos. E citamos ainda o Agravo de Instrumento 648.223 (14), em que o STF denegou seguimento com fundamento na sua Súmula Vinculante 25.

A decisão do STF é inequivocamente histórica e emblemática, divide a linha temporal da Justiça Brasileira entre antes de depois do julgamento do Recurso Extraordinário 466.343. E tamanha importância é dada a este fato pois significa um avanço do nosso Estado em termos globais, ao reconhecer a supralegalidade das normas internacionais de Direitos Humanos. Outrossim, concordamos com a posição dos internacionalistas de que tais normas já possuem status constitucional independentemente da forma de sua ratificação. Mas certamente nosso século presenciará tais avanços.

A edição da Súmula Vinculante 25 veio solidificar este entendimento não permitindo qualquer forma de prisão civil, senão por inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia. Assim, precípua a importância do Ministério Público e dos advogados na função de mover o Judiciário com estas novas mudanças, ao apresentar ao magistrado estas teorias, com vistas a realmente difundir esta nova ordem constitucional pós-moderna.

Referências

1. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. A tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos . Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2107, 8 abr. 2009. Disponível em:

2. GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre direitos humanos: Pacto de San José da Costa Rica. Coleção Ciências Criminais, v. 4. 2. ed. Rev, atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 67.

3. GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Op. cit., p. 65,66.

4.  Ibid. p. 68 e 69.

5. GOMES, Luiz Flávio e MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Ibid.

6. Cf. GOMES, Luiz Flavio. Decisão histórica do STF: fim da prisão civil do depositário infiel. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 1993, 15 dez. 2008. Disponível em:

7. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Direito internacional e direito interno: sua interpretação na proteção dos direitos humanos. In Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1996. p. 44,45.

8. Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. In: Revista da Ajuris. Ano XXXVI – N° 113. Edição de Março de 2009. p. 334-340. E do mesmo autor: Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010.

9. Cf. GOMES, Luiz Flavio. Decisão histórica do STF: fim da prisão civil do depositário infiel. op. cit.

10. Ver PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7º ed. ver. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. P.51-80. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 2.ed.rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p.310-312; 682-702.

11. Ver voto do Min. Gilmar Mendes no RE 466.343-SP.

12. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratado de Direitos Humanos com equivalência de emenda e o Controle Concentrado de Convencionalidade. Disponível em http://www.lfg.com.br – 01 setembro de 2009. E do mesmo autor O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. São Paulo: Ed. RT, 2009. Coleção Direito e Ciências Afins, vol. 4.

13.  TJ/SP – Habeas Corpus: HC 994092718925 SP. Julgamento: 02/03/2010. Publicação: 11/03/2010 Ementa: Habeas Corpus – Depositário infiel – Prisão civil – descabimento – Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Art. 11) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7°, 7), ambos de 1992 – Ilegalidade reconhecida – precedentes do STJ e do STF – Ordem concedida.

14. STF – AGRAVO DE INSTRUMENTO: AI 648223 RS. Julgamento: 26/02/2010. Publicação: DJe-044 DIVULG 10/03/2010 PUBLIC 11/03/2010. Decisão: Vistos, etc.O agravo não merece acolhida. É que o aresto impugnado afina com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cristalizada na Súmula Vinculante 25. Súmula cuja dicção é a seguinte:"É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito."Isso posto, frente ao art. 557 do CPC e ao § 1º do art. 21 do RI/STF, nego seguimento ao recurso.Publique-se.Ministro CARLOS AYRES BRITTO Relator.

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