Penhora administrativa

Fisco chileno pode penhorar até salário de devedor

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4 de maio de 2010, 6h30

O modelo de execução fiscal do Chile (cobro ejecutivo de las obligaciones tributarias de dinero) é caracterizado por contar com duas fases nitidamente distintas. Há um primeiro momento, conduzido por agências fiscais, Servicios de Tesorerías, de feição objetivamente administrativa. Ainda nesse primeiro momento pode-se chegar à cobrança forçada, mediante penhora e posterior leilão de bens ou conversão em renda, a usarmos expressão do Direito Tributário brasileiro. Tem-se também um segundo passo, que se dá junto a tribunais judiciais, quando as execuções são conduzidas por advogados públicos, abogados provinciales. Outorga-se ao referido Servicios de Tesorerías o poder de requerer procedimentos especiais, inclusive relativos à restrição de liberdade do contribuinte devedor, principalmente no que se refere a infrações que decorram do não repasse ao fisco de valores descontados na fonte, em regime de substituição tributária. Ao fisco chileno faculta-se o acesso às declarações e documentos de contribuintes devedores, mediante autorização do Tesorero General, bem como a documentação pretérita, no interesse da cobrança em andamento; há determinação, no entanto, para aplicação de regras e sanções às quais se subordinam os funcionários fazendários, no que tange ao sigilo fiscal.

A exemplo do que ocorre no Brasil, é um título executivo extrajudicial que instrui e fomenta a execução fiscal no Chile, ainda em âmbito administrativo. A lista identificadora dos devedores, que deve ser assinada pelo Tesorero Comunal, isto é, por autoridade fazendária local, consubstancia o documento de cobrança. Tem-se a identificação do devedor, domicílio, pormenores temporais e quantitativos do débito, modalidade da exação não recolhida, entre outras informações, que instrumentalizariam, inclusive, a defesa do contribuinte faltoso. As referidas listas são confeccionadas do modo determinado pela autoridade fazendária máxima, o Tesorero General de la República a quem também compete articular o conjunto de ações e de diligências administrativas de interesse do fisco.

A essa autoridade, Tesorero General de la República, a norma de regência aquí estudada confere discricionariedade para dispensa de execução de dívidas de pequeno valor ou decorrentes de fatos que justifiquem a imprestabilidade de eventual cobrança, por decisão fundamentada. Tem-se estimativa de custo e benefício. Não se cobra dívida cuja cobrança exija tempo, energia, articulação burocrática; porém, a essa mesma autoridade garante-se o direito de retomar a cobrança, quando julgar conveniente, a qualquer momento, na expressão literal do texto que aqui se cuida.

Assim, à luz de terminologia do Direito Tributário brasileiro, a dívida de pequena monta ou identificada como de baixo interesse para o fisco suscita possibilidade de suspensão de exigibilidade do crédito tributário, e não sua extinção. É que, como observado, a cobrança poderá ser retomada a juízo do credor.

Ainda há algumas circunstâncias excepcionais. Por exemplo, identifica-se uma unidade tributária para se aferir o nível de importância do crédito, posibilitando-se a dispensa da cobrança, se algumas condições se concretizarem. Entre elas, acena-se com a desnecessidade da cobrança de dívida superior a 50% do valor da unidade tributária; ao que consta, a situação é avaliada isoladamente, isto é, o valor limite é cotejado, individualmente, com cada um dos débitos sob cobrança.

À autoridade fiscal local, o Tesorero Comunal, cabe que ordene, por despacho, a ordem de execução e penhora. A referida autoridade atua como juiz presidente do feito, em seus primeiros passos, ainda em nicho administrativo. Da lista de devedores extrai-se a certidão de execução, autuando-se o processo montando-se o caderno processual, a partir do título executivo.

O despacho que ordena a execução e consequente penhora, ambas as ordens em âmbito administrativo, pode ser dirigido simultaneamente para todos os devedores. Contra a ordem que deu início à execução, bem como contra a penhora, não há, neste estágio do procedimento, nenhuma possibilidade de insurgência, mediante recurso.

Pode-se penhorar, inclusive, e principalmente, parcela do salário do executado, facultando-se a constrição de valores que excedam a cinco unidades tributárias de medida. Garante-se que o devedor ainda possa contar com parcelas de seus ganhos, penhorando-se o que exceda aos valores de referência, utilizados pelo fisco chileno.

A penhora do salário se faz mediante comunicação do fisco ao empregador do devedor executado. Os agentes da arrecadação notificam o empregador do devedor, determinando a retenção de parcela dos rendimentos do executado. Ao empregador notificado incumbe também enviar ao fisco os valores que reteve. Tais valores não são imediatamente incorporados ao tesouro chileno. A quantia fica depositada, enquanto se desdobra o procedimento de execução. Ao final, mantida a exigência, o depósito é transferido definitivamente para o caixa do credor, na medida do valor do débito.

As prerrogativas de investigação dos agentes fiscais locais são amplas. Faculta-se a notificação de devedores e mesmo de contribuintes com obrigações em atraso, independentemente do desdobramento da execução fiscal, administrativa ou judicial. É o agente fiscal quem notifica pessoalmente o devedor. Não há necessidade de notificação mediante oficial de Justiça.

À Administração dá-se o poder de exigir dos devedores documento no qual esses últimos especifiquem todos os bens que possuam. A negativa na entrega desta declaração autoriza ao advogado provincial a requerer judicialmente medidas coercitivas, apremios corporales contra el rebelde, o que sugere ideia de pedido de prisão.

Apela-se para a autoridade policial, para a força pública, circunstância que a legislação de regência autoriza; basta, então, requerimento do agente arrecadador, instruído por determinação do Tesorero Comunal, isto é, da autoridade local. Ordem judicial também tem os mesmos efeitos. No modelo de execução fiscal chileno há efeitos iguais, quanto ao uso de força policial, no que toca a requerimento administrativo ou a ordem judicial.

Dispõe-se que a documentação referente à execução fiscal administrativa fica em posse da Tesorería Comunal. Faculta-se à parte ou a seu representante a consulta dos expedientes. À Administração cabe também manter adequadamente os papéis relativos às várias execuções, certificando os documentos originais e respectivas cópias, datando toda a documentação.

O executado pode contestar administrativamente a execução junto ao órgão local competente, contados 10 dias da determinação para o pagamento, feita pelo aludido órgão fiscal competente. Trata-se de oposição, na nomenclatura procedimental em apreço, e que guarda inúmeras semelhanças com nosso modelo de embargos à execução fiscal, que se dá, no entanto, apenas em âmbito judicial.

O modelo também autoriza que o interessado invoque todo o conjunto de matéria de defesa previsto no Código de Processo Civil. Incompetência do juízo e, no caso, da Administração, no sentido de processar o feito, incapacidade do autor da ação, litispendência, inépcia do pedido por falta de requisito legal, imprestabilidade da fiança, falsidade ou inadequação do título executivo, pagamento ou remissão da dívida, compensação, nulidade da obrigação, deferimento prévio de dilação de prazo, novação, transação, prescrição, coisa julgada, entre outros.

A autoridade fiscal pode, a qualquer tempo, de ofício, ou mediante requerimento do interessado, corrigir erros e vícios que maculem a cobrança. Expressamente, a legislação de regência refere-se à duplicidade de tentativa de arrecadação. Prevê-se também a possibilidade de compensação, de modo que administrativamente o executado possa requerer a providência, desde que credor do fisco. Neste caso, a autoridade fiscal local liquidará os débitos, compensando-os.

O contribuinte deverá depositar a diferença, se seu crédito for inferior à cobrança. Ainda, se o contribuinte restar dono de créditos, após a compensação, difere-se a liquidação da obrigação do fisco para momento superveniente ou se providencia depósito em conta, na medida de eventual requerimento. Em favor do devedor que invoque créditos, pretendendo compensá-los, não obstante a não comprovação de todos os requisitos exigidos pela Administração, pode esta requerer que suspenda a execução, por 60 dias.

Dispõe-se que, assim que a autoridade fiscal local receba a impugnação do executado, deva examinar o conteúdo da peça protocolada. O representante da fazenda pública somente pode manifestar-se no sentido de acolhê-la integralmente. E o faz se a dívida foi totalmente recolhida. Isto é, a autoridade fiscal administrativa tem poder para reconhecer que houve a extinção da obrigação. Em seguida ao reconhecimento da procedência da pretensão do executado, a autoridade fiscal determina o levantamento da penhora, extinguindo a execução.

A par de reconhecer a imprestabilidade e consequente extinção da obrigação por causa do pagamento, a autoridade fiscal também pode fazê-lo em virtude do fato de que exista erro ou vícios no execução que se processa. A competência da autoridade fiscal para apreciar administrativamente a execução é limitada.

O Tesorero Comunal tem prazo de cinco dias para se manifestar sobre as alegações do devedor. Mantido seu silêncio ao longo do referido prazo, entende-se que a execução segue para o advogado provincial, que dará continuidade ao procedimento. O passo revela o esgotamento da competência da autoridade fiscal originária; deve-se observar, ainda, que todos os prazos para manifestação, por parte do contribuinte, também foram ultrapassados.

O advogado provincial detém competência para se manifestar em todos os feitos judiciais nos quais se discuta matéria tributária. O aludido advogado provincial representa o fisco, zelando pelos interesses da Administração tributária. No entanto, a norma de regência prevê que um agente fiscal, denominado de fiscal de la tesorería general, também detenha competência para se manifestar nos processos de execução fiscal.

É também ao advogado provincial que o contribuinte pode recorrer, por meio de reclamação, especialmente por conta de abusos cometidos ao longo dos procedimentos de penhora, por parte das autoridades administrativas em geral. O advogado provincial dirige a queixa à autoridade local, para que sejam tomadas as providências cabíveis, na defesa do contribuinte.

Retomando-se a execução administrativa, uma vez saneado o feito, e não acolhendo as alegações do executado, o advogado provincial tem cinco dias para encaminar os autos de execução para a Justiça comum, um Tribunal Ordinário. Requer que o aludido tribunal se manifeste sobre a impugnação do devedor.

Concomitantemente, opina sobre o feito, no sentido de explicitar o que julgue adequado informar. O não cumprimento dos prazos por parte da autoridade fiscal originária e do advogado provincial permite que o executado requeira à autoridade judicial que se consigne o fato, bem como para que esta avoque os autos, para julgamento.

A produção de provas dilata o prazo para julgamento em 10 dias. O prazo poderá ser ampliado mais uma vez, por mais 10 dias, por requerimento do exequente; o pedido deve anteceder ao vencimento do prazo original; dispõe-se também que é possível a dilação do prazo, por requerimento de ambas as partes, previsão do Código de Processo Civil do Chile, aplicável à execução.

Ao longo dos seis dias previstos pela legislação processual as partes podem se manifestar por escrito sobre as provas produzidas. Segue a intimação para oitiva da sentença. Contados da conclusão, tem o magistrado 10 dias para lavrar a sentença.

Após deduzidas as respectivas argumentações, e após devidamente apreciadas pelo juízo comum, competente para se manifestar, notificam-se as partes do conteúdo da decisão. Abre-se então o prazo para o encaminhamento de recursos, matéria remetida ao Código de Processo Civil do Chile. Interposição de recurso suspende a execução.

Se o recurso for protocolado pelo executado, há regra que determina depósito de parte do valor cobrado. Neste caso, a suspensão da execução exige que o executado deposite o equivalente a 25% (um quarto) do valor exigido. No cálculo do valor a ser depositado não se computam somas de juros e multas. Exceptua-se, naturalmente, a execução que se funde na cobrança de multas, quando, da mesmo forma, determina-se o recolhimento de quarta parte do valor discutido.

Na hipótese do executado não depositar o depósito recursal, a usarmos terminología do Direito brasileiro, a execução tem continuidade, embora pendente a discussão, por conta do recurso de apelação ainda não julgado. Extraem-se cópias dos autos, quanto às peças necessárias para o regular processamento da execução. Tais peças deverão ser autenticadas. Se o apelante se negar a produzir as referidas cópias autenticadas o magistrado declara a deserção do recurso, encerrando-se o procedimento.

Ao agente fiscal responsável pela penhora incumbe a tomada e guarda dos bens penhorados. Deve encaminhar ao executado documento que individualize os bens em relação aos quais há constrição. No documento mencionado, o agente fiscal deve se identificar, assinando-o. Em seguida, os bens são encaminhados a leiloeiro que exerça a função na área na qual se processa a execução. Cuida-se de competência territorial. Na inexistência da aludida autoridade burocrática, tem-se leiloeiro indicado pelo advogado provincial que oficie no caso.

Porém, se o transporte dos bens penhorados for oneroso ou difícil, cabe ao magistrado autorizar que estes bens penhorados permaneçam onde estejam, isto é, no local de origem. O leilão então será realizado pela própria autoridade fiscal, o Tesorero Comunal. A este último, no entanto, não se paga comissão pela realização do leilão.

Quanto ao leilão de bens imóveis, também há regra específica. É o magistrado da causa que o decreta. E o faz após requerimento do advogado provincial. A execução fiscal detém privilégio, na medida em que o leilão a ela vinculado não depende e nem se submete a outras penhoras, que decorrem de outros procedimentos, em outras jurisdições.

Ao fisco se permite a adjudicação dos bens penhorados. Trata-se do caso de bens imóveis, de raiz, na medida em que não se tenham interesados nos leilões realizados. Exige-se duas hastas. É ao advogado provincial que compete requerer que a autoridade judicial autorize a adjudicação do bem, em favor da fazenda pública.

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  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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