Gravações nos parlatórios

Juiz foi contra escutas em presídio no Paraná

Autor

30 de junho de 2010, 10h45

Tomada por um colegiado de juízes da Seção de Execução Penal do Paraná, a decisão de gravar todas as conversas entre advogados e detentos no Presídio Federal de Catanduvas não foi unânime. Quando os juízes federais do estado resolveram manter sob vigilância não só os presos, mas também seus advogados, mesmo sem qualquer inquérito aberto, o juiz Flávio Antônio da Cruz, substituto na 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, foi contra. Para ele, colocar debaixo da mesma medida todos os internos no presídio e respectivos advogados, sob a justificativa de que alguns serviram como mensageiros do crime organizado, é generalização que fere o direito à ampla defesa e as prerrogativas da profissão. Em dois votos — clique aqui e aqui para ler —, dados em maio do ano passado e fevereiro deste ano, Cruz, que trabalha na mesma vara em que o juiz titular Sérgio Fernando Moro, deixa clara sua contrariedade com o comportamento.

A espionagem institucionalizada em Catanduvas será alvo de reclamação da Ordem dos Advogados no Conselho Nacional de Justiça, como avisou na semana passada o presidente da entidade, Ophir Cavalcante Junior. Reportagem da revista Consultor Jurídico revelou que, desde 2007, todas as entrevistas de detentos com advogados que entram no Presídio Federal de Catanduvas são gravadas em áudio e vídeo. O procedimento foi ordenado em conjunto por juízes da Seção de Execução Penal paranaense, depois que advogados foram acusados de levar para fora da detenção mensagens de líderes de organizações criminosas. Considerado de segurança máxima, Catanduvas abriga presos considerados de alta periculosidade, que não podem ficar em presídios comuns justamente para não despachar crimes mesmo atrás das grades.

O Conselho Federal da OAB aprovou, nesta terça-feira (29/6), a apresentação de um Procedimento de Controle Administrativo contra os juízes. “Isso abre a porta para o arbítrio e a falência do princípio da ampla defesa”, afirmou Ophir Cavalcante à ConJur logo que tomou conhecimento do fato. “Juiz não pode ter a brilhante ideia de monitorar tudo e todos para alcançar o advogado envolvido.”

É o que também pensa Flávio Antônio da Cruz. Despachando ao lado da sala de Sérgio Moro — juiz que assina decisão autorizando a prorrogação das escutas no presídio, publicada pela ConJur —, Cruz não compartilha das opiniões do responsável por sua vara. “Qualquer sujeito — acusado ou mesmo já condenado — deve ter assegurado o direito ao contato pessoal e reservado com o advogado da sua escolha (artigo 5º, LXIII, CF). Sem esta prerrogativa, certamente o devido processo e o direito de petição (artigo 5º, XXXIV, ‘a’, CF e artigo 41, XIV, LEP) ficariam legados ao mundo das idéias de Platão; sem qualquer efetividade”, disse o juiz em voto dado no dia 18 de maio do ano passado.

“A questão encontra óbice direto em comandos constitucionais; ao menos com a generalidade pretendida pela digna Autoridade Administrativa, concessa venia ao majoritário entendimento distinto”, afirmou. Ele também fez questão de lembrar que a decisão da maioria dos juízes afastou a possibilidade de uso das gravações como provas de crimes pelos quais os presos já estavam sendo processados. "Devoto o maior respeito à opinião distinta, sobremodo diante das inúmeras cautelas que foram adotadas na decisão do Colegiado."

No voto, Cruz mostra que Platão não é o único pensador em seu repertório. Ele compara o big brother permanente montado pela diretoria da penitenciária ao panóptico de Bentham, objeto de estudo de Michel Foucault. “Seria diminuta a garantia, caso o contato entre acusado/condenado e o Defensor também fosse submetido ao panóptico benthaniano”, diz. Projeto arquitetônico de uma prisão em que as celas rodeiam uma torre central, o panóptico é a figura da sociedade vigiada e controlada pelo medo, sem saber quando alguém realmente está na torre.

O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, também socorre Flávio Cruz em sua decisão. “Constitui prerrogativa profissional do advogado o direito de comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis”, diz o juiz, citando voto do ministro no julgamento do pedido de Extradição 633, de 1995. “Mesmo o acusado dos crimes mais abjetos possui a prerrogativa de exigir, perante qualquer procedimento administrativo ou penal, o pleno exercício do contraditório”, completa Cruz. Ele lembra que as conversas podem ser gravadas apenas no caso de indiciamento do advogado.

O monitoramento aprovado no presídio não inclui defensores públicos, autoridades públicas e membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, e nem mesmo as visitas íntimas das companheiras dos prisioneiros, o que causou indignação ao secretário-geral da OAB do Paraná, Juliano Breda. “É uma injustificável discriminação aos advogados privados”, disse em representação entregue ao Conselho Federal da Ordem. Segundo o presidente da entidade, Ophir Cavalcante, a diferenciação é “uma maneira indireta de dizer que apenas o advogado pode ser sócio do crime”.

De acordo com o juiz federal Sérgio Moro, a distinção foi feita porque as pessoas não incluídas na lista “não estão sujeitas a cooptação com os criminosos”, por não terem “vínculo estreito” com os detentos e poderem não retornar mais ao presídio em caso de pressão das organizações.

“A medida peca pela sua inadequação”, discorda o juiz substituto da 2ª Vara. “Nada impede que as esposas encaminhem comunicados a familiares de outros presos, e que estes, então, sirvam de elo de contato.”

Para o juiz, as ameaças da criminalidade não podem justificar a distorção de garantias individuais, mesmo diante do clamor social por distribuição de penas a granel. “Guardo consideráveis reservas à mitigação das garantias constitucionais, ainda que ciente de um lamentável estado de coisas: da completa falência da segurança pública; crise da função jurisdicional, a gerar uma constante cobrança social por maior efetividade dos processos e correspondente recrudescimento penal e redução do formalismo garantista.”

O raciocínio deveria ser intuitivo em um país que se libertou do regime de exceção há pouco mais de duas décadas. “A busca da redução da violência urbana — vetor essencial, não desconheço — não pode, todavia, conformar um Direito Penal do Terror, ou, como querem alguns, um Direito Penal do Inimigo”, conclui. “Mesmo a existência de graves facções criminosas não autoriza a flexibilização de garantias fundamentais.”

Cruz lembra ainda que a flexibilização de direitos é caminho das teorias de Carl Schmitt e Edmund Mezger, “de cunho evidentemente nazi-fascista, repudiado pela doutrina e legislação dos países democráticos. O que se autorizará nestes casos, terá repercussões futuras, redefinindo a relação ‘sujeito/Estado’ em uma direção indesejada.” Na opinião do juiz, o pensamento compromete a imparcialidade dos magistrados.

Em fevereiro, quando a Seção de Execução Penal voltou a prorrogar as gravações em Catanduvas por mais seis meses, Flávio Cruz se opôs mais uma vez. “Penso incabível uma medida indiscriminada, que atinja todos os advogados que lá atuam, sem que os indícios sejam detalhados”, disse, em voto do dia 18 de fevereiro. Apesar da manifestação, o colegiado aprovou a prorrogação por maioria.  O despacho, assinado pelos juízes Sérgio Fernando Moro, da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba, e Leoberto Simão Schmitt Junior, substituto na 3ª Vara, atendeu a um pedido do diretor da penitenciária, Fabiano Bordignon.

Clique aqui para ler o voto de Flávio Cruz em maio de 2009.
Clique aqui para ler o voto de Flávio Cruz em fevereiro de 2010.
Clique aqui para ler a decisão que prorrogou as escutas em fevereiro.
Clique aqui para ler a representação da OAB-PR.

Processo 2007.70.00000137-2

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!