Advogado e preso

Gravar conversas é vergonha digna dos generais

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30 de junho de 2010, 6h52

Aconteceu. Enfim aconteceu.

A sombra dos tempos vergonhosos escurece novamente o céu da pátria, projetada num sonho em 88, e enche de vergonha todos os fundadores da nova República; ou pelo menos, os verdadeiros fundadores, e não aqueles capachos da vergonha e violência que diante do inevitável se disseram democratas, e até hoje, envergonham a nação com escândalos e sofismas.

Sobral Pinto, “O monstro”, segundo Rubem Braga, afirmou em carta enviada ao então anistiado Luis Carlos Prestes, em 1945: “Nada valho e nada sou. Modesto obreiro do Direito, minha vida se vem processando em lutas quotidianas ásperas e bravias, em prol do reinado da Justiça. A nada aspiro senão lutar pela liberdade efetiva e real, no seio de nossa Pátria”. A lembrança de Sobral se dá por motivo bastante simples: foi ele o maior símbolo da resistência nos tempos que querem trazer de volta. A lembrança de seu sofrimento e luta é necessária quando falamos em liberdades e garantias democráticas.

Com afirmado acima, aconteceu. O Ministério da Justiça, uma pasta já ocupada por José de Alencar, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, Vicente Ráo, Miguel Seabra Fagundes, João Mangabeira, Tancredo Neves, Márcio Thomaz Bastos, José Gregori, José Carlos Dias, Miguel Reale Júnior, autorizou – dentro de suas instalações penitenciárias e certamente nas demais, face o inevitável efeito cascata – o aparelhamento para gravações de áudio e vídeo das conversas entre advogados e clientes presos, quando suspeitas do cometimento de crimes pairarem sobre o advogado. Aparentemente uma benesse.

Concretamente uma vergonha, digna dos generais.

É quase impossível afirmar o desacerto da decisão se enfrentados tais fatos com o anseio por Justiça; sem dúvida é grande a vergonha de todo o Brasil face esses ditos advogados que ultrapassam a linha ética e envolvem-se com seus clientes além dos limites da cordialidade e do profissionalismo.

De outro modo, todos sabem ser inviolável a comunicação entre cliente e advogado, assim como ocorre com médicos e pacientes, jornalistas e fontes. Desnecessário apontar a lei federal que rege a matéria, por se tratar de umas das poucas garantias constitucionais conhecidas por quase todos os cidadãos. A conversa entre todos esses profissionais é um segredo, se ensinaria às crianças.

As trevas surgem, porém, face à distensão dos princípios, que quando ocorre, é sinalizador do padecimento do direito e da nação; no caso presente, mais precisamente, da distensão caolha dos princípios.

Fato e princípio, exceção e regra. Lembro-me de ter causado espanto em alguns colegas quando afirmei que defenderia com prazer um torturador: desde que o ato de tortura visasse descobrir o cativeiro de criança comprovadamente já mutilada. Na oportunidade afirmei a diferença entre a exceção (a incidência fática de uma excludente de ilicitude) e a regra (a proibição expressa da tortura, como princípio do Estado de Direito).

Se analisarmos exclusivamente o fato de advogados estarem cometendo crimes junto com seus clientes presos, é indefensável qualquer tese oposta a tais gravações. Mas com modesta análise de como serão realizadas, no controle de quem ficarão os aparelhos e com mais uma ou duas comparações, talvez nossos parceiros de luta, os jornalistas, não saúdem tão canhestra iniciativa – e parece ser o momento de novamente nos unirmos.

Foram (ou serão) instalados aparelhos de gravação nas penitenciárias e presídios do Brasil e afirma-se que apenas com autorizações judiciais se permitirão tais oitivas. Mas se quase impossível estancar os abusos judiciais na autorização de grampos telefônicos e o uso destes, ilegalmente, como método de investigação (lembram-se dos grampos nos Ministros do Supremo e na aberta afirmação destes, sobre não terem tranqüilidade para falar em seus celulares?) como acreditar na não ocorrência de abusos quando a presa vai ao lugar certo e a armadilha já está armada?

Qual será a fé pública a resguardar tais aparelhos e coibir seus usos sem autorização, seja por policiais pegando atalhos para a investigação, e até para satisfazer a curiosidade de funcionários tresloucados ou engraçadinhos?

A dos diretores desses estabelecimentos, que não a tem? Dos carcereiros, já tão poucos, mal pagos e atarefados?

De oficiais de justiça, tão escassos nos quadros do judiciário?

Evidente não existir segurança contra os inevitáveis abusos. O quão grave e quão alta serão as penas dos funcionários do estado que violarem esse sagrado direito de todos?

Eis a alma deste debate: pairará sobre os advogados a certeza do “grampo” e a fé, exclusivamente a fé, de que os aparelhos estão desligados?

Ficava evidente a ocorrência, cedo ou tarde, da violação legal de algum princípio democrático atinente a advocacia. Meses atrás a imprensa foi cerceada e não haveria demora até nos atingirem no âmago de nossos direitos.

Assim vão as coisas. Querem a comodidade de investigar por “grampos” e já os deixarem instalados, aguardando autorização judicial!

Ótimo, violem esse princípio e façam dessa exceção, a regra do dia a dia – parece já não haver abusos suficientes praticados pelo Estado nesse país!

Mas também deixem instalados – desligados obviamente, mas instalados – aparelhos de escuta nas salas de reuniões das redações, onde ocorrem reuniões entre os jornalistas e suas fontes, tanto na maior emissora de televisão do país, assim como no maior jornal e na maior revista semanal. É incontroverso: jornalistas também cometem crimes.

Vocês, meus amigos jornalistas, permitiriam isso?

Então cuidado, os direitos dos advogados são siameses aos direitos de vocês.

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