Direito de defesa

Estado deve respeitar o sigilo dos parlatórios

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30 de junho de 2010, 15h17

Quosque tandem, Catilina, abutere nostra patientia?[1]

Disseram-me que juiz federal, no Mato Grosso do Sul, autorizou que fossem gravadas imagens e som de entrevistas mantidas entre preso e seu advogado, havidas no parlatório de presídio, onde era justo que, como se estivessem num confessionário, os espionados presumissem, sendo crentes, que apenas Deus os ouvia. Disseram-me que, no mesmo contexto, magistrado mandou gravar o som de visitas íntimas do preso com sua companheira. Ponderei, incrédulo, que só acreditaria vendo. Desafiaram-me: procure as imagens no Youtube. Depois de um tempo de meditação, decidi não passear pela internet: Melhor não constatar a existência dos tais vídeos, para não ter de me questionar onde se encontrariam os áudios das visitas íntimas.

Ad quem finem audácia effrenata sese iactabit?[2]

Devassada alcova e escancarado o confessionário, o que mais faltaria? Estarrecido, imaginei que restaria o corpo a ser seviciado em busca de informações, tudo em prol da luta por “segurança para a sociedade ordeira”. Por que não? O que haveria de deter o “combate ao crime”? Se o criminoso, por definição, não é devoto da lei, não deve esperar ter respeito garantido por ela. E o advogado, que trabalha em busca da observância dos direitos do dito criminoso, criminoso também é, hão de pensar os “combatente d’O Mal”, acomodando embaixo das botas a Constituição Federal e as prerrogativas estabelecidas em lei para o exercício da advocacia.

Quamdiu etiam iste tuus furor nos eludet?[3]

Encontrei nota da Associação dos Juízes Federais do Brasil que afirma, na incômoda tarefa de defender seu associado, que, com a devassa, vieram informações sobre possível plano de traficantes graúdos para seqüestrar o filho do Presidente da República. Mas o filho do Presidente já é ou deveria ser pessoa protegida pelo Estado. Para evitar a violência imaginada precisaria a autoridade pública ficar escutando os ruídos de horas tão impróprias?

Senatus intellegit haec, consul videt: Tamen hic vivit.[4]

Não vale a pena perder tempo detalhando os dispositivos legais que impedem a olhadela do Estado na visita íntima. Autoridade comprometida com o respeito ao ordenamento jurídico, a ver risco no encontro, simplesmente impediria o “convescote”, submetendo a decisão à instância superior. Não ficaria à espreita, com ouvidos colados na parede.

Non deest reipublicæ consilium, neque auctoritas huius ordinis; nos, nos, consules, dito aperte, desumus.[5]

É desnecessário elencar muitos dispositivos que fazem sagrado o sigilo do contato entre advogado e preso, já que há clareza na lei ao estabelecer ser direito do advogado “comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis” (art. 7º, III, da Lei 8.906/94). Desconsiderar a lei e desrespeitar o sigilo, com vistas a investigar eventual crime, é maquiavelicamente privilegiar os fins, enquanto os meios apodrecem. Nessa quadra, melhor acabar duma vez com o Direito de Defesa.

O tempora! O mores![6]

Porque acredito no Estado de Direito, que tem alicerce no respeito ao Direito de Defesa (disse-o o STF no HC 95.009-4), espero que o Estado respeite o sigilo do parlatório do presídio, onde advogado e preso se comunicam, e deixe de espreitar a alcova, onde se dá a visita íntima do aprisionado. No caso do Mato Grosso do Sul – e há, noutras plagas, outros exemplos já confessados! –, o Estado buliu, sem-cerimônia e sem a lei a seu lado, nos segredos da alcova e do confessionário, com o que não pode viver a cidadania. Até quando abusarão da nossa paciência?

No presente texto, todos os excertos citados foram extraídos do exórdio do oratio primo, d’As Catilinárias, de Cícero, edição Martin Claret, 2006, tradução de Maximiano Augusto Gonçalves.


[1]. “Até quando, enfim, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?”.

[2]. “Até que ponto de sua audácia desenfreada se gabará?”

[3]. “Por quanto tempo ainda esse teu rancor nos enganará?”

[4]. “O senado sabe estas coisas, o cônsul vê: contudo este vive.”

[5]. “Não falta à república a sabedoria nem a autoridade desta corporação; nós, nós, consules, digo abertamente, faltamos.”

[6]. “Ó tempos! Ó cotumes!”

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