A voz dos vencidos

Ministro Marco Aurélio: o exército de um homem só

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24 de junho de 2010, 12h12

Spacca
Marco Aurélio 20 Anos no STF - Selo - Spacca

Um compromisso assumido de longa data trouxe-me a Jerusalém, de onde escrevo este artigo. Não vim de barco, nem entrei por Gaza. Tudo parece calmo por aqui. A única razão do registro geográfico é justificar a falta de acesso à minha biblioteca, aos meus arquivos e mesmo à internet. Escrevo de memória, circunstância que envolve riscos que têm se agravado com os anos. Mas não quis deixar de aceitar o convite de Márcio Chaer para prestar ao Consultor Jurídico meu depoimento sobre os 20 anos do Ministro Marco Aurélio no Supremo Tribunal Federal. As condições adversas me impediram de ser o primeiro nas homenagens. Mas ao menos devo ser o último.

A primeira decisão marcante de que me lembro, tendo por relator o homenageado, foi no início da década de 90 do século passado. Tratava-se de questão afeta à tramitação da revisão constitucional prevista no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988. O ministro Marco Aurélio concedeu cautelar para suspender o início da revisão, por inobservância do procedimento próprio na tramitação parlamentar. A decisão superava o entendimento tradicional de que questões envolvendo o processo legislativo, mesmo em seus aspectos regulados na Constituição, constituíam matéria interna corporis, vale dizer, questões puramente políticas e insindicáveis. Sob forte pressão por parte da mídia e da classe política para o início do procedimento de revisão, o relator, monocraticamente, fez o que era certo. Recém retornado ao Brasil, após minha temporada em Yale, impressionei-me com a ousadia jurisdicional — incomum à época — e a posição doutrinariamente correta, confrontando o conhecimento convencional sobre o tema.

Uma segunda decisão do ministro Marco Aurélio chamou-me a atenção pouco tempo depois. Foi em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade relativa ao teto dos servidores públicos, instituído pela Constituição de 1988. O STF já havia decidido, por unanimidade, que a despeito da dicção clara do inciso XI do artigo 37 (“vantagem de qualquer natureza”), o limite máximo de remuneração não se aplicava às “vantagens pessoais”. Era difícil imaginar que uma decisão tão extraordinariamente equivocada pudesse ter se produzido sem qualquer voz dissonante. A despeito de o entendimento ter se mantido no novo precedente, passou a existir divergência proclamando o que se afigurava óbvio: se o teto não incluísse vantagens pessoais, não serviria para nada. As coisas erradas, como intuitivo, não costumam vir na lei que estabelece o vencimento-base. O voto era — et pour cause — do ministro Marco Aurélio. Nem sempre me alinho a sua posição dissidente. Mas nesse caso, como em muitos outros, sou convencido de que ele acertou sozinho, ou em primeiro lugar. Na verdade, ante o peso das corporações, foram necessárias duas emendas constitucionais para impor a vontade original do constituinte.

Um dos melhores votos que me recordo de haver lido, da lavra do ministro Marco Aurélio, foi o do caso Ellwanger. Uma belíssima profissão de fé na liberdade de expressão. Paradoxalmente, embora me alinhe à posição mais libertária nessa matéria, não concordei com a conclusão. Acho que uma das poucas exceções à liberdade de manifestação do pensamento diz respeito à proteção de grupos vulneráveis. As expressões de ódio racial, religioso ou sexual não devem, como regra, merecer proteção. Negros, judeus, homossexuais têm uma história secular de perseguição em diferentes partes do mundo. É preciso protegê-los da discriminação e do preconceito. O voto, no entanto, é um primor, com levantamento de precedentes relevantes no direito comparado e argumentação vigorosa e coerente. Ao final da leitura, tive necessidade de revisitar as minhas próprias convicções. Em uma democracia, nenhum tema é tabu e tudo pode ser repensado. Também essa me parece ser uma contribuição do homenageado à jurisdição constitucional.

Em 2004, coube ao ministro Marco Aurélio, por distribuição, uma das questões mais complexas e controvertidas já apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal: a da possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencefálicos. A ação foi ajuizada em meados de junho. Na última sessão antes do recesso de julho, levou o processo em mesa para deliberação do Plenário sobre a liminar. Fui testemunha presencial. Pauta carregada, diversos processos com preferência, não houve chance de se apreciar o pedido cautelar. Saí da sessão com uma sensação curiosa de que a não apreciação pelo Plenário tinha sido melhor. É que se havia um ministro capaz de dar aquela liminar monocraticamente, era ele mesmo: o ministro Marco Aurélio. Dito e feito. Meia hora depois, peguei a cópia da decisão cautelar favorável em seu gabinete. A cassação dessa liminar, por sete votos a quatro, alguns meses depois, foi um dos poucos momentos de profunda tristeza que tive na minha longa militância na Corte.

Anos depois, conheci o outro lado da moeda: ter o ministro Marco Aurélio como adversário em uma tese jurídica é como enfrentar um exército de um homem só. A tese era boa — a de que a mudança de uma orientação do STF, depois de anos de vigência e muitos precedentes, exige a modulação dos efeitos temporais —, mas não consegui convencê-lo. Era a questão do IPI alíquota zero. A sessão começou com o voto favorável — e muito bom — do ministro Ricardo Lewandowski. Seguido de uma incisiva divergência do ministro Marco Aurélio. No intervalo da sessão, minha mulher me telefonou e perguntou-me como estava o julgamento. Respondi-lhe, esperançoso: um a um. No final do dia, a contabilidade do estrago bateu em nove a um. Todo o tribunal, exceto o ministro Lewandowski, acompanhou-o na posição contrária.

Uma outra posição polêmica do ministro Marco Aurélio — com a qual, registre-se, estou inteiramente de acordo — diz respeito a exames de DNA. Sustentou ele, contra forte oposição no tribunal e de parte da doutrina, que em ação de investigação de paternidade uma pessoa não é obrigada a fornecer material genético para o exame. A coação física a uma obrigação de fazer não se harmoniza com o Direito brasileiro. Assim como a produção de prova contra si próprio. É possível fazer ilações em razão da recusa ou mesmo estabelecer presunções relativas. Mas não se pode conduzir o pretenso pai, debaixo de vara, ao teste compulsório. A afirmação do direito de liberdade sobre outros direitos da personalidade envolve uma escolha filosófica relevante. Aqui, penso que o ministro Marco Aurélio liderou a posição correta.

Em matéria penal, o Ministro Marco Aurélio tornou-se o ídolo dos criminalistas. Em um país no qual o direito penal sempre teve uma vocação exacerbadamente punitiva, dirigida aos mais pobres, sua atuação no Tribunal terá sido um divisor de águas. Alguém poderia apontar, como subproduto, a impunidade dos ricos. Deixo essa briga para os penalistas. O que posso afirmar, do meu ponto de observação, é que teses como as que levaram à declaração de inconstitucionalidade da proibição de progressão de regime no caso de crimes hediondos contribuíram para lançar luz nas trevas. De fato, se o sistema penal não tiver qualquer compromisso com a ressocialização, a que se destina? Alguns dirão que a realidade não corresponde à vontade constitucional e à normatização infraconstitucional. Outra pergunta, então, torna-se inevitável: deve-se torcer a norma ou procurar mudar a realidade? A atuação do Ministro Marco Aurélio contribuiu para se optar pela resposta certa.

Há uma última faceta do ministro Marco Aurélio que me parece bem destacar. Em muitos dos seus votos solitários, tive a impressão de que sua preocupação maior — acima de convicções doutrinárias ou pessoais — era a de vocalizar a posição dos vencidos. Impedir que a unanimidade da Corte passasse a impressão de que a matéria era simples e pacífica. Temas como vedação do nepotismo por resolução do CNJ — numa releitura pós-positivista do princípio da legalidade — ou demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol não são objeto de consenso na sociedade nem entre os atores políticos e sociais relevantes. A unanimidade deixaria parte dos interessados na questão sem voz nem voto na Corte. Pois os vencidos, em geral, têm um aliado na Corte. Sua pretensão pode não prevalecer, mas seus argumentos e sentimentos terão sido expressos e compartilhados. Num mundo que se deixou seduzir pelo pensamento único em tantas matérias, a diversidade é bem-vinda e deve ser celebrada.

Boa hora de encerrar. Millor Fernandes escreveu que “sem liberdade de crítica, nenhum elogio é válido”. Por isso — só por isso! — inseri nesse artigo uma ou outra divergência em relação à longa judicatura do ministro Marco Aurélio. Para valorizar o elogio sincero. Teria outras coisas boas a dizer. Mas “em assuntos de sentimento, quanto maior for a parte de grandiloquência, menor será a parte de verdade”. A frase é de José Saramago. Pronto: consegui contrabandear para esse texto uma homenagem ao laureado escritor português, falecido essa semana. Há pessoas que percorrem com proficiência e integridade os caminhos já existentes. E há outras que desbravam trilhas pela mata cerrada, com os riscos e as glórias da opção mais árdua. O ministro marco Aurélio é dessa segunda linhagem. Um dos bons símbolos da ascensão do Judiciário no Brasil.

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