Política pública

Judiciário é último responsável por validar execução

Autor

  • Cezar Britto

    é advogado do Cezar Britto & Advogados Associados ex-presidente e membro vitalício do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

19 de junho de 2010, 6h08

O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, desde o iniciar do atual mandato, priorizou a discussão, elaboração e aprovação da Agenda para o Novo Ciclo de Desenvolvimento. E o fez corretamente. A agenda política, pautada na necessária tentativa de provar ser possível o desenvolvimento econômico em sintonia com o social é matéria urgente e fundamental para o país. O Brasil, que já é grande no mundo econômico, não pode ser pequeno na questão social. Ademais, não se pode perder a rara oportunidade de contribuir para o histórico momento vivido pelo Brasil, quer no campo interno, quer no cenário internacional. Além do maior período de estabilidade política da República, os novos parâmetros sociais e econômicos põem-nos em condições excepcionais e nunca antes experimentadas. Não mais se aplica lacônica máxima de que o “Brasil é jovem país do futuro”. Não, futuro chegou-nos agora. Nós já somos os protagonistas da nossa própria História.

Também não se pode esquecer que o Conselho reúne as condições ideais para a realização desta tarefa, vez que engloba, numa única assentada, as mais relevantes experiências produzidas no país. Não sem razão busca o Conselho operar através do consenso entre os que, embora diferentes em vários aspectos, têm em comum o interesse no desenvolvimento do país. E é exatamente dentre as diferenças, típicas de um país-continente, que se busca uma Agenda que case em uma só palavra desenvolvimento econômico e progresso social, este último, sem dúvida, imprescindível em um país ainda marcado pela desigualdade social, regional e educacional. Eis porque, repetidamente, palavras como política de Estado, reformas, repactuação federativa, incentivo fiscal, investimento, infra-estrutura, tecnologia, política de Estado, educação, erradicação da miséria, segurança, saúde pública, dentre outras, são conjugadas simultânea e complementarmente; nenhuma melhor que a outra. O Brasil plural se personifica no CDES.

Daí esta pequena reflexão sobre o futuro da Agenda para o Novo Ciclo de Desenvolvimento. É que ela, seja qual for o consenso, qual o destino que queira traçar, se deparará com um fenômeno que se consolida fortemente no Brasil: a judicialização da política. Independentemente do seu mérito, conservadora ou desenvolvimentista, econômica ou social, o Poder Judiciário será chamado para ser o abalizador final de toda e qualquer decisão ou ação política da agenda.

Escrevendo em outras palavras, o Judiciário, com as sua contradições e acertos que não cabem aqui aprofundar, se tornou o último responsável pela ratificação executória de toda política pública, federal, estadual ou municipal. Basta que se observe que fora o Judiciário quem definiu a secular questão indígena, a autorização para as pesquisas com as células-tronco embrionárias, a quebra do monopólio da PETROBRÁS sobre o exploração e refino do petróleo, a amplitude da liberdade de imprensa, a proibição do nepotismo, a transformação do refúgio político em simples ato administrativo, o asilo em ato judicialmente controlável, a tortura em crime banal, a fidelidade partidária como impositivo constitucional, os limites legais e éticos das campanhas eleitorais, o papel dos correios e das agências reguladoras, as restrições ao constitucional direito de greve, os tetos e pisos remuneratórios dos servidores públicos, as isenções fiscais ou legalidade dos tributos, o uso de algemas nas atividades policiais, a importância do direito de defesa, os confiscos salariais e milhares de outras. Não custa lembrar que já consta da pauta do Judiciário a ratificação ou rejeição da política de inclusão social (quotas sociais ou raciais), os contornos e alcance da saúde pública, os investimentos em infra-estrutura (obras públicas, licitações), a política fiscal (inconstitucionalidade ou ilegalidade de tributos e incentivos).

Na rápida listagem decisória agora apontada, excepcionando-se a questão do direito de greve para os servidores públicos, não se estava diante de um vazio constitucional ou legislativo. Em todos eles existiam ação decisória do Poder Executivo e/ou do Poder Legislativo. Ainda assim fora do Poder Judiciário a palavra definitiva e inquestionável. E não se esta falando apenas da judicialização das grandes discussões, julgamentos relevantes, repercussões gerais, transcendentes ou repetitivas. Ela também se espalha perante as instâncias iniciais do Judiciário. Toda e qualquer decisão ou obra pública é exaustivamente fiscalizada, detalhada, comparada, checada, revisada, vistoriada e, não raro, escandalizada, denunciada e, finalmente, tornada objeto de ação judicial. Os fundamentos das ações judiciais são variados, desde a repetida questão da corrupção, passando pelos aspectos culturais, econômicos, ambientais, procedimentais, históricos, estéticos ou outro item isolado ou coletivo. O certo é que tudo e todos se submetem a estas análises, desde a construção de uma praça, a abertura de uma rua ou uma rodovia, a edificação de um açude, uma barragem ou o represamento de um rio. Não é diferente quando se faz reforma de uma escola ou a restauração de um aeroporto. É quase impossível encontrar uma ação política sem um questionamento judicial sobre a sua validade, não raro gerando a sua paralisação ou a ameaça de criminalização de seu executante.

Os sinais da judicialização são perceptíveis no cotidiano do brasileiro, inclusive porque geram notícias jornalísticas e conseqüências danosas para que se efetivem as próprias políticas públicas. Obras, programas sociais e projetos públicos se arrastam pelos armários, gabinetes e órgãos dos tribunais, não raro paralisados por inúmeras liminares; e o que é mais grave, não obstante o dano coletivo que uma paralisação provisória causa, sem que se tenha a preocupação com o rápido julgamento de seus respectivos méritos. As liminares terminam, na prática, motivando o perecimento do próprio direito, especialmente quando a mora judicial termina provocando o abandono da obra sobrestada. Neste incontrolável e complexo contexto, perde-se qualquer que seja o resultado da decisão final. Procedente a ação, não se recupera o tempo perdido, tampouco não se pune em tempo aquele que deu causa ao prejuízo, estimulando, pela impunidade, novas ilicitudes ou irregularidades. No caso de improcedência, os culpados pela não execução da política pública desaparecem, não se podendo apontar, sequer, qualquer responsável pelos prejuízos causados à coletividade. Os autores da ação são esquecidos, os danos não apurados e magistrado que suspendeu e demorou a julgar o litígio impessoalizado. É que o magistrado e o integrante do Ministério Público, de cargos vitalícios e excluídos do sufrágio universal, não estão vinculados aos anseios e reivindicações políticas da sociedade. E sequer podem ser pressionados moralmente pelos afetados pela ineficiência decisória, pois a mobilidade interna já o terá conduzido para outra comarca ou instância hierárquica. Conclui-se, infelizmente, que a judicialização da política pública, independentemente do resultado do julgamento, gera perdas econômicas, políticas e sociais substanciais, sem contar a irrecuperável perda de oportunidade.

Outra conseqüência da judicialização, ainda pouco analisada, se dá com a criminalização da política, que provoca a mesma paralisação da atividade pública. É que vários agentes públicos estão recusando cargos de decisão, vez que alvos fáceis de ações de improbidade ou acusações jornalísticas em escândalos públicos. Quando assumem os cargos, ainda que arriscando a serem réus em processo judicial de improbidade por omissão, ficam transferindo a decisão para um superior hierárquico, que também evita proferir a “arriscada” decisão, gerando um interminável círculo vicioso de abstenção decisória, numa verdadeira e prejudicial política de faz de conta. Resultado: afasta-se ou se vicia aquele que quer e valoriza a sua reputação e conduta ilibada, sobrando espaço para aqueles que, desapegados de conceito ético, não se preocupam com as famosas condenações morais. Estes, como se observa, sabem que o seu escândalo particular logo será absolvido por outro novo escândalo nacional. Não se exime, aqui, a culpa de incontáveis gestores públicos que por desonestidade, má gestão ou dolo provocaram o caos paralisante que atinge o setor público, mas é preciso que se aprofunde na análise das obras e serviços paralisados em razão da ineficácia do Poder Judiciário, do Ministério Público ou Tribunais de Conta quando das conclusões dos trabalhos motivadores da própria paralisação


Nesta fase, esclareço que estendo a expressão “judicialização da política” para outros órgãos que, embora não integrantes da estrutura do Poder Judiciário, têm relevante poder de polícia sobre as políticas públicas, inclusive as reformulando, exigindo-lhes novos parâmetros ou até as paralisando. Está aqui se falando do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e, mais recentemente, da Controladoria Geral da União. Todos eles, cada um ao seu modo, trazendo para o debate uma visão política ou uma compreensão técnica completamente desvinculada das agendas realizadas pelas diversas instâncias do Poder Executivo. E são inúmeros os instrumentos legais à disposição destes órgãos, mesmo porque criados com a missão de controle sobre a coisa pública. A eles se somam, apoiando ou estimulando, a imprensa e as organizações não-governamentais especializadas em transparência e gestão pública.

Não se pode apontar a motivação ou o momento em que o fenômeno da judicialização das políticas públicas surgiu no Brasil. Tampouco se pode afirmar que ela fora arquitetada deliberadamente por algum grupo interessado na preservação de sua hegemonia política. Ernani Rodrigues de Carvalho atribui a judicialização ao sistema político democrático, a separação dos poderes e ao o exercício dos direitos políticos, acrescendo, ainda, ao uso dos tribunais pelos grupos de interesses e, por último, a “inefetividade das instituições majoritárias” [1]. Os professores Alexandre Garrido da Silva e José Ribas indicam que “a expansão do protagonismo político dos tribunais nas democracias contemporâneas, ao menos no ocidente, constitui um fenômeno que caracteriza este início de século” [2], em decorrência do que Ran Hirschi apontou como sendo “Revoluções Constitucionais”, geradoras do movimento conhecido como new constitutionalism[3]. Esta tendência consta expressamente no voto do ministro Gilmar Mendes, no julgamento da ADI 1351-DF, que cuidava da questão da cláusula de barreiras, quando o registrou que “é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressista linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotada pelas principais Cortes Constitucionais européias. A assunção de uma atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causam entraves para efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional”.

É bem verdade que a opção democrática exercida pela Constituição brasileira, com o seu assumido compromisso de preservar e expandir os princípios e garantias fundamentais, fora determinante na judicialização das carências políticas, ainda mais quando o Brasil sempre se caracterizou pela desigualdade social, concentração econômica, desinteresse com a solução do conflito social, insensibilidade nas questões de gênero e racial, não democratização dos espaços públicos e despreocupação com o desequilíbrio regional. Não se pode desprezar, ainda, que a incompatibilidade da Constituição-cidadã com a legislação que dera sustentação à ditadura militar, centrada no autoritarismo, restrições à liberdade e desrespeito institucional, estimulou uma crescente busca da tutela jurisdicional do Estado. E com ela também contribuiu a consolidação do espaço institucional reivindicatório, com o fortalecimento do Ministério Público, Defensoria, Advocacia Pública, OAB e entidades da sociedade, todas, a seu modo, dotadas de competências e instrumentos legais para intervenção na defesa de interesses coletivos, difusos ou mesmo individuais.

No entanto, o justificado aumento da demanda judicial não é ainda suficiente para explicar a razão da transferência do poder decisório sobre as políticas públicas. É que o princípio da separação de poderes, expresso no art. 2º da Constituição, cláusula pétrea na estrutura republicana adotada pelo Brasil, veda expressamente esta invasão. Do Estatuto Republicano se extrai que ao Poder Judiciário não cabe a missão constitucional de interlocução com o soberano-povo sobre o juízo de oportunidade da política pública. Esta valoração é exercida diretamente pelo povo (plebiscito, referendo ou lei de iniciativa popular – art. 14, da CF) ou através do sufrágio universal (caput, do mesmo artigo). A política, neste caso, é a fórmula constitucional utilizada para verbalizar o poder político emanado do povo, direta ou através de seus representantes eleitos (parágrafo único do artigo inicial da Constituição). Não há, neste aspecto, vazio constitucional quanto à matéria de competência sobre a elaboração da agenda política.

Contudo, a transferência de poder decisório sobre as políticas públicas, longe de causar repulsa, recebeu entusiasmado apoio institucional e os aplausos dos mais diversos segmentos sociais. Não se enxergou no fenômeno uma agressão constitucional ou uma perigosa hipertrofia de um poder. Eis porque necessário se faz outra leitura sobre a judicialização, principalmente em razão do seu forte acolhimento popular. Assim, além da consolidação do Estado Democrático de Direito, a demanda social contida em décadas de patrimonialismo, a constitucionalização dessas reivindicações e o fortalecimento das instituições republicanas, é de se apontar outras causas determinantes para a aceitação das ações referentes às políticas públicas. Dentre elas, é de se destacar a parcela de culpabilidade dos dois Poderes que estão perdendo suas atribuições constitucionais. É a velha máxima que ensina não existir vácuo no exercício do poder, a ausência de um é imediatamente ocupada pelo outro. O Poder Legislativo abriu mão de sua competência quando reduziu, assustadoramente, a sua capacidade funcional, tendo se destacado mais pelos escândalos (passagens aéreas, servidores fantasmas, nepotismo, paixões amorosas, tráfico de influência, dentre outros) do que por sua produção legislativa. Produzem mal no campo legislativo (PEC dos vereadores, PEC do Calote, etc.) e no campo investigativo fazem das comissões parlamentares de inquérito palcos de meras disputas eleitorais. O Poder Executivo, embora agigantado em competência, há muito perdeu sua referência ética, vez que é constante alvo de escândalos, esmera-se na criação de outros e é especializado na produção de desvio de verbas públicas em série, má-gestão de recursos públicos ou confusão do público com o privado. Neste caso, a ausência de apoio popular se dá pela questão ética, não pela perda da competência.

Conclui-se facilmente, assim, que sob o prisma do enfraquecimento ético e da incompetência funcional, publicados com destaques nos noticiários diários, é compreensível que a cidadania delegasse a sua esperança de um mundo mais justo, igual e fraterno para aqueles que são selecionados via concurso público, livres da influência do nepotismo, favores políticos ou negociatas. E não apenas o cidadão fez esta delegação, os próprios partidos políticos, cada vez em maior escala, transformaram a arena judiciária no palco de suas ações e discursos. O isento tecnicismo se sobrepondo à parcialidade assumida da política. Um poder superior ao demais, exatamente porque mais neutro, desapaixonado e imune aos vícios da política sem sentido pejorativo. Este fenômeno de transferência progressiva de poderes decisórios das instituições políticas representativas para o Poder Judiciário foi definido por Ran Hirschi como “juristrocracia” (juristrocracy)[4]. Estar-se-ia, desta forma, se aproximando do que Platão chamou à atenção para a necessidade de formulação de um “Conselho de Sábios”, o órgão que reunia os mais aptos e capazes de gerir os destinos da polis.


O uso da nomenclatura “juristrocracia” de Ran Hirschi, “Conselho de Sábios” de Platão ou qualquer outro nome atribuído ao fenômeno não tem qualquer relevância neste momento. O que importa para o debate é reconhecer que a judicialização das políticas públicas pôs os magistrados no topo da pirâmide do poder. E como o exercício do poder exige a assunção das responsabilidades que justificam a sua criação, sob pena do seu próprio esvaziamento, o Judiciário passou a ser mais cobrado e acionado, gerando efeitos colaterais em cadeia. O assustador aumento da demanda judicial, política ou não, fora um deles, como atestam recentes dados do Conselho Nacional de Justiça, que apontam para a existência de mais de setenta milhões de processos em curso no Judiciário. Em decorrência, a alta demanda provocou uma letargia paradoxal, em que a busca pela eficiência do Judiciário lhe causa a própria ineficiência, via morosidade e impunidade. E quando se buscou corrigir estes efeitos, através do primeiro e segundo Pacto Republicano de Estado por um sistema Judiciário mais acessível, ágil e efetivo, outro surgiu, mais especificamente o da concentração do poder decisório nos chamados tribunais superiores, destacando-se, dentre eles, a súmula vinculante, a repercussão geral, os recursos repetitivos e a transcendência jurídica.

Mas, sem dúvida, um dos efeitos mais dolorosos da judicialização da política será o da politização do Poder Judiciário. Percebendo que suas ações e omissões serão objetos de discussões judiciais, os governantes passarão a dar atenção especial ao processo de preenchimento das vagas nos Tribunais, agora com poderes decisórios mais concentrados. As listas e escolhas dos magistrados que comporão tribunais serão compreendidas como inseridas no contexto de sobrevivência política. O nomeante, sabendo da importância do nomeado, quererá fazer dele um aliado permanente. Neste aliado vitalício, procurará apostar a garantia futura de que suas políticas públicas ou ações judiciais, dolosas ou não, estarão a salvo de desatinos, acidentes ou dissabores imprevistos. Não sem razão, José Eisenberg detectou a existência de movimentos que se complementam, quando afirma que “(1) refere-se a um processo de expansão dos poderes de legislar e executar leis dos poderes de legislar e executar leis do sistema judiciário, representando uma transferência do poder decisório do Poder Executivo e do Poder Judiciário para juízes e tribunais – isto é, uma politização do judiciário; (2) a disseminação de métodos de tomada de decisão típicos do Poder Judiciário nos outros Poderes. Em nosso juízo, esse segundo movimento é mais bem descrito como ‘tribunalização’ da política, em oposição à judicialização representada pelo primeiro movimento”.[5]

E o Poder Judiciário não pode está imune a esta perigosa deficiência democrática, mormente quando o magistrado, impossibilitado de abstrair do julgamento a sua condição humana, não está isento das paixões políticas, das idéias preconcebidas, da cultura adquirida, do meio em que vive, enfim de suas convicções pessoais. Daí ser possível afirmar que na concretização do direito abstrato previsto na Constituição Federal é o elemento humano o alicerce principal da decisão. Neste sentido, é bom registrar a tese de mestrado de Laércio Alexandre Becker (O Mito da Neutralidade do Juiz), quando ressalta que “Diante dessa exigência de imparcialidade, CALAMANDREI pergunta se é humanamente possível ao juiz sentir-se imparcial diante de um litígio no qual se encontram os mesmos interesses coletivos da vida política da sociedade, da qual o mesmo juiz faz parte. Em outras palavras, como pode o juiz que, enquanto cidadão, participa dos conflitos políticos de sua sociedade, sentir-se imparcial diante de uma projeção in vitro desses conflitos, no caso individual que deverá julgar? E mais: reforçando observação semelhante de CAPOGRASSI, CALAMANDREI pergunta como pode sentir-se imparcial o juiz diante de questões que envolvem a ordem, a propriedade, a vida e o pensamento. Diante dessas questões, o processualista italiano entende que a neutralidade e mesmo imparcialidade política do juiz é mais aparente que real”.

Um diagnóstico desta relevante questão pode ser encontrado na proposta do magistrado ORLANDO VIEGAS AFONSO, então presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses – ASJP e também da MEDEL – Associação dos Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades, quando da discussão sobre “A formação dos Juízes para a Europa dos cidadãos, pontuou que “A seleção e a formação dos juízes são, como se viu na pequena análise histórica, inseparáveis das concepções sócio-políticas que do poder judicial, em dado momento, se possam ter. Por isso é compreensível que as formas como os juízes são escolhidos tenham particular importância. A liberalidade constitucional no tocante à consagração de garantias de independência e imparcialidade da magistratura não é tão patente no que toca à seleção e formação dos magistrados. Se é importante a discussão sobre a imparcialidade e a independência, não menos importante é, nos regimes democráticos, a forma como os Juízes são nomeados (selecionados e formados) dado ser por demais conhecida a relação entre a sua atitude político-cultural e o seu recrutamento. O processo de recrutamento está intimamente ligado ao papel global que a magistratura desenvolve no sistema político”. Não é outra a compreensão de Eugenio Raúl ZAFFARONI[6], quando alerta que "Um juiz não é parcial porque tenha uma filiação política, mas porque depende para sua nomeação, permanência, promoção e demissão de um partido político ou de um grupo de poder”

Eis porque a aprovação urgente de uma reforma política que restabeleça a credibilidade do executivo e do parlamento é fundamental para a Democracia, recuperando-se o real conceito de separação dos poderes e do próprio exercício da política como elemento de diálogo entre o povo e seu representante. No mesmo sentido, ampliar a reforma do Poder Judiciário, democratizando-o, a exemplo de transformar o Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional, estabelecer o sistema de mandato para os membros dos tribunais superiores, criar a possibilidade de impugnação popular ao magistrado indicado para integrar os tribunais e, finalmente, ampliar a competência do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, agora para aumentar as suas respectivas composições (com um maior número de representante da sociedade) e competência (com o poder de demissão). Estimular as práticas e mecanismos de auto-composição dos conflitos, estimulando-se as conciliações, mediações e arbitragens, com a presença técnica de advogados, inclusive no que se refere à administração pública, dotando a AGU e procuradorias estaduais e municipais de poderes de negociação. Criar mecanismos de responsabilização funcional daquele que por má-fé, ineficiência, descaso ou prevaricação causou prejuízo público ao erário. Criar uma agenda no Poder Judiciário de agilização dos processos envolvendo o patrimônio público, evitando o dano coletivo, quer seja com a paralisação da obra ou impunidade daquele que deu causa. E, finalmente, dotar o Poder Judiciário de mecanismos efetivos para obrigar o Poder Executivo a cumprir as decisões judiciais, quebrando, assim, o nefasto círculo vicioso em que o Judiciário paralisa o Executivo que, em contrapartida, o paralisa no descumprimento das decisões, num embate em que perde o cidadão duplamente, tem judicializada a política pública e não possui instrumentos para coibir os abusos estatais. Não raro, também este sistema encarece o relacionamento econômico daquele que presta serviços ao Estado, tornando-se presa fácil da corrupção ou fazendo aumentando os preços públicos, para aí embutir a taxa de corrupção ou a morosidade judicial. É a velha política de plantar dificuldade para colher facilidade.

A supressão da competência de um poder republicano pelo outro, qualquer que seja ele, não contribui para o fim democrático e constitucional de qualquer sistema político. A hipertrofia de poder é anomalia que não faz bem à vida republicana. O avançar do tempo fez do Judiciário a última e irrecorrível voz sobre a vida jurídica e das políticas públicas do país, uma voz que não se submete ao sufrágio universal, não controlada pelo soberano do sistema democrático. Neste caso, por ser o derradeiro controlador da nação, a compreensão dos limites e métodos de atuação do Poder Judiciário são relevantes para a própria sobrevivência democrática. Assim também devem refletir as preocupações no que se refere à politização do processo de escolha dos magistrados. A crescente politização das políticas públicas, sem qualquer erro, conduzirá, perigosamente, o Brasil para a politização do seu Poder Judiciário. E quando o Poder Executivo controlar o vitalício Poder Judiciário serão as políticas e agendas públicas que não mais precisarão sofrer o crivo do sufrágio universal, essencial à Democracia. Talvez nem se precise da própria Democracia. E mais uma oportunidade seria perdida pelo Brasil.


[1] Em busca da judicialização da política no Brasil: apontamentos para uma nova abordagem, in Revista de Sociologia Política, Curitiba, 23, 2004, p. 117-120

[2] Justiça Transacional, Direitos Humanos e seletividade do ativismo judicial no Brasil, in Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Ministério da Justiça, N 2, 2009, p. 254

[3] Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism, Cambridge, Massachusetts Harvard University Press, 2004

[4] Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism, Cambridge, Massachusetts Harvard University Press, 2004

[5] Pragmatismo, direito reflexivo e judicialização da política, in VIANNA, Luiz Wernrck, A democracia e os três poderes no Brasil, Belo Horizonte, Ed. IUPERJ/FAPERJ, 2002, p. 47

[6] RT, 1995, p. 216

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