Greve e salário

Garantias sociais dependem de direito de greve

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17 de junho de 2010, 16h27

A greve, porque provoca uma alteração no cotidiano, gera as mais diversas reações de contrariedade, sobretudo daqueles que, de certo modo, são atingidos por ela.

Boa parte da inteligência humana, por conseguinte, durante muito tempo foi voltada para limitar o exercício da greve. Com o necessário aprimoramento da estrutura democrática, chegou-se à concepção da greve como um direito dos trabalhadores. Mas a mera consideração da greve como direito não é suficiente para que se compreenda a importância e o alcance social da greve, causando-lhe limites indevidos.

Não que direitos não possam ter limites, mas, no caso da greve, os limites impostos podem gerar a consequência paradoxal de impedir-lhe o efetivo exercício. O direito de greve, assim, pode ser negado pelo próprio direito.

A bem compreender, a greve não é um modo de solução de conflitos e sim uma forma pacífica de expressão do próprio conflito. Trata-se de um instrumento de pressão, legitimamente utilizado pelos empregados para a defesa de seus interesses.

Em uma democracia deve-se abarcar a possibilidade concreta de que os membros da sociedade, nos seus diversos segmentos, possam se organizar para serem ouvidos. A greve, sendo modo de expressão dos trabalhadores, é um mecanismo necessário para que a democracia atinja as relações de trabalho.

Na ordem jurídica atual, conferiu-se aos trabalhadores, no choque de interesses com o empregador, o direito de buscarem melhores condições de trabalho, recriando, a partir da solução dada, a própria ordem jurídica. Um ato que ao olhar do direito civil tradicional seria considerado uma ilegalidade, pois conspira contra o direito posto, na esfera trabalhista, inserido no contexto do Direito Social, ganha ares de exercício regular do direito.

No Direito Social, ou melhor, na formação do Estado Social de Direito, os valores humanísticos desenvolvidos na experiência do convívio social foram incorporados ao direito como valores jurídicos de caráter genérico (direito à vida, por exemplo). O próprio ordenamento reconhece que essas expressões normativas de caráter genérico requerem concretização e isso somente pode se dar em hipóteses determinadas. Assim, quando o ordenamento jurídico trabalhista confere aos trabalhadores a possibilidade de se rebelarem contra o direito contratualmente posto, para reconstrução dos limites obrigacionais, não se está, propriamente, estabelecendo uma contradição dentro do sistema, que exporia o Direito do Trabalho à condição de um antidireito, muito ao contrário, o que se permite é uma possibilidade concreta de se tornarem reais as “promessas” contidas nas fórmulas genéricas do Estado Social.

Pode-se imaginar que essa “luta” por melhores condições de trabalho seja mais uma questão sociológica que jurídica, pois a todas as pessoas, mesmo nas relações civis, é dada a liberdade para defenderem seus interesses e a partir daí firmarem relações jurídicas que atendem a tais interesses. A diferença é que no Direito do Trabalho essa “luta”, ela própria, é garantida pelo direito, resultando na formação, institucional de um direito à luta pelo direito.

Interessante perceber, ainda, que a consagração pelo próprio direito da possibilidade de se reconstruir, em situações concretas, a ordem jurídica, representa um relevante fator de estabilização das relações sociais, pois permite sua constante evolução, evitando, assim, a solução mais comum quando os interesses, sobretudo econômicos, entram em conflito com o conteúdo obrigacional, fixado no contrato, que é a da cessação do vínculo, sendo de se destacar que no contexto coletivo mais amplo a impossibilidade de composição dos conflitos pode gerar o completo desajuste social.

Importante, também, destacar que a abrangência desse direito não se limita à reavaliação das normas contratuais estabelecidas. Integra-lhe, igualmente, a lacuna (o vazio), ou seja, o que não fora fixado em cláusulas específicas, já que o vazio não é apenas um nada, e sim a ocupação de um lugar daquilo que lá poderia estar. Trata-se de uma regulação específica, quando necessária, de um valor jurídico de caráter genérico.

Deve-se recordar, ainda, que o Estado Social, ao considerar os trabalhadores como classe e atraí-los, nessa configuração, para o contexto social, conferiu-lhes o direito de defenderem os seus interesses, o que se traduziu juridicamente como o princípio da constante melhoria da condição social e econômica da classe trabalhadora, que se insere no conceito mais amplo de justiça social e que representa a parcela mais importante do compromisso firmado pelos detentores do poder, no período pós segunda guerra mundial, de desenvolverem um capitalismo socialmente responsável.

É assim, portanto, que o Direito permite aos trabalhadores defenderem, por meio da greve, os interesses que considerarem relevantes para a melhoria da sua condição social e econômica até mesmo fora do contexto da esfera obrigacional com um empregador determinado.

A greve vista, pela ótica do Direito Social, consequentemente, é um instrumento a ser preservado. Ao direito não compete limitá-la e sim garantir que possa ser, efetivamente, exercida e a forma mais rudimentar de cumprir esse objetivo é não impor aos trabalhadores o sacrifício do próprio salário do qual dependem para sobreviver. O direito não pode meramente fixar os contornos de um jogo no qual quem pode mais chora menos. O que o direito deve fazer é permitir que o jogo seja jogado, atribuindo garantias aos trabalhadores para que o valor democrático possa ter um sentido real.

Oportuno registrar que muitas das pessoas que hoje abominam a greve não se recordam que as garantias jurídicas de natureza social que possuem, aposentadoria, auxílio-doença, licenças, férias, limitação da jornada de trabalho etc, etc, etc, além de direitos políticos como o voto e a representação democrática das instituições públicas advieram da organização e da reivindicação dos movimentos operários.

Negar aos trabalhadores o direito ao salário quando estiverem exercendo o direito de greve equivale, na prática, a negar-lhes o direito de exercer o direito de greve, e isto não é um mal apenas para os trabalhadores, mas para a democracia e para a configuração do Estado Social de Direito do qual tantos nos orgulhamos.

Conforme Ementa, da lavra de Rafael da Silva Marques, aprovada no Congresso Nacional de Magistrados Trabalhistas, realizado em abril/maio de 2010: “não são permitidos os descontos dos dias parados no caso de greve,salvo quando ela é declarada ilegal. A expressão suspender, existente no artigo 7º da lei 7.783/1989, em razão do que preceitua o artigo 9º da CF/88, deve ser entendida como interromper, sob pena de inconstitucionalidade, pela limitação de um direito fundamental não-autorizada pela Constituição federal.”

Ora, se a greve é um direito fundamental, não se pode conceber que o seu exercício implique o sacrifício de outro direito fundamental, o da própria sobrevivência. Lembrando-se que a greve traduz a própria experiência democrática da sociedade capitalista, não se apresenta honesto impor um sofrimento aos trabalhadores que lutam por todos, que, direta ou indiretamente, se beneficiam dos efeitos da greve.

É importante destacar esse aspecto da contrariedade pessoal que se possa ter em face das greves (que é, como dito, totalmente injustificável), pois é, afinal, essa visão negativa da greve, advinda de preocupações individualistas, que motivam as interpretações limitadoras do direito de greve.

Para negar aos trabalhadores o direito ao recebimento de salário no período em que exercem o direito de greve, escora-se em previsão contida na Lei 7.789/1989, que assim dispõe:

Artigo 7º – Observadas as condições previstas nesta Lei, a participação em greve suspende o contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.

Imagina-se que este dispositivo tenha retirado dos trabalhadores o direito de recebimento de salário durante o período da greve, mas de fato, vale reparar, não há disposição expressa neste sentido. Esse, ademais, é o primeiro dado a ser observado, pois a perda do salário só se justifica em caso de falta não justificada e é mais que evidente que a falta de trabalho, decorrente do exercício do direito de greve, está mais que justificada, pois, afinal, a greve é um direito do trabalhador.


Cumpre verificar também que, quando o trabalhador está exercendo o direito de greve, sequer se pode falar em “falta ao trabalho”, pois a greve pressupõe ausência de trabalho, e não ausência ao trabalho. Os trabalhadores em greve comparecem ao local de trabalho — ou próximo a ele — para fazerem suas manifestações e reivindicações. É interessante perceber que em alguns locais de trabalho a experiência humana, dos pontos de vista cultural, acadêmico, político e democrático, é muito mais intensa nos períodos de greve, quando se deixa de lado o trabalho burocratizado, mecanizado, e se estabelece um debate aberto sobre a própria estrutura na qual o trabalho se insere.

Acrescente-se que, legalmente falando, não há diferença entre interrupção e suspensão do contrato de trabalho, embora a doutrina tenha criado essa diferenciação em razão da expressão trazida como denominação do Capítulo IV da CLT: “Da Suspensão e da Interrupção”.

O fato é que, embora o nome do Capítulo seja este, a própria CLT não definiu as figuras em questão. Por esforço classificatório, a doutrina nacional tratou de separar as hipóteses. Mas, sem o pressuposto de uma definição legal, formou-se na doutrina uma divergência a respeito do assunto, pois para alguns a suspensão seria caracterizada pela ausência total de efeitos jurídicos[1] enquanto que para outros a produção de alguns efeitos não a descaracterizaria[2]. Para estes últimos, o elemento diferenciador seria apenas o recebimento, ou não, do salário, com a consequente contagem do tempo de serviço.

Na verdade, a discussão acadêmica acerca do melhor critério para separar interrupção e suspensão tem pouca ou nenhuma importância, pois os efeitos jurídicos atribuídos a cada situação devem ser determinados na lei.

Assim, quando a Lei n. 7.783/1989 traz a expressão suspensão não se pode atribuir a ele os efeitos jurídicos postos por uma classificação de caráter doutrinário, que sequer se apresenta de forma unânime.

Do ponto de vista da doutrina estrangeira, por exemplo, não se tem essa diferenciação. Todas as hipóteses em que não há prestação de serviço por parte do empregado e se mantém vigente a relação de emprego são tratadas como suspensão[3] [4] [5].

Orlando Gomes e Élson Gottschalk, por exemplo, também tratam as hipóteses como sendo apenas de suspensão, subdivididas em suspensão total e suspensão parcial: Entre nós, a Consolidação no Título IV, Capítulo IV, trata da Suspensão e da Interrupção do contrato de trabalho, e grande parte da doutrina, seguindo esta distinção, entende que como suspensão se deve encarar a total paralisação dos efeitos do contrato de trabalho, e como interrupção, procura-se explicar, compreende-se a manutenção de alguns efeitos e a paralisação de outros. Trata-se de técnica peculiar apenas ao direito pátrio, sem correspondência no direito alienígena, e que, em verdade, se trata de mais uma terminologia ineficaz para substituir a suspensão parcial do contrato, cujo vinculo júris não se rompe nem se interrompe com ocorrências de determinadas causas, que apenas suspendem temporariamente a relação de emprego.[6]

Ao manterem a distinção, embora com outra nomenclatura, os autores mencionados buscam fixar um critério para identificá-la: “A suspensão pode ser total ou parcial. Dá-se, totalmente quando as duas obrigações fundamentais, a de prestar o serviço e a de pagar o salário, se tornam reciprocamente inexigíveis. Há suspensão parcial quando o empregado não trabalha e, não obstante, faz jus ao salário.”[7].

Nestes termos, do ponto de vista terminológico, com base na doutrina de Orlando Gomes e Élson Gottschalk, a suspensão da relação de emprego, sendo parcial, pode implicar a obrigação do pagamento de salário.

O que importa, unicamente, é saber o que a lei considera suspensão da relação de emprego e quais efeitos jurídicos são por ela, a lei, mantidos vigentes durante o período correspondente, sabendo-se que o efeito da manutenção da relação de emprego está sempre presente, pois, afinal, é este efeito que diferencia a situação de outra que lhe é, esta sim, concretamente avessa, que é a cessação da relação de emprego.

Arnaldo Süssekind comentando a origem da distinção, que se espelhou nas experiências do direito comparado, que se utiliza, no entanto, das figuras da suspensão total ou parcial, dá o relato de uma tese apresentada à Universidade de Brasília, por Sebastião Machado Filho, que, igualmente, já havia refutado tanto a nomenclatura quanto a distinção adotadas pela Consolidação das Leis do Trabalho, “sustentando que se verifica, apenas a ‘suspensão da prestação de execução de serviço’.”[8]

No tema pertinente à suspensão da relação de emprego, o que importa é, portanto, verificar quais os efeitos obrigacionais são fixados por lei. Não cabe à doutrina dizê-lo. E de fato, no caso da greve, cumpre reparar que a lei nada estabeleceu sobre os efeitos obrigacionais. Apenas restou dito que “a greve suspende o contrato de trabalho”. Ora, se o legislador não fixou diferença entre suspensão e interrupção e, ademais, considerando o pressuposto da experiência jurídica estrangeira, trouxe essa forma de nominação fora de um parâmetro técnico, não se pode dizer que quando, em lei especial, referiu-se apenas à suspensão tenha acatado a classificação feita pela doutrina, que, ademais, como dito, não é unânime quando aos critérios de separação entre hipóteses de suspensão e interrupção. Do ponto de vista doutrinário, é mais correto dizer que a lei de greve corrigiu uma incoerência nominativa trazida na CLT, nada mais que isso.

Aliás, não pode mesmo ser outra a conclusão, considerando o que diz, na sequência, a referida Lei 7.783/1989: “…devendo as relações obrigacionais, durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho” — grifou-se.

Ora, o que diz a lei é que os efeitos obrigacionais não estão fixados pela lei. Assim, não pode o empregador, unilateralmente, dizer que está desobrigado de pagar salários durante a greve, pois não terá base legal nenhuma a embasá-lo.

E, como se está procurando demonstrar, o direito do recebimento de salário é um efeito obrigacional inegável na medida em que, por lei, o não recebimento de salário somente decorre de falta injustificada ao serviço, ao que, por óbvio, não se equipara a ausência de trabalho em virtude do exercício do direito de greve. É evidente que o exercício de um direito fundamental, o da greve, não pode significar o sacrifício de outro direito fundamental, o do recebimento de salário.

A interpretação extensiva dos termos da lei, implicando na negativa ao direito de recebimento de salários, é imprópria mesmo sob o prisma das técnicas de interpretação do direito comum, quando mais em se tratando de um direito social. É evidente que a preocupação do legislador, ao dizer que a greve “suspende o contrato de trabalho”, foi a de dar ênfase à preservação da relação de emprego, evitando que o empregador considerasse os dias parados como faltas ao trabalho e propugnasse pela cessação dos vínculos jurídicos. É o que consta, ademais, com todas as letras no parágrafo único do artigo 7º da lei em questão: “É vedada a rescisão de contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos artigos 9º e 14.”


Interessante observar que essas garantias legais para o exercício do direito de greve não se dão sem uma contrapartida. O artigo 9º determina que, “durante a greve, o sindicato ou a comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da empresa quando da cessação do movimento” — grifou-se.

Assim, a greve, como instituto jurídico de natureza coletiva, deve se realizar de modo a não gerar dano irreparável ao empregador do ponto de vista de seu maquinário. Essa situação elimina, por completo, a visão individualista que ainda insiste em assombrar a greve e mesmo a conclusão de que o salário não é devido durante o período de parada. Ora, quem deve definir como esses serviços serão executados, conforme dispõe a lei, é o sindicato (ou a comissão de negociação), mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente com o empregador. Não será, portanto, o empregador, sozinho, que deliberará a respeito junto com os denominados empregados “fura-greves”. A manutenção das atividades do empregador, com incentivos pessoais a um pequeno número de empregados, que, individualmente, resolvem trabalhar em vez de respeitar a deliberação coletiva dos trabalhadores, constitui uma ilegalidade, uma frustração fraudulenta ao exercício legítimo do direito de greve.

Neste sentido, não se pode opor, no ambiente de trabalho, o direito liberal, de ir e vir, perante o direito de greve, cuja deflagração se deu coletivamente. A lei, ademais, é clara quanto ao aspecto de que a continuação das atividades inadiáveis do empregador deve ser definida em negociação com o sindicato ou a comissão de negociação.

Dentro deste contexto, a atuação dos trabalhadores em greve de impedir, pacificamente, que os “fura-greves” adentrem o local de trabalho, ou seja, a realização do conhecido “piquete”, constitui parte essencial do exercício do direito de greve. Neste aspecto, ademais, falham os sindicatos ao não levarem ao Judiciário, a fim de obterem uma tutela jurisdicional a respeito, a questão pertinente à continuidade das atividades do empregador durante a greve sem a devida negociação com os sindicatos.

Votando ao problema do salário, veja-se que o dispositivo do art. 9º constitui uma pá de cal na argumentação contrária à que se expressa neste texto. Ora, se todos os trabalhadores, manifestando sua vontade individual, deliberam entrar em greve, o sindicato, como ente organizador do movimento, deve, segundo os termos da lei, organizar a forma de execução das atividades inadiáveis do empregador. Para tanto, deverá indicar os trabalhadores que realizarão os serviços, os quais, mesmo tendo aderido à greve, terão que trabalhar. Prevalecendo a interpretação de que a greve representa a ausência da obrigação de pagar salário, de duas uma, ou estes trabalhadores, que apesar de estarem em greve e que trabalham por determinação legal, não recebem também seus salários mesmo exercendo trabalho, ou em os recebendo cria-se uma discriminação odiosa entre os diversos trabalhadores em greve.

Dito de forma mais clara, se todos os trabalhadores do setor de manutenção resolvem aderir à greve, por determinação legal estarão obrigados a realizar serviços inadiáveis. Definirão, então, entre si quais os trabalhadores farão os serviços e mesmo poderão deliberar a realização de um revezamento para a execução de tais serviços. É claro que não se poderá criar entre os que estarão trabalhando, por deliberação também coletiva, uma diferenciação jurídica acerca do direito ao recebimento, ou não, de salários.

Veja-se o que se passa, igualmente, nas denominadas atividades essenciais. O artigo 11 da lei de greve dispõe que “Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”, acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que “São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.

Ora, se cumpre aos trabalhadores em greve manter os serviços essenciais, é natural que, pelo princípio da isonomia, não se crie uma diferenciação entre os empregados que estão trabalhando por determinação legal, para atender as atividades inadiáveis da comunidade, e os que não estão trabalhando, ainda mais porque a deliberação acerca de quem deve trabalhar no período da greve não é uma decisão individual e sim coletiva, como estabelece a própria lei.

Neste sentido, repita-se: a decisão de trabalhar, ou não, no período de greve não pertence a cada trabalhador, individualmente considerado, daí porque, também, se torna legítima toda forma, pacífica, de impedir que o trabalho, para além das necessidades inadiáveis, continuem sendo executados, seja por vontade individual de um trabalhador, seja pela contratação, por parte do empregador, de empregados para a execução dos serviços, não se admitindo até mesmo que empregados de outras categorias, como terceirizados, por exemplo, supram as eventuais necessidades de mera produção dos empregadores no período.

Assim, piquetes e até ocupações pacíficas do local de trabalho se justificam para que se faça prevalecer, em concreto, o legítimo e efetivo exercício do direito de greve.

Nunca é demais lembrar que os efeitos benéficos da negociação advinda da greve atingirão a todos os trabalhadores, indistintamente, e não apenas àqueles que de fato levaram adiante a luta pela conquista de melhores condições de trabalho.

Interessante perceber, também, que o ato da paralisação do trabalho, a greve propriamente dita, porque aparece publicamente, acaba fazendo crer que os trabalhadores cometem uma agressão contra o empregador e mesmo contra a sociedade ao executá-la. Mas, pouco se percebe que para chegarem à greve os trabalhadores já foram alvo de intensa violência, embora velada.

Essa inversão de análise, aliás, vem imperando em nossa realidade, em diversos aspectos, chegando ao ponto de motivar a consideração de que direitos trabalhistas são privilégios e que cumpre a sociedade reprimir os grevistas, segundo tem proposto o atual reitor da Universidade de São Paulo, como se os trabalhadores não fossem, também eles, integrantes dessa mesma sociedade.

Recentemente, a Presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região, nos “considerandos” do Ofício n. 306/2010-DGCA, definiu a greve como um “direito dos cidadãos” e buscou ver na lei de greve uma espécie de regulação da defesa dos interesses da sociedade em face dos grevistas. E, como ameaça à realização da greve por parte dos servidores chegou mesmo a sugerir que a demora da prestação jurisdicional seria culpa dos servidores, que estariam desrespeitando o “interesse público”. Determinou, assim, o corte dos salários dos servidores em greve como forma de punição pelo sacrifício imposto ao “público jurisdicionado”, que teria ficado “frustrado em sua expectativa de solução breve de suas lides trabalhistas”, integradas por créditos, em sua maioria, “de caráter alimentar”, como se o salário dos servidores, cujo corte fora determinado, não fosse da mesma natureza.

De um direito, a greve se tornou, por si, mesmo sem avaliação do conteúdo das reivindicações, um ato ilícito, e, pior, segundo posicionamento advindo do interior da própria instituição criada para a defesa dos direitos dos trabalhadores, a Justiça do Trabalho. E, na perspectiva dos trabalhadores, em vez de um direito, a greve se transforma em um ato de heroísmo ou ignorância, já que se põe em risco o próprio pescoço para lutar por outros que, por medo ou desprezo, não aderem ao movimento…

Interessante verificar que fora com base na lei de greve que a Presidência do Tribunal fixou, unilateralmente, quais seriam as atividades inadiáveis e o percentual de servidores (50%, em cada unidade) que deveriam permanecer trabalhando, contrariando, no entanto, frontalmente, os próprios termos da lei a que se refere, a qual, repita-se, determina que essa deliberação deve ser feita de “comum acordo” com os trabalhadores (art. 11).

O fato é que as ameaças econômicas, como represálias à adesão a atividades sindicais – e a greve é a principal delas – para intimidar e gerar medo nos trabalhadores, constituem atos anti-sindicais, tais como definidos na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952), que justificam, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.

A questão é muito simples e como tal deve ser encarada: a greve é um direito dos trabalhadores e para o efetivo exercício desse direito, conforme garantido pelo artigo 9º da Constituição Federal, não se pode tolerar o desconto de salário dos dias parados, salvo a partir do momento em que a greve, sendo o caso, for declarada ilegal pelo Poder Judiciário, sendo de se destacar que esse é o efeito máximo que o Judiciário pode conferir à greve, ou seja, não cumpre ao Judiciário determinar que os trabalhadores voltem compulsoriamente ao trabalho. A estes, unicamente, caberá assumir os riscos referentes aos eventuais efeitos jurídicos pelas ausências ao trabalho que passam, aí sim, a ser injustificadas.

Cumpre lembrar que para a Organização Internacional do Trabalho sequer a solução judicial da greve é possível, cumprindo às partes, de comum acordo, buscarem o mecanismo de solução, a não ser nos casos de serviços essenciais, no sentido estrito do termo, quais sejam, “aquellos cuya interrupción podría poner en peligro la vida, la seguridad o la salud de la persona en toda o parte de la población”, conforme definido no caso n. 1839, julgado pelo Comitê de Liberdade Sindical, tratando da greve dos petroleiros de 1995. Nunca é demais recordar que no mesmo caso em questão o governo brasileiro foi criticado pelas dispensas de 59 trabalhadores grevistas (que, posteriormente, acabaram sendo reintegrados) e pelas multas que o Tribunal Superior do Trabalho impôs ao sindicato em razão de não ter providenciado o retorno às atividades após a declaração da ilegalidade da greve.

Vale acrescentar que no que se refere aos servidores públicos, aos quais a Constituição brasileira assegurou o direito de greve, por tradição histórica, o não-desconto de salários em caso de greve se incorporou ao patrimônio jurídico dos servidores. Qualquer alteração neste sentido, portanto, além de ilegal, conforme acima demonstrado, representa um grave desrespeito aos princípios do não-retrocesso social e da condição mais benéfica, até porque as experiências democráticas no sentido da construção da cidadania devem evoluir e não retroceder.

Em suma: só há direito à greve com garantia plena à liberdade de reivindicação por parte dos trabalhadores, pois, afinal, os trabalhadores em greve estão no regular exercício de um direito, não se concebendo que o exercício desse direito seja fundamento para sacrificar o direito à própria sobrevivência, que se vincula ao efetivo recebimento de salário.


[1]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São Paulo: Ltr, 2003, p. 281 e 301.

[2]. CATHARINO, José Martins. Contrato de emprego: comentários aos arts. 442/510 da CLT. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições trabalhistas, 1965, p. 242; DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2002. p. 1032.

[3]. CUEVA, Mário de La. Derecho Mexicano Del Trabajo. Tomo I. México: Porrua. 1960. p. 773.

[4]. TORRES, Guillermo Cabanellas de. Compendio de Derecho Laboral. 3ª ed. Tomo I. Buenos Aires: Heliasta. 1992. p. 848.

[5]. Embora mesmo nesta exista os que a adotam como BUEN L., Néstor de. Derecho del trabajo. 2ª ed. Tomo I. México: Porrúa. 1977. p. 541-542.

[6]. GOMES, Orlando e GOTTSCHALK Elson, Curso de Direito do Trabalho. Vol. I. Rio de Janeiro:Forense. 1981. p. 454.

[7]. GOMES, Orlando e GOTTSCHALK Elson, Curso de Direito do Trabalho. Vol. I. Rio de Janeiro:Forense. 1981. p. 454.

[8]. SÜSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São Paulo: Ltr. 2003. p. 490.

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