Juiz X Advogado

Divergência de opinião não legitima ofensa em juízo

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12 de junho de 2010, 7h21

Difíceis os tempos atuais para a magistratura. Conquanto jungidos os juízes a um regime jurídico constitucional e infraconstitucional (Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN) notavelmente peculiar e cada dia mais rigoroso (que o digam o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho da Justiça Federal e as Corregedorias dos diversos tribunais), dada a condição de agentes detentores de parcela do Poder Estatal (inclusive, de dizer por último o direito, como decorrência do princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional) importa destacar o perigoso caminho que parcela da sociedade brasileira tem trilhado. 

Três prerrogativas visam assegurar ao juiz os instrumentos bastantes para a difícil incumbência de decidir sobre a vida alheia, a saber, a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos (artigo 95, da Constituição Federal).  Elas são o início de um panorama normativo que possui um claro escopo de assegurar um valor altamente destacável:  a independência judicial.  Ela não existe para conferir qualquer privilégio a essa ou aquela pessoa que exerce a função de julgar e, sim, para que qualquer indivíduo que se candidate a tal mister possa atuar com isenção.  Julgamento conforme o próprio entendimento, motivadamente calcado na legislação da matéria aplicada aos fatos concretos, é uma garantia mínima para o devido processo legal.

Independência judicial é algo caro às sociedades.  Na Revolução Francesa, ainda que por ideais nobres, a magistratura foi desde logo engessada sob o prisma de que somente tocaria ao Judiciário repetir o direito positivo (a expressão clássica de que o juiz é a “boca” da lei). Inúmeros abusos, inclusive as execuções sumárias de vários dos membros originais da nova ordem, foram perpetrados e subtraídos da sindicabilidade jurisdicional. Não foi diferente na Alemanha Nazista, onde o regime anti-semita encontrou respaldo na lei e nos juízes que aplicaram-na.  A história humana e a própria dogmática jurídica concluíram que a atividade de julgar é mais complexa, na exata medida em que sendo o direito dialético e notadamente afetado por eventos sociais, e não se reduz a um silogismo – simples demais e muitas vezes insuficiente para efetivamente compreender os litígios que lhes são postos à prova e legitimar as decisões proferidas. 

Sempre e sempre na história foi evidenciado que Judiciário fraco é porteira aberta para desmandos.  O Brasil mostra a atualidade dessa lição. A ditadura Vargas e a que se instalou em 1964 procuraram (e muitas vezes, conseguiram) calar a magistratura (e o direito) com a cassação daqueles que não decidissem conforme o discurso de exceção do dia.  Muitos arriscaram as carreiras e até mesmo a vida para garantir valores altamente ligados ao Estado Democrático de Direito, como o habeas corpus, a prisão legal e motivada, a liberdade de opinião, a liberdade de imprensa, a liberdade de informação, o direito de petição e de ação contra o Estado, dentre outros.  Fizeram-no por acreditarem no direito e na justiça.  É claro.  Mas, também operaram-no crendo que o sistema haveria de conferir garantias mínimas a eles e aos juízes que viriam no futuro.

Se é certo dizer que existem vários, grandes e abnegados heróis entre os juízes e juízas de todo o país, que fazem do labor diário uma devoção, com sacrifício da família, dos amigos, da qualidade de vida e da própria saúde, é igualmente correto que os que exercem tal função são homens e mulheres comuns.  Nada mais;  nada menos.  Exercem a judicatura, mas continuam sendo humanos, com todas as necessidades a tanto inerentes.  É natural que tenham anseios, expectativas, auto-estima e tudo o mais que nos diferencia dos seres não-pensantes.  Um sistema legal e profissional que lhes dê conforto para isso é o mínimo existencial para o correto atuar.  Ou não existem direitos humanos para juízes?  Decidir é algo que gera consequências negativas.  Por vezes, desavisados tendem a identificar na contrariedade do entendimento do magistrado algo mais do que o simples divergência de opiniões, cuja existência não legitima ofensas. 

Porém, a par de situações que merecem apuração e punição pelo mau uso da toga (em proporção nem maior nem menor do que em outras atividades), é fato que atualmente afigura-se desestimulante o panorama de atuação profissional.  Direitos a todos conferidos são negados; direitos que seriam justificáveis pelo exercício de um cargo de agente estatal são suprimidos sem compensações;  a agressão pura e simples que alguns maus profissionais do direito têm se empenhado em fazer quando se vêem às voltas com decisões que contrariam seus interesses é tolerada e até incentivada!

Chama a atenção a decisão judicial proferida em ação penal proposta pelo Ministério Público contra advogado que, em razões de recurso interposto contra decisão proferida por magistrado singular, teria injuriado a honra deste último.  A Corte responsável pelo trancamento da ação penal (o STJ) entendeu, dentre outros fundamentos, de aplicar a imunidade do advogado para a discussão travada em juízo (artigo 142, inciso I do Código Penal).  O magistrado foi taxado de “parcial”, “covarde”, “justiceiro”, “repugnante”, “insidioso”, “inidôneo” e “desonesto”, conforme se extrai do voto da ilustre Ministra relatora que transcreveu trechos da denúncia.  A decisão, infelizmente, foi unânime (HC 129.896/SP).

O exercício da importante prerrogativa profissional da intangibilidade profissional do advogado, calcada na garantia dada para que, na defesa do seu cliente, não tenha receio de afirmar algo que possa importar na vitória da demanda, há de se dar com destemor, mas com educação.  Não porque juízes, pelo simples exercício da função, sejam uma especial categoria merecedora de um respeito imodesto.  Sim, e principalmente, porque em sociedade, em princípio, todos merecem respeito no tratamento.  A adjetivação da pessoa que decide ao invés da desconstrução dos argumentos intelectuais da sentença é das mais frágeis e pueris opções da retórica forense.  Justamente por isso, os grandes advogados não se utilizam dela.  E não é justificativa para agir diferente generalizar ou fundamentar um comportamento equivocado com base em alguma história envolvendo um juiz incerto, em dia e momento imprecisos, como habitualmente se escuta aqui ou acolá.  Quem lida no foro sempre tem algo a falar, bem ou mal, de algum magistrado, pelo simples fato de que muitos processos (e, portanto, lides, pessoas e interesses) são resolvidos diuturnamente nos diversos fóruns e tribunais do país, num disse-que-me-disse que por vezes beira à fofoca.  A alta exposição do cargo atrai uma inata visibilidade que as pessoas de bom senso sabem nitidamente distinguir.  Espera-se que operadores jurídicos estejam nessa categoria.

A própria Constituição Federal estabelece limites à imunidade do advogado, sob encargo infraconstitucional (art. 133, parte final).  Daí porque o STF, de longa data, afirma que a intangibilidade do advogado não é absoluta e, portanto, dela resta excluído a ofensa pessoal ao juiz do processo, a configurar o delito de injúria (HC 69.085/RJ e HC 86044/PE).  A imunidade é relativa, portanto.  Não só o é porque assim o diz a ordenamento constitucional e infraconstitucional, mas, principalmente, porque a própria vida em sociedade anseia por relações respeitosas entre conviventes.  Se o advogado é essencial à administração da justiça, tem de contribuir com isso, dentro de um regime ético bastante.  Quem demanda isso, aliás, é o próprio Estatuto da Advocacia (parágrafo único do art. 33 da Lei 8.906/94 – que trata, dentre outras coisas, do dever geral de urbanidade).  E precisaria dizer isso para saber que é o que se espera de um profissional?

Independência e combatividade não são significativos de desrespeito ou de ausência de educação, muito menos de móvel para agressões pessoais à honra de quaisquer dos atores processuais.  Há de ser divisado o entendimento intelectual honesto e fundamentado das ocorrências encampadoras de intentos menos nobres.  Para isso, existem mecanismos processuais (exceções de suspeição e/ou impedimento) e disciplinares próprios.

Se não se garantir o mínimo ao magistrado para exercício da sua profissão, cada vez menos heróis e corajosos vestirão a toga.  Não compensa.  E arquemos todos com as consequências que a ausência de independência judicial acarreta.  Oxalá não permita o dia que algum Ministro ou Ministra do STJ ou do STF tenha de ouvir em um processo o que seu voto honesto e fundamentado foi “parcial”, “covarde”, “justiceiro”, “repugnante”, “insidioso”, “inidôneo” e “desonesto”, sem poder tomar qualquer atitude a respeito.  Oxalá não permita o momento em que o causídico que ache normal utilizar da má adjetivação ao prolator da decisão – ao invés da impugnação aos argumentos decisórios – precise de magistrados independentes para decidir suas lides e não os encontre, porque, maltraçadamente parafraseando Mayakovski, Brecht e Niemöller, ninguém disse ou fez nada quando sumiram com eles. Talvez, quando necessitar, lembre-se o quão importante seria a honesta independência que ele subestimou[1].  E, então, reflita que a ausência de cortesia e um sistema jurídico que não assegure a preservação da honra dos seus juízes, não propiciará a honra de ninguém.  Nem de advogados, nem de partes, nem de todas as demais pessoas do povo brasileiro.

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