Livre arbítrio

Ensino religioso no Brasil tangencia o proselitismo

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5 de junho de 2010, 8h37

O exame do tema tem como pressuposto o binômio da Liberdade religiosa e da laicidade do Estado. Este é o ponto de partida.

A liberdade religiosa compreende, por óbvio, a crença e o culto, ambos igualmente livres e, mais do que isto, assegurados, tanto verticalmente quanto ao Estado e o Poder Público, que não pode restringi-los, limitá-los ou condicioná-lo, salvo no concernente à ordem pública; quanto horizontalmente, no que respeita ao dever jurídico de todos e de cada um, de respeitar, tanto uma quanto outra.

Não é demais acentuar que a liberdade de crença não basta, chega até a ser falsa liberdade, eis que ficando no âmbito subjetivo não é perceptível, em princípio, pelo outro. Fundamental sim é a liberdade de culto, de manifestação e de prática concreta da convicção religiosa. Esta é a materialização ou concretização deste direito fundamental.

Tanto é assim que a Constituição Federal a assegura no artigo 5, inciso. VI:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; (…)”

Estamos, entretanto, entre aqueles que buscam a interpretação sistemática do direito, em conformidade com a Constituição, dai porque esse propõe levar em conta outros dispositivos constitucionais que tangenciam o tema.

Ao estabelecer os fundamentos jurídicos do Estado Brasileiro, o constituinte fixa nos incs. II e III do art. 1º, os princípios da cidadania e da dignidade:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: 
(…)

II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana;”

Ressalta mencionar que a dignidade é inerente à condição humana, questioná-la, portanto, pô-la em jogo, eventualmente, é por em questão a dignidade do ser humano, indo de encontro às declarações que se pretendem universais. Há, assim, que preservar sempre e de todas as formas a dignidade da pessoa, até como requisito fundamental da condição humana.

Neste campo, a liberdade de crença e manifestação religiosa é parte indissociável. A dignidade compreende o direito inalienável de ter crença e manifestá-la, exercer, portanto, esta crença, praticando livremente os atos pertinentes, naturalmente que sopesados os valores relativos à ordem e a paz pública, e os direitos dos outros que não a partilhem.

Doutra banda, no que tange à cidadania, caminha-se na direção da integralidade conceitual, onde o cerne está na participação, na inclusão, na integração do indivíduo. Ora bem, neste perfil conceitual mais uma vez temos a participação da liberdade de crença e culto porquanto o homem, cidadão pleno em sua dignidade, é titular inegável deste direito subjetivo, que inclusive é de ordem pública, pois como se referiu antes, oponível ao Estado e aos Poderes Públicos, (verticalmente) e aos demais, individual ou coletivamente (horizontalmente). Goza, dessarte, da intangibilidade pertencente à natureza dos direitos fundamentais.

Em reforço, os incs. VII e VIII do mesmo art. 5º da CF erigem dois institutos importantes. O primeiro é o direito à assistência religiosa nas instituições de internamento, seja pela natureza da atividade, se por restrições compulsórias de liberdade, o que torna possível e viável a prática religiosa, mesmo em condições não absolutamente normais. O segundo é a vedação expressa à restrição de direitos e predicamentos por motivo de crença religiosa, o que mais uma vez tutela a integralidade da cidadania, como se vê:

A concretização deste direito fundamental igualmente se reflete na disciplina jurídica da conformação constitucional da sociedade, como se estampa no Título VIII que trata da Ordem Social, que no art. 193 aponta como objetivo o bem estar. Ora, este conceito aberto de bem-estar significa e compreende a liberdade religiosa e seu exercício, o que passa pela formação, donde exurge o ensino religioso.

Tanto é assim que ao tratar da educação, no Capitulo III do citado Título constitucional, no art. 205:

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”

Nele é estabelecido que visa “o pleno desenvolvimento da pessoa” e a “preparação para o exercício da cidadania”. Ora bem, sem dúvida que o pleno desenvolvimento da pessoa implica no exercício da religião que professem ou pretendam professar, o que implica em conhecê-la minimamente, e, o exercício da plena cidadania cujo preparo busca, igualmente implica na formação básica de educação religiosa.

Esta formação religiosa básica, que o constituinte determinou inclua-se, ainda que parcialmente, na educação básica porque voltada ao desenvolvimento pleno da pessoa e ao exercício da cidadania, cabe também, como conseqüência, à escola, daí contido no parágrafo 1º, do art. 210 da CF:

“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

Parágrafo 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. 
(…) ”

Que prevê o ensino religioso nas escolas públicas, e, homenageando à liberdade, de matrícula facultativa. Inclui-se, assim, em concreto, no campo de atuação do Estado no cumprimento de suas atividades finalísticas. Isto significa que, ao prover a educação básica, o Estado assume o encargo também do ensino religioso, facultando-o aos que o queiram, e, naturalmente, em reforço, resguardando os que não o queiram.

Aqui é importante mencionar que não há conflito entre a laicidade do Estado, imperativo constitucional, e o ensino religioso. Primeiro que não obrigatório, depois porque inserido em princípio constitucional geral da formação integral do ser humano e do cidadão.

Pertine fixar o conteúdo do significado Estado Laico. O laicismo significa que o Estado não tem, não favorece, não grava nem limita nenhuma religião. A nenhum privilegia. O que não se pode olvidar é que esta laicidade não implica nem pode implicar na recusa ou rejeição de nenhuma religião. Isto é, o fato de não haver religião oficial ou oficiosa, não significa em restringir religião. Antes, significa neutralidade, respeito à pluralidade, às diferenças, preservação da riqueza incomparável da diversidade, parte da construção da sociedade pluralista preconizada no inc. I do art. 3 da CF.

Desta forma o Estado laico como é e deve ser, não é incompatível com o ensino religioso nas escolas públicas, isto porque tal integra como já se mencionou, o universo conceitual da formação integral do indivíduo, na completitude da sua dignidade, condição fundamental de humanidade.

Fixada assim a compatibilidade total entre o laicicismo do Estado e o Ensino Religioso, é de ver-se a concretização.

A concretização do instituto do ensino religioso, infra-constitucionalmente dá-se nas suas linhas gerais no art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9394, 6296) como se vê:

“Art. 33 – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para os cofres público, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por seus responsáveis, em caráter:

I – confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável, ministrado por professores e orientadores religiosos preparados e credenciados pelas respectivas igrejas ou entidades religiosas, ou

II – interconfessional, resultante de acordo entre diversas entidades religiosas, que se responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.”

Infere-se da leitura uma ligeira contradição entre o texto da LDB e a CF, no que respeita a divergência quanto aos custos deste ensino. Tal, porém, não é objeto da reflexão que ora se faz.

Para o que se estuda, aqui, temos que a lei prevê dois tipos básicos deste ensino, que podemos classificar como sendo: confessional, quando vinculado à determinada confissão o denominação religiosa; e, interconfessional, nas hipóteses em que se tenha mais de uma desenvolvendo a atividade em comum acordo.

Há que se considerar um aspecto que, em alguns momentos, pode ser objeto de polêmica ou questionamento. Diz respeito ao que suscitam alguns como sendo a hipótese de que o ensino religioso tangencia ao proselitismo.

Enfrentar este aspecto nos põe diante de considerar alguma distinção necessária entre o ensino provido pelo Poder Público e àquele realizado pela Iniciativa Privada.

A propósito, o art.209 da CF, faculta o ensino à Iniciativa Privada também. Daí termos dois sistemas educacionais, o Público, provido pelo Estado, e, o Privado.

Em relação a este último, temos que pode ser realizado de variadas maneiras, destacando-se para o que interessa mais diretamente ao presente estudo, que se pode claramente vislumbrar um ensino laico, desvinculado de qualquer religião, podendo ser mesmo agnóstico (in extremis), e outro, que denominamos de confessional, onde há vinculação direta e explícita, ou mesmo indireta e implícita à instituição religiosa.

No primeiro caso não se pode identificar problemas do ensino religioso, inclusive porque de matrícula facultativa, remanescendo à liberdade de estudantes e responsáveis legais, quando o caso, a possibilidade de escolha.

No segundo caso, o do ensino confessional, há que se fixar a princípio, que a identificação sendo clara e explícita, o direcionamento religioso, no contexto da liberdade e da pluralidade constitucionalmente previstos como já mencionado, implica necessariamente no exercício de um direito de escolha, onde se insere, por óbvio, adesão ou tolerância ao matiz religiosa da instituição. Não há que se cogitar na hipótese de proselitismo nestes casos, como se fora violação via transversa de liberdade individual, (atritando horizontalmente com a o direito fundamental respectivo), exatamente em razão da escolha. Claro que se alguém procura livremente integrar-se ao corpo discente de um colégio religioso, escolhe, elege tal vínculo, eliminando, assim, o pretendido atrito.

Assim, se alguém matricula seus filhos em um colégio religioso, adere as diretrizes pedagógicas da religião, quer a professe, quer não, pois neste último caso, a aceita ou tolera, ou ainda lhe reconhece utilidade e conveniência na formação.

Todavia, o proselitismo fundamentalista, radical, ortodoxo, pode ser mitigado ou mesmo neutralizado, exatamente para que se evite a discussão ou imputação de proselitismo religioso praticado pela Escola.

Cabe fixar-se o significado real do termo, como questão prévia. Examinada a literatura idônea a respeito, adiante transcrita, temos:

Proselitismo, m. Actividade ou afã em fazer prosélitos. Conjunto de prosélitos. (De prosélito).”

"Prosélito, m. Pagão que abraçou a religião judaica. Indivíduo que abraçou uma religião diferente da que tinha. Ext. indivíduo convertido a uma doutrina, a um sistema ou uma idéia. Partidário; sectário (Lat. proselytus) – Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, 10ª edição – Livraria Bertrand Lisboa Portugal, 1947.”

“Proselitismo, s.m. Partidarismo; atividade afanosa em fazer prosélitos; conjunto de prosélitos.

Prosélito, s.m. Pagão que abraçou o judaísmo; indivíduo que abraçou religião diferente da sua; (p. ext) indivíduo convertido a uma doutrina, idéia ou sistema; sectário; partidário; adepto. (Dicionário escolar da Língua Portuguesa, Fename, 11ª edição/3ª tiragem, RJ 1980).”

Proselitismo s.m. 1 atividade ou esforço de fazer prosélitos; catequese, apostolado (trabalho de p. dos partidos políticos) 2 conjunto de prosélitos, ETIM prosélito+ismo; f.hist. 1836 proselytismo. (Houaiss da língua portuguesa, ed. Objetiva, RJ, 2004)”.

“Prosélito s.m. 1 ant. entre os antigos hebreus, indivíduo recém-convertido à religião judaica 2 (1858) pessoa que foi atraída e que se converteu a uma religião, uma seita, uma doutrina ou m partido, um sistema, uma idéia etc.; adepto, sectário, partidário. ETIM gr. Prosélutos, os, on, estrangeiro redicado em um país; no gr. Da Bíblia, recém-convertido; pelo lat. Proselytus que passou do paganismo ao judaísmo. (Houaiss da língua portuguesa, ed. Objetiva, RJ, 2004)”

Proselitismo. [De prosélito+ismo] s.m. 1 Atividade diligente em fazer prosélitos. 2. O conjunto de prosélitos”.

Prosélito. [Do gr. Prosélytos, aquele que se aproxima pelo lat. Tard. Proselytu] s.m. 1. Pagão que abraçou o judaísmo. 2. Indivíduo que abraçou religião diferente da sua 3. P.ext. Indivíduo convertido a uma doutrina, idéia ou sistema; sectário, adepto partidário. (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, ed. Positivo, Marina Baird Ferreira, 3ª edição Revista e Atualizada).”

Como é possível inferir, com certo grau de confiança a partir dos invocados textos de autorizados dicionaristas, proselitismo significa buscar a conversão, perseguir a adesão ao credo religioso, político partidário ou assemelhado, e, fazê-lo com caráter de sectarismo, trazê-los para o seio da organização com hermetismo, de certa forma isolando do restante do universo em que vive ou convive.

Convenhamos que as coisas não se confundem. Ensino religioso significa em divulgar, difundir, apresentar uma doutrina, seus fundamentos, justificação, história, preceitos básicos, conformação organizacional. Em nenhum momento significa atrair adeptos, converter, convencer pessoas à adesão. Antes tem a característica de oferecer opção, possibilitar escolha, até porque a adesão religiosa, a adoção de confissão é algo bem mais complexo e profundo, e se funda na formação de convicções íntimas enraizadas ao longo do tempo, com práticas. Implica em verdadeira escolha do indivíduo.

Por outro lado, tal problema não pode ser colocado se considerarmos a hipótese do ensino confessional, ao qual antes se aludiu.

Resta claro que ao ingressar em escola confessional, o previsível, e desejável até, é que haja convivência e formação dentro de padrões religiosos definidos e claros, e a difusão doutrinária regular e sistemática é mera conseqüência lógica até, jamais proselitismo, que, como vimos antes, tem caráter de influência decisiva de amoldamento de personalidade.

Há, portanto, limite claro entre ensino religioso e proselitismo, e quem ministra um não pratica necessariamente o outro, sendo possível perceber este limite, que existe, ainda que possa ser considerado tênue.

Ministrar o ensino religioso na forma constitucional preconizada consiste principalmente na transmissão de valores éticos fundamentais de especial utilidade e necessidade até, à convivência social. Estes valores sempre têm repercussões religiosas, na medida em que é próprio da religião aprimorar o ser humano, é despertá-lo e estimulá-lo a considerar o transcendente, e esta relação com o transcendente transita pela adoção de valores éticos louváveis, especialmente no que pertine à percepção do outro, do convivente, do próximo.

Valorizar o convívio respeitoso, que conduz a fraternidade, antes do que proselitismo ou exagero de religiosidade, é dar eco a preceito constitucional já referido, concernente a objetivo e fundamento do Estado brasileiro, que é a construção de uma sociedade fraterna e solidária.

Ainda que se entenda a solidariedade como sectarismo, ainda assim é sem dúvida qualquer “sectarismo saudável”, porque contribui para a qualidade humana da vida, para a dignidade da pessoa já que significa também valorizar o ser humano, e isto é incensurável sob qualquer ótica.

A exposição da doutrina não significa necessariamente doutrinar, informar não é forçar convencimento, é dar elementos para a elaboração dele. Se desta exposição idônea resulta adesão, temos efeito decorrente acidental, jamais essencial, porque não é esta a finalidade.

Ademais, como já se demonstrou antes, tal preocupação somente se aplica se considerados o ensino público (de responsabilidade diretamente estatal) e privado laico (provido pela iniciativa privada). Jamais aplicável nos casos de ensino privado confessional.

É razoável cogitar que na escolha do indivíduo, pessoa e famílias, pelo ensino confessional, temos a concordância prévia, fator de escolha, pela formação religiosa, e esta escolha é claro exercício de liberdade, de cidadania, de dignidade, nos exatos termos constitucionalmente previstos.

Exemplificativamente teríamos sectarismo se houve no ensino religioso a obrigatoriedade na assistência ou participação em cultos ou atos propriamente religiosos. A transmissão da doutrina pura e simples, a motivação ética, em nenhum momento podem ser considerados sectarismo, “trabalho denodado pela obtenção de adeptos” como o define a língua.

Não consta de registros que as escolas confessionais estejam “à captura de adeptos” para nenhuma Igreja ou religião, fazendo esforços pela conversão de seus alunos, os quais, não seria excesso repetir, ou professam, ou aceitam a religião ou seus princípios, no caso da escolha por escolas confessionais. Aliás, milita em favor deste entendimento o cuidado que tais escolas têm em explicitar claramente seu caráter confessional, o que retira a possibilidade de sutileza, dissimulação ou transversalidade no transmitir os princípios éticos e religiosos de que são depositárias.

Diversamente, aqui temos é a plenitude da liberdade religiosa, de crença e culto, de expressão e manifestação, igualmente direitos fundamentais constitucionalmente tutelados.

Temos claro, extreme de qualquer dúvida de qualquer natureza, que o ensino religioso tal como o trata a Constituição não é proselitismo, não tem a finalidade de buscar e fazer adeptos, embora contribua significativamente para a formação de convicções, e consequentemente de escolhas religiosas. E ainda, no caso do ensino confessional, em nenhuma hipótese, atendido ao princípio da publicidade, da explicitação da condição, pode ser juridicamente censurado, ao apodo de proselitismo.

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