Decisão certeira

Heranças da ditadura são piores que Lei de Anistia

Autor

2 de junho de 2010, 17h03

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com o objetivo de revisar a Lei da Anistia de 1979, tinha uma única finalidade: permitir a abertura de processos penais e promover a punição por crimes cometidos há mais de 30 anos. Isso foi evitado pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal, com base em minucioso e rigoroso voto do ministro Eros Grau.

Em um momento de crescimento exponencial do número de presos e de seu sofrimento, que provoca constantes protestos nacionais e internacionais, a única coisa que não é necessária no Brasil são mais processos criminais, mais penas e mais presos. A decisão do STF foi adequada, neste sentido, e também deve ser aplaudida. Declarar a nulidade parcial da Lei da Anistia (sob o manto de uma “nova interpretação”) significaria satisfazer instintos de vingança, ainda que disfarçados em um discurso de boas intenções, repleto de referências a “direitos humanos” e à “comunidade internacional”.

Deixemos a política e olhemos para o Direito brasileiro. A Lei da Anistia não foi um ato unilateral, oportunista ou interesseiro. Tampouco foi, como muitos afirmam hoje em dia, uma autoanistia. Constituiu o fundamento jurídico do atual regime constitucional, possibilitando a transição política. Justamente por isso, a Lei da Anistia foi confirmada e ampliada pela Emenda Constitucional 26 de 1985, que convocou a Assembleia Constituinte, autora da Constituição “cidadã” de 1988. Por sua vez, a Constituição de 1988 não questionou nenhum ponto em relação à anistia, ocorrendo o mesmo em suas inúmeras emendas.

Esse histórico nos leva a indagar qual o verdadeiro interesse que levaria hoje à revisão de uma lei que foi produto da vontade política soberana dos criadores da atual Constituição. Será que as boas intenções de alguns ativistas, a pressão de autoridades internacionais e a ameaça de processos perante tribunais internacionais possuem o poder de reescrever a Constituição de 1988 e seus consensos fundamentais? Quem exerce, afinal de contas, o poder constituinte no Brasil? Os representantes do povo ou os que se apresentam como defensores dos direitos humanos mesmo quando desejam mais punição e conflito? O STF, mais uma vez, decidiu que a Constituição se sobrepõe a textos e interesses internacionais e essa é outra razão para aplaudir sua decisão sobre a Lei da Anistia.

Um dos méritos dessa decisão foi desfazer algumas das confusões que reinam no recente debate sobre a Anistia e a denominada “justiça de transição”.

A primeira confusão se dá entre o desejo de vingança e a consolidação da democracia. É uma ilusão pensar que a prisão de alguns militares e policiais em idade avançada pode melhorar a nossa democracia, aumentando a participação popular e diminuindo a atual manipulação política.

Outra confusão, corretamente criticada na decisão do STF, se dá entre o “direito à verdade” e os processos penais. Desfez-se a fantasia de que um tribunal tenha a possibilidade fática e a permissão constitucional-legal de procurar a verdade sobre as causas e as consequências políticas e econômicas do regime ditatorial de 1964. Aqueles que desejam pesquisar o período da ditadura devem estudar o farto material disponível e recorrer ao trabalho dos historiadores, e não confiar no jogo de retórica e de formalismo que costuma marcar os “grandes processos” penais. Em outras palavras, o direito e seus tribunais não são o espaço adequado para esse acerto de contas com o passado.

Há, por fim, confusão entre perdão e anistia. Na verdade, o perdão é assunto pessoal das vítimas de violência e de seus parentes e companheiros de convicção. O Estado e os cidadãos não podem e nem devem perdoar. Devem lembrar, investigar, divulgar a verdade, criticar e reprovar, mesmo quando decidem que a criminalização de certas pessoas não possui justificativa e por isso deixam de punir.

O resto é o nosso presente com os olhos voltados para o futuro. Quem deseja viver em um Brasil melhor e mais “inclusivo” não deve desejar se vingar do passado. Deve se preocupar em eliminar as pesadas heranças da ditadura nas nossas mentes e práticas sociais. Deve se preocupar com as leis autoritárias que estão vigorando, começando pela lei de segurança nacional, a lei sobre a reunião e as múltiplas formas de discriminação das mulheres, incluindo a penalização do aborto. Deve se preocupar com as práticas violentas dos aparelhos repressivos, isto é, com aquilo que o professor Nilo Batista denominou “política criminal com derramamento de sangue” e que continua imperando. Deve se preocupar com o déficit de democratização e com as notórias desigualdades sociais. E certamente não deve procurar bodes expiatórios para um passado que continua presente.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!