Controle estatal

A legitimidade da tutela pública e o cheese salada

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29 de julho de 2010, 14h40

Nada contra a intervenção estatal — em muitos casos ela é necessária, e não acredite em quem lhe disser o contrário, ainda mais no Brasil, lugar em que a fome e a ignorância ainda estão por conhecer Von Mises. Dizer o contrário é, no fundo, acreditar que a motivação ideológica pode fazer terra arrasada da urgência dos fatos e/ou da legítima escolha das pessoas. Mas nem os fatos nem o voto autorizam o Poder Público a virar tutor de gente grande.

Pois é isso o que quer fazer a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ao pretender regular alimentos com gordura, sódio e açúcar. Nos termos de recente ato administrativo da entidade, as empresas alimentícias estariam obrigadas a incluir dizeres na embalagem de seus produtos afirmando que, digamos, cheeseburger é gorduroso e faz mal à saúde; ou que biscoito amanteigado, como já intuíram milhares de revistas de fitness, talvez não contribua ao bem-estar do cidadão politicamente correto do século XXI, esse bom menino cronicamente inviável.

Há problemas na proposta. E os mais importantes não são sequer técnico-jurídicos, tampouco dizem respeito, apenas, ao caso da Anvisa. Mas comecemos por eles e por ela.

Será que basta uma habilitação legal genérica, ou, quem sabe, uma construção doutrinária baseada no exercício do poder de polícia, para autorizar tal tipo de intervenção na livre iniciativa? Não parece. No caso dos cigarros, em que a percepção social do risco inerente ao produto é maior e arraigada há muito tempo, não bastou habilitação legal genérica. Foi preciso artigo de lei, sem falar em dispositivo constitucional específico (o art. 220, § 4, da Constituição). Por que, para colocar um feto morto numa carteira de cigarros, é necessário artigo de lei, mas para alertar que biscoito de polvilho engorda basta autorização implícita?

A intervenção, que no primeiro caso, diga-se, por vezes chega a ultrapassar o cunho informativo previsto na legislação do tabaco — a informação acaba ficando escondida numa imagética de terror, numa política de gerar repulsa quanto ao produto, e não de informar a respeito de condutas —, no segundo caso beira a desnecessidade. Assim, para justificá-la, há que existir o debate público (muito do) presumidamente contido no processo legislativo. E nem se alegue que se trata de agência reguladora, entidade com poder normativo.

Possuir poder normativo é uma coisa; exercê-lo em hipóteses em que, pela gravidade econômica e social da questão, o processo legislativo é imposição constitucional, é outra.

Há alguns anos, o prefeito do Rio de Janeiro pretendeu substituir alimentos gordurosos nas escolas públicas. Atitude legítima. Assim como é legítimo que um pai opte por alimentação saudável para seus filhos. São escolhas existenciais válidas e, como sói acontecer, personalíssimas. Mas não parece legítimo que o Poder Público imponha advertência da existência de gordura em alimentos. O que difere? O caráter impositivo e heterônomo; a diferença entre os destinatários; o veículo formal da imposição; a ausência de habilitação constitucional; em muitos casos, a provável desnecessidade prática da advertência; e, no limite, o conteúdo superegóico e tutor desse tipo de intervenção, sendo certo que há outras formas de se obter resultados até melhores — por exemplo, com a massificação de campanhas públicas — gerando menos interferência em direitos individuais.

Aliás, impor uma obrigação à iniciativa privada é, ninguém duvida, opção das mais fáceis ao Poder Público. Talvez seja solução fácil demais para ser muito boa. Dizia Oscar Wilde que raramente a verdade é pura, e nunca é simples. Ao invés de investir em campanhas públicas e de chamar o mercado a uma ação concertada, o que se faz? Impõe-se uma obrigação de fazer às empresas, numa espécie de externalização capenga, e a custo zero, dos deveres públicos. Não parece que o Poder Público deva agir assim: transferindo responsabilidades, hiper-simplificando problemas muitíssimo complexos e acreditando que administrar é encontrar culpados para sair de herói.

E há de se considerar que, em certo sentido, o próprio mercado alimentício já se auto-regulou: a indústria dos produtos “sem gordura trans” e “com baixos níveis de sódio”. O tantas vezes rude propósito comercial de incrementar lucros pode gerar benefícios públicos que o muitas vezes insincero propósito estatal de “atender ao bem comum” jamais consegue. É dessas ironias da vida adulta, em que se passa por muitas matizes de cinza até se chegar ao inteiramente preto ou branco.

Mas a questão é mais complexa do que ressaltar a maior eficiência da auto-regulação: a própria existência de um mercado de comidas light, diet ou orgânicas denota que a maioria das pessoas já reconhece que há alimentos mais ou menos nutritivos, mais ou menos saudáveis, mas opta por legitimamente consumir o que melhor lhe cabe.

A intervenção do Estado, que não é, em si mesma e em todos os casos, um mal, passa a sê-lo quando ignora a autonomia moral do indivíduo e trata cidadãos, pais e responsáveis como uma grande massa de agentes relativamente incapazes, sempre prontos a serem instruídos, corrigidos ou orientados a um “melhor caminho”.

Repita-se: o Estado pode ser maior ou menor, conforme ditem as contingências e o referende a vontade popular por intermédio das urnas. Só não pode ser um Estado-babá; um Estado que desacredite na autonomia moral do indivíduo e o desestimule a buscar as melhores opções que ele, mas só ele, poderá averiguar e encontrar. Mais do que possivelmente inconstitucional, a regulação da Anvisa é, na essência, um mau sinal. Ela afirma que o Estado, a pretexto de informar, deve tutelar escolhas. Nem estou investindo, aqui, contra o controle da publicidade destinada ao público infantil — há quem diga que a Anvisa pressupõe uma hiper-vulnerabilidade do público infantil, que, na verdade, e ainda mais hoje, na era da informação, nunca existiu.

Pois vá lá, são crianças. Nem estou criticando o controle a respeito da propaganda de álcool. Afinal, o álcool, e isso é razoavelmente aceito por pessoas de boa fé, é capaz de incrementar acidentes de trânsito. Nem contra a polêmica imposição de contrapropaganda nos maços de cigarro, que, hoje, aliás, chega às raias da violação à livre iniciativa. São, ora pois, cigarros. Mas acho que, chegando aos hambúrgueres, eles foram longe demais.

Enquanto discutimos Estado Social, Estado Liberal ou Social-Democracia, ganha fôlego, às escondidas, uma idéia de Estado que se vê como consciência postiça de nós mesmos. Doravante não devemos enxergar este debate apenas como uma contenda a respeito do colesterol ruim: escondida por entre os açúcares também está uma questão de autonomia pessoal.

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