Passivo trabalhista

Administração é responsável por débitos em licitação

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27 de julho de 2010, 15h16

Em relação aos entes públicos, o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu que os serviços prestados por terceiros devem ser contratados mediante processo de licitação. O artigo 71 da Lei 8.666/93 fixou que, nestes casos, a responsabilidade do empregador pelos débitos trabalhistas não seria transferida para a Administração Pública.

Nos últimos anos, em decorrência de significativas alterações que vem ocorrendo na atuação dos entes estatais, esse tipo de contratação tem se intensificado, notadamente em relação às atividades meio da Administração. A questão trazida para o Judiciário trabalhista surge quando o empregador deixa de pagar o empregado e de recolher as contribuições fundiárias e previdenciárias .

Neste caso, o disposto no artigo 71 supra referido poderia ser considerado salvo-conduto para afastar qualquer responsabilidade do ente público?

Provocado por um número significativo de processos em que esta situação jurídica é questionada, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula 331 que fixou dois parâmetros distintos :

A- Face às exigências previstas no inciso II do artigo 37 da CF/88, quanto à necessidade de prévia aprovação em concurso público, estabeleceu que a “contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional”, preservando a não transferência prevista no artigo 71 da Lei 8.666/93.

B- Atento à necessidade de conferir efetividade à legislação trabalhista, fixou o entendimento de que o “inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços”, o que exige a observância do benefício de ordem, mantendo assim essa mesma diretriz legal.

Entretanto, tal orientação jurisprudencial vem sendo objeto de reiterados questionamentos junto ao STF, tendo o ministro Marco Aurélio Mello manifestado divergência por ocasião do julgamento da ADC 16/ DF e deferido liminar na Reclamação 9.016, ajuizada pelo estado de Rondônia, por entender que a decisão judicial que adota a Súmula trabalhista teria exarado manifestação implícita de inconstitucionalidade do artigo 71 da Lei 8.666/93, sem observar a cláusula de reserva de plenário prevista no artigo 97 da CF/88, assim desrespeitando a Súmula Vinculante 10.

O sentido da supremacia do interesse público sobre o particular.
Uma das argumentações contra a diretriz adotada pela Súmula 331 consiste na alegação de que o interesse particular de um trabalhador, ou de um grupo de trabalhadores, não poderia prevalecer sobre o interesse público, de modo que a atribuição de responsabilidade subsidiária ao ente público, quando houve a contratação dos serviços mediante licitação, violaria o princípio da legalidade.

Será?

Maria Sylvia Zanella di Pietro[1] explica que os “dois princípios fundamentais e que decorrem da assinalada bipolaridade do Direito Administrativo — liberdade do indivíduo e autoridade da Administração — são os princípios da legalidade e da supremacia do interesse público sobre o particular (…) essenciais, porque, a partir deles, constroem-se todos os demais”.

Entretanto, é interessante observar como a doutrinadora descola a ideia de interesse particular do conceito de direitos fundamentais. Com efeito, ao discorrer sobre as tendências atuais do Direito administrativo brasileiro, ressalta que entre as inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988 está o “alargamento do princípio da legalidade (para abranger não só a lei, mas também princípios e valores)”, de modo que o Estado Democrático de Direito passa a vincular a lei aos ideais de justiça, submetendo o “Estado não apenas à lei em sentido puramente formal, mas ao Direito, abrangendo todos os valores inseridos expressa ou implicitamente na Constituição,” notadamente os que foram albergados nos artigos 1º a 4º, entre os quais se destacam a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e da livre iniciativa, a moralidade, publicidade e impessoalidade.

Destarte, a discricionariedade administrativa será por estes limitada “o que significa a ampliação do controle judicial, que deverá abranger a validade dos atos administrativos não só diante da lei, mas também perante o Direito”. Portanto, o princípio da legalidade, referido no inciso II do artigo 5º da CF/88, deve ser entendido como um conjunto de leis, valores e princípios agasalhados também nos direitos fundamentais, que estabelecem limites à atuação administrativa, exigindo submissão ao Estado de Direito.

Ao discorrer sobre os direitos fundamentais na Carta de 1988, Gilmar Ferreira Mendes[2] enfatiza que a “colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhe significado especial (…) ressalta a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância”. Explica que os direitos fundamentais ultrapassam a órbita subjetiva, alçando uma dimensão maior na perspectiva da ordem constitucional objetiva, assim formando a base do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito. Trazendo à colação doutrina desenvolvida por Jellinek,quanto a Teoria dos quatro “status”, ressalta que os direitos fundamentais cumprem diferentes funções na ordem jurídica. Não se restringem mais à concepção tradicional de direitos de defesa, consagrando também direitos “que tanto podem referir-se a prestações fáticas de índole positiva (faktische positive Handlungen) quanto a prestações normativas de índole positiva (normative Handlungen)” por parte dos entes públicos.

Explica que na condição de direito de defesa impõem ao Estado o “dever de agir contra terceiros”, resguardando o indivíduo também “contra abusos de entidades particulares, de forma que se cuida de garantir a livre manifestação da personalidade, assegurando uma esfera de autodeterminação do indivíduo”. Ademais, “reconduzidos ao status positivus de Jellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que esse se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material”.

Com base na doutrina e jurisprudência da Corte Constitucional Alemã, explica Gilmar Mendes que o dever de proteção abrange também deveres de segurança que impõem ao Estado a obrigação de “proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas” e o dever do Estado “atuar com objetivo de evitar riscos” para o cidadão, de modo que a inobservância do dever de proteção configura lesão a direito que a Carta Constitucional reputou fundamental.

Portanto, a definição do âmbito de abrangência do direito de proteção exige um “renovado e constante esforço hermenêutico”, concluindo que, face a sua importância como viga de sustentação da Carta Política de 1988, os direitos fundamentais “somente podem ser limitados por expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição”.[3]

Neste contexto, as lúcidas observações de Luigi Ferrajoli[4] ao rejeitar também a análise da questão sob o estereótipo da maioria/minoria, ressaltando que os direitos fundamentais “correspondem às faculdades ou expectativas de todos os que definem as conotações substanciais da democracia e que são constitucionalmente subtraídos ao arbítrio da maioria como limites ou vínculos indissociáveis das decisões governamentais”, porque o reconhecimento jurídico desses direitos é intrínseco à condição de cidadão/sujeito, assim entendida como a superação da situação de súdito/objeto de dominação.

Na mesma senda trilhou Luís Roberto Barroso[5] ao enfatizar que o “o público não se confunde com o estatal” pois atuam em planos diversos, chamando atenção para a importância de “reavivar uma distinção fundamental e pouco explorada”, que divide o conceito de interesse público entre primário e secundário. Explica que o interesse público primário é a razão de ser do Estado e está sintetizado nos fins que lhe cabe promover: justiça, segurança e bem-estar social, enquanto o interesse público secundário corresponderia ao interesse estatal da “pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica — quer se trate de União, quer se trate de Estado-membro, do Município ou das suas autarquias.

Sem afastar a importância do interesse estatal secundário, pondera que “em nenhuma hipótese será legítimo sacrificar o interesse público primário com o objetivo de satisfazer o secundário”. Ressalta, ademais, que num “Estado democrático de direito, assinalado pela centralidade e supremacia da Constituição, a realização do interesse público primário muitas vezes se consuma apenas pela satisfação de determinados interesses privados. Se tais interesses foram protegidos por uma cláusula de direito fundamental” não remanesce nenhuma dúvida, pois configurados na constituição como “formas de realizar o interesse público, mesmo quando o beneficiário for uma única pessoa privada. Não é por outra razão que os direitos fundamentais, pelo menos na extensão de seu núcleo essencial, são indisponíveis”. Assim, o interesse público secundário- i.e. o da pessoa jurídica de direito público, o do erário- jamais desfrutará de supremacia, condição ostentada pelo interesse público primário, por consubstanciar os valores fundamentais que devem ser preservados, notadamente o princípio da dignidade a pessoa humana, conceito de “corte antiutilitarista, pretende evitar que o ser humano seja reduzido á condição de meio para a realização de metas coletivas” (grifos acrescentados).

Ao analisar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais sob uma dimensão objetiva, Virgílio Afonso da Silva[6] destaca que “deve ser definido com base no significado deste direito para a vida social como um todo. Isso significa dizer que proteger o conteúdo essencial de um direito fundamental implica proibir restrições à eficácia deste direito que o tornem sem significado para todos os indivíduos ou boa parte deles.”

Nesta perspectiva, exigir que a Administração Pública fiscalize o cumprimento da legislação trabalhista pelo empregador contratado, não atende apenas ao direito de um indivíduo ou de um grupo de trabalhadores, mas visa proteger o conteúdo essencial de um direito fundamental e seu significado como valor fundante da república brasileira, nos termos estabelecidos pelo inciso IV do artigo 1º da CF/88.

As ponderações de Daniel Sarmento [7] também caminham nesta direção ao destacar que uma das consequências mais importantes da “dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento de sua eficácia irradiante. Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. Através dela, os direitos fundamentais deixam de ser concebidos como meros limites para o ordenamento e se convertem no norte do direito positivo, no seu verdadeiro eixo gravitacional” o que implica numa filtragem constitucional, na reinterpretação dos institutos legais “sob uma ótica constitucional”. Conclui que “a dimensão objetiva dos direitos fundamentais prende-se ao reconhecimento de que neles estão contidos os valores mais importantes de uma comunidade política” que penetram “por todo o ordenamento jurídico, modelando suas normas e institutos e impondo ao Estado deveres de proteção. Assim, já não basta que o Estado se abstenha de violar os direitos humanos. É preciso que ele aja concretamente para protegê-los de agressões e ameaças de terceiros, inclusive daquelas provenientes dos atores privados.”

Tais reflexões trazem subsídios importantes para a análise da controvérsia.

Se o ente público efetua contratação para a realização de um serviço, só porque tal se deu através de um processo licitatório estaria desobrigado de fiscalizar e exigir que este empregador cumpra suas obrigações trabalhistas, fundiárias e previdenciárias?

Se o Estado de Direito mantém a estrutura de uma Justiça Especializada Trabalhista como garantidora, por que iria permitir que um ente público se mantivesse inerte, precisamente quando a lesão é praticada contra aquele trabalhador que atua em seu benefício?

O marco normativo exige que o ente público acompanhe e fiscalize se o empregador contratado está cumprindo as obrigações patronais trabalhistas, fundiárias e previdenciárias, a fim de preservar o conteúdo essencial dos direitos trabalhistas instituídos como fundamentais pela Carta Política de 1988.

Com efeito, num Estado Democrático de Direito, como sustentar que a Administração Pública aufira proveito dos serviços de um trabalhador, mas lave as mãos em relação aos seus direitos trabalhistas, que detém natureza alimentar, efetuando o pagamento ao empregador sem fiscalizar se houve o efetivo cumprimento da norma fundamental prevista no artigo 7º da CF/88, e fique tudo por isso mesmo?

Acaso o artigo 71 da Lei 8.666/93 desobriga a Administração Pública de respeitar os direitos fundamentais daquele que presta serviços em seu benefício?

O artigo 71 da Lei 8.666/93
Vejamos o que diz o texto legal.

Estabelece o caput do artigo 71 da Lei 8.666/93 que:

O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

E o parágrafo 1º:

A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o registro de imóveis.

Acertadamente dispôs o preceito legal, pois cabe mesmo ao contratado a responsabilidade pelos encargos trabalhistas em decorrência de sua situação de empregador, condição que não se transfere ao ente público, porque nestes casos a Administração Pública está constitucionalmente impedida pelo inciso II do artigo 37 da CF/88 de atuar como empregadora, conforme observado pela Súmula 331 do C. TST ao dispor no inciso II:

A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37 inciso II da CF/88).

Agora, situação jurídica diversa é a referida pelo inciso IV da mesma Súmula, ao tratar da responsabilidade da Administração Pública pela omissão e negligência, quando deixa de exigir e fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista pelo empregador contratado, fixando que:

O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador,implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei 8.666/93).

Este é o texto que tem sido objeto de vários questionamentos perante o STF, como passaremos a examinar.

Inconstitucionalidade – A Súmula Vinculante 10
O ministro Marco Aurélio Mello abriu divergência por ocasião do julgamento da ADC 16/ DF (ainda não concluído). Ao apreciar a Reclamação 9.016 deferiu liminar, asseverando que a decisão proferida com esteio nesta diretriz jurisprudencial teria incorrido em declaração implícita de inconstitucionalidade do artigo 71 da Lei 8.666/93, sem observância da cláusula de reserva de plenário, com flagrante violação da Súmula Vinculante 10, que estabeleceu:

“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

Assim, é preciso analisar primeiramente a seguinte questão:

A diretriz jurisprudencial estabelecida no inciso IV da Súmula 331 do TST afastou a incidência do disposto no artigo 71 da Lei 8.666/93?

Penso que não.

Em nenhum momento a constitucionalidade do referido dispositivo legal foi questionada, nem mesmo de forma implícita. Pelo contrário, explicitamente se partiu do pressuposto de sua constitucionalidade, como demonstra o verbete sumular que faz menção expressa ao texto legal em seu inciso IV.

Ademais, a diretriz jurisprudencial trabalhista não estabeleceu a transferência dos encargos patronais do empregador para a Administração. Pelo contrário, não houve transferência de responsabilidade, pois o empregador permanece como o principal responsável pelo adimplemento da obrigação, de modo que aplicação do disposto no artigo 71 da Lei 8.666/93 foi observada também pelo inciso IV deste verbete.

Por outro lado, não se pode desconsiderar que a Lei 8.666/93 teve o objetivo de instituir normas para licitações/contratos da Administração Pública e não para disciplinar a responsabilidade advinda da conduta omissiva e negligente dos entes estatais.

Ao estudar o instituto da licitação, Vladimir da Rocha França ressalta [8] que em relação a matéria os “princípios constitucionais não podem ser compreendidos como compartimentos estanques, tal como gavetas num armário. Tais normas jurídicas ganham maior intelecção e efetividade quando são conjugadas, no esforço de conferir harmonia, coerência e racionalidade à aplicação das regras do sistema do direito positivo. Nas licitações, os princípios jurídicos funcionam como bússolas na concretização das regras jurídicas que disciplinam a matéria no plano constitucional e infraconstitucional. Cabe ao gestor público justamente empregar esses preceitos fundamentais para otimizar a seleção da melhor proposta e a preservação da garantia da isonomia” evitando que haja a “violação a um princípio jurídico durante a formação ou desenvolvimento da licitação”.

Ora, o artigo 71 da Lei 8.666/93 não isentou a Administração Pública do dever de acompanhar e fiscalizar a atuação da empresa contratada quanto ao efetivo cumprimento das obrigações legais trabalhistas.

Nem pode ser interpretado como permissivo legal que possibilite a adoção deconduta negligente por parte do ente público, que permite a violação de princípios jurídicos e cause lesão aos direitos fundamentais do trabalhador, que presta serviços em seu benefício.

A responsabilidade subsidiária não transfere à Administração Pública a responsabilidade que é própria do empregador, tendo em vista que em seu conceito está implícita a observância do benefício de ordem e a possibilidade de ação regressiva.

Destarte, a interpretação sistemática do disposto no caput do artigo 71 e seus parágrafos respalda a fixação da responsabilidade subsidiária da Administração Pública, nos termos estabelecidos na Súmula 331 pelo Tribunal Superior do Trabalho,que assim atua no legítimo exercício de sua competência constitucional exclusiva (art. 111 e seguintes da CF/88).

Interessante analisar as razões de decidir exaradas no voto proferido pelo ministro César Peluso no julgamento da ADC 16/ DF, em que o Distrito Federal busca a declaração de constitucionalidade do artigo 71 da Lei 8.666/93 em face da aplicação da referida Súmula. Ponderou este Relator que não havia sentido em apreciar o pedido, pois a presunção de constitucionalidade do referido dispositivo não estava em cheque, sendo que além de assegurar a satisfação dos débitos trabalhistas, mediante a responsabilidade subsidiária do ente público tomador de serviço, a Súmula do TST preservou o constante do parágrafo 1º do artigo 71 da Lei 8.666/93, cuja menção expressa consignou no referido verbete, concluindo não ter sido demonstrada a existência de controvérsia sobre a constitucionalidade da norma. O Ministro Marco Aurélio apresentou divergência e o julgamento foi suspenso por pedido de vista do então Ministro Menezes Direito.

A aferição dos limites de aplicação da lei implica no controle difuso de constitucionalidade?
Ante tal panorama, o exame da questão exige que seja apreciado o seguinte ponto nodular da controvérsia:

A aferição dos limites de aplicação de um determinado dispositivo legal implica em controle difuso de constitucionalidade?

Quando os Tribunais do Trabalho procedem à interpretação sistemática, a fim de aferir os limites de aplicação de diferentes dispositivos legais, tal configura, por si só, controle de constitucionalidade?

Ao apreciar a Reclamação 6.665/2008, apresentada em relação a decisão proferida pelo TRT da 2ª Região no P. 01663.2005.291.02.00-1, o ministro Joaquim Barbosa julgou improcedente o pedido, ponderando:

A simples ausência de aplicação de uma dada norma jurídica ao caso sob exame não caracteriza, tão-somente por si, violação da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. Por exemplo, é possível que dada norma não sirva para desate do quadro submetido ao crivo jurisdicional pura e simplesmente porque não há subsunção. Para caracterização da ofensa ao artigo 97 da Constituição, que estabelece a reserva de plenário (full bench) para declaração de inconstitucionalidade, é necessário que a causa seja decidida sob critérios diversos, alegadamente extraídos da Constituição, de modo a levar ao afastamento implícito ou explícito da norma por incompatibilidade com a Constituição.

Ademais, é importante lembrar que não se exige a reserva estabelecida no artigo 97 da constituição sempre que o Plenário, ou órgão equivalente do Tribunal já tiver decidido a questão.

(…) é importante salientar que a Súmula 10 desta Corte não se refere às exceções à observância da cláusula de reserva de plenário ( art. 97 da CF/88). A súmula explicita e veda uma forma indireta de burla ao disposto no artigo 97 da CF/88. Desse modo, permanecem hígidas no sistema as exceções legalmente previstas à cláusula de reserva de plenário ( RCL 7.874, Rel Min Joaquim Barbosa, decisão monocrática DJ de 23.04.2009).

Conforme ressaltado, a interpretação sistemática, ínsita a todo julgamento, efetuada com o escopo de aferir qual a norma apta a possibilitar a subsunção necessária para obter a solução de determinada controvérsia, não configura controle difuso de constitucionalidade dos demais dispositivos legais, que não se destinavam a disciplinar a situação jurídica em conflito.

A Lei federal 8.666/93, promulgada para estabelecer “normas gerais sobre licitações e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações e locações no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, disciplina as relações entre licitante e licitado, mas nada dispõe sobre a responsabilização da administração Pública pela conduta negligente que viole direitos fundamentais do trabalhador que atua em seu benefício, de modo que não há como ampliar sua aplicação à situação jurídica diversa daquela que visou regular.

Ademais, como bem pondera Maria Sylvia[9], o procedimento licitatório decorre do “princípio da indisponibilidade do interesse público” e se constitui numa “restrição à liberdade administrativa na escolha do contratante; a Administração terá que escolher aquele cuja proposta melhor atenda ao interesse público”. Deste modo, desatende aos princípios da moralidade e probidade, referidos nos artigos 89 a 99 da lei 8.666/93, a Administração Pública que deixa o contratante atuar sem fiscalização, permitindo que descumpra a legislação trabalhista mesmo recebendo recursos públicos para tanto, assim lesando também o interesse público.

A diretriz jurisprudencial fixada pela Súmula 331 não trata da constitucionalidade, ou não, do artigo 71 da Lei 8.666/93, mas da sua observância nos termos em que foi estabelecido, o que afasta a interpretação ampliativa e aplicação do referido dispositivo a situação jurídica que não visou disciplinar, como a referente à responsabilidade do ente público que paga sem fiscalizar se as obrigações patronais trabalhistas do empregador contratado foram satisfeitas, adotando flagrante conduta negligente, que viola os direitos trabalhistas.

Neste contexto, o marco normativo que permite a subsunção do fato (conduta lesiva por omissão da Administração Publica) está posto no artigo 186 do Código Civil ao dispor:

Art. 186- Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,comete ato ilícito.

Tal imputação não caracteriza a transferência vedada pelo artigo 71 da Lei 8.666/93, porque o empregador continua a deter com exclusividade a responsabilidade patronal contratual. A responsabilidade da Administração Pública deriva de fato gerador diverso, ex lege, tendo a Súmula 331 observado tal disposição legal ao atribuiu-lhe a conotação de subsidiária, em que é de rigor a observância do benefício de ordem e a possibilidade de ação regressiva, de sorte que se trata de uma questão de subsunção do fato à norma, uma questão de legalidade, que em nenhum momento resvalou para o exame da constitucionalidade, o que afasta a aplicação da exigência contida na Súmula Vinculante 10.

O balizamento de conduta. Boa governança. Accountability
Como anteriormente ressaltado, o argumento de que a responsabilidade subsidiária do Estado não poderia subsistir, pois o interesse público tem supremacia sobre o particular, da forma como foi construído não se sustenta, por se revelar falacioso.

Com efeito, não se trata de fazer valer o direito de um indivíduo ou de um grupo de empregados, mas de preservar o conteúdo essencial dos direitos trabalhistas, cujo cumprimento se reveste de inequívoco interesse público por se tratar de norma fundamental, assim instituída pela Lei Maior em seu artigo 7º.

Ademais, como considerar que uma conduta omissa e negligente por parte da Administração Pública possa ser considerada preservadora do interesse público ?

Os preceitos infraconstitucionais que disciplinam a licitação se referem à situação jurídica diversa e não afastam o interesse público, nos termos em que foi conceituado pela Constituição quanto ao respeito ao marco normativo trabalhista, estabelecido sob a matriz fixada nos princípios fundantes estabelecidos nos incisos III e IV do artigo 1º da Constituição Federal de 1988.

Como bem pondera Maria Sylvia Zanella di Pietro[10] a “preocupação com a proteção do interesse público nasceu com o Estado Social. E não nasceu para proteger um interesse público único, indeterminado, difícil ou impossível de definir-se” mas “para proteger os vários interesses das várias camadas sociais.” Conhecido também como princípio da finalidade pública “vincula a autoridade administrativa em toda a sua atuação” e tem o objetivo primordial de atender ao bem-estar coletivo. Assim, se a lei concede à Administração o poder/dever de processar uma licitação, tal expediente não pode ser usado como salvo conduto para burlar as leis trabalhistas, pois tal configura abuso de poder que viola o interesse público.

Neste sentido as lúcidas reflexões de Celso Antonio Bandeira de Mello[11] ao ressaltar que “sendo interesses qualificados como próprios da coletividade — internos ao setor público — não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los- o que é também um dever- na estrita observância do que dispuser a intentio legis”, concluindo que a Administração Pública tem natureza instrumental, não detendo o Juízo de disponibilidade para escolher quais dos interesses públicos confiados a sua guarda e realização deverão ser observados, ou não, sob pena de ter que responder pela omissão.

O nexo causal justificador da responsabilização é a conduta omissiva e negligente do ente público, que se beneficia da força de trabalho de alguém e remunera seu empregador sem fiscalizar se este cumpriu com suas obrigações trabalhistas. Destarte, a construção jurisprudencial contida no inciso IV da Sumula 331 foi explicitada secundum legem, escorada no artigo 186 do Código Civil, aplicável por compatível com o Direito Trabalhista, restando plenamente observado o princípio da legalidade, tendo o Tribunal Superior do Trabalho assim atuado no desempenho de sua função constitucional, com o escopo de proceder à necessária uniformização da jurisprudência.

Mas não é só.

Produz efeito que se espraia por toda a sociedade como balizador de conduta, ao sinalizar que a Administração Pública deve proceder com mais cautela, fiscalizando e acompanhando a prestação de serviços em prol do interesse público, dever legal que não pode ser afastado pelo simples fato da contratação ter ocorrido mediante processo licitatório.

Neste sentido, trago novamente à colação as reflexões de Celso Antonio Bandeira de Mello, ao pontuar que o princípio da finalidade está encartado na legalidade, pois não se “compreende uma lei, não se entende uma norma, sem entender qual é o seu objetivo. Donde não se aplica uma lei corretamente se o ato de aplicação carecer de sintonia com o escopo por ela visado. Implementar uma regra de direito não é homenagear exteriormente sua dicção, mas dar satisfação a seus propósitos. Logo, só se cumpre a legalidade quando se atende a sua finalidade. A atividade administrativa desencontrada com o fim legal é inválida e, por isso, judicialmente censurável”.

O processo licitatório tem a finalidade de escolher a melhor proposta em igualdade de condições, em prol do interesse público.

A responsabilização da Administração pelo acompanhamento e fiscalização dos serviços contratados emerge, portanto, da própria finalidade da lei. Ademais, se reveste de inequívoco efeito moralizador dos procedimentos administrativos, conferindo-lhes maior lisura. Com efeito, cientes de que haverá efetiva fiscalização pelo ente público, os interessados só participarão de um processo licitatório se tiverem condições de honrar a proposta apresentada em sua integralidade, o que inclui o cumprimento das consequentes obrigações trabalhistas.

O argumento de que a responsabilidade subsidiária do Estado não poderia subsistir em tais casos, pois o interesse público tem supremacia sobre o particular, também se revela insustentável por ser antitético.

Como vislumbrar que está sendo priorizada a supremacia do interesse público, se houve a escolha de proposta menos vantajosa por apresentar números e valores irreais, já contando com o posterior inadimplemento das obrigações trabalhistas, assim viciando o próprio processo licitatório ao elidir a igualdade de condições ?

Como sustentar que está sendo atendido o interesse publico, quando tal situação via de regra leva a uma paralisação dos serviços pelos trabalhadores que deixam de receber seus direitos, mesmo quando o empregador já foi pago pela Administração com recursos públicos ?

Ora, é precisamente o contrário!

A responsabilização subsidiária do Estado visa preservar o interesse público sobre interesses outros, nem sempre confessáveis, daqueles que participam de um processo licitatório apresentando propostas fictícias, já contando com futura inadimplência de certas obrigações. Trata-se de cumprir o princípio da legalidade e fazer valer a finalidade do ordenamento jurídico, evitando que a licitação seja usada para auferir vantagens e burlar a legislação trabalhista pelo contratante, causando pesado ônus para a sociedade como um todo, que arcará com os custos da máquina judiciária a ser movimentada pelos trabalhadores para o recebimento de seus direitos, além dos prejuízos causados pela falta de recolhimento das contribuições devidas.

O ordenamento jurídico do país não está fatiado em comportamentos estanques. As leis se articulam como vasos comunicantes, tendo por escopo o balizamento da conduta social . Ao exigir que o ente público fiscalize a atuação do contratado, quanto ao cumprimento das obrigações trabalhistas, a lei está sinalizando que o processo licitatório é prá valer e não uma peça de ficção. Está evidenciando que o Estado que exige o cumprimento da lei trabalhista através da Justiça do Trabalho é o mesmo Estado que fiscaliza tal cumprimento na prestação de serviços por parte de terceiros, ou seja, o padrão de conduta exigível dos cidadãos é o mesmo, conferindo maior legitimidade ao próprio processo licitatório, por sinalizar aos participantes que atuará durante a prestação de serviços para evitar que tais parâmetros sejam infringidos de forma transversa.

A maioridade do país, como nação, exige que tais marcos paradigmáticos sejam respeitados por todos, sem excluir a Administração Pública, que detém responsabilidade fiscalizadora durante a prestação dos serviços contratados.

É dizer, a lei não vale só para os outros, mas para a Administração Pública também, e com muito mais razão. O ordenamento jurídico não ampara a interpretação que possibilita a negligência e omissão do próprio ente público, reduzindo-o a triste figura de acobertador da conduta ilícita do empregador contratado.

Com efeito, qual o fundamento jurídico para sustentar que ao atuar como tomador o ente público estaria dispensado de exigir e fiscalizar o efetivo cumprimento da lei trabalhista, se a força de trabalho foi prestada em seu benefício?

Como admitir que teria obrigação de ressarcir o dano provocado por ato ilícito, praticado contra terceiros, conforme prevê o parágrafo 6º do artigo 37 da CF/88, mas estaria desobrigado de responder pelo ilícito praticado contra um trabalhador, de cuja atuação auferiu proveito?

Com percuciência pondera Maria Sylvia [12] que quando “a administração pública recorre a terceiros para a execução de tarefas que ela mesma pode executar, ela está terceirizando. Embora se trate de contratação que obedece às regras e princípios do direito administrativo, a terceirização acaba, muitas vezes,por implicar burla aos direitos sociais do trabalhador da empresa prestadora do serviço, o que coloca a Administração Pública sob a égide do direito do trabalho. Daí a necessidade de sujeitar-se às decisões normativas da Justiça do Trabalho.”

Luís Roberto Barroso[13] caminha nesta mesma direção ao ressaltar que a cabe à Constituição de um Estado democrático “veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, que envolvem a garantia dos direitos fundamentais.”

Neste contexto, o fato de ter ocorrido um processo de licitação isenta a Administração Pública de responder pelos atos ilícitos praticados?

Poderia ser utilizado o artigo 71 da Lei 8.666/93 como salvo-conduto para justificar conduta negligente e respaldar a irresponsabilidade da Administração Pública, quando todo o ordenamento jurídico aponta em sentido inverso?

Ao aplicar as balizas reitoras explicitadas no artigo 186 do Código Civil e 37 da CF/88, notadamente quanto à observância dos princípios da finalidade como informador da legalidade, moralidade, publicidade e eficiência, exige-se que Administração Pública atente para as regras da boa governança, para a observância da accountability, conduta que irradiará seus efeitos por todo o tecido social, estimulando a ética concorrencial no processo licitatório, o que redundará na prestação de um serviço público de melhor qualidade, agora sim, em benefício da coletividade e do interesse público da nação.

A cláusula de reserva de plenário
A decisão proferida com espeque na diretriz jurisprudencial consignada na Súmula 331 viola a cláusula de reserva de plenário?

Ao disciplinar a matéria, estabeleceu a Constituição Federal em seu artigo 97:

“Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

Trata-se, portanto, de exigência a ser observada quando se questiona a inconstitucionalidade de uma lei.

Não é esse o caso, pois a Súmula 331 do C. TST faz expressa menção ao artigo 71 da lei 8.666/91, reconhecendo sua constitucionalidade.

Ademais, não se pode perder de vista que este entendimento jurisprudencial advém de uma Súmula expedida pelo Plenário de um Tribunal Superior, que tem competência para tanto, assim atraindo a aplicação do disposto no artigo 557 do CPC, compatível com o processo trabalhista, que preceitua:

“O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.”

Se a edição de Súmula pelo Tribunal Superior (TST) produz fundamentos judiciais suficientes para respaldar uma decisão monocrática, por que deixaria de gerar efeitos quando se trata de uma decisão de Colegiado, quando a lei sinaliza exatamente em sentido contrário como consta do parágrafo 2º deste artigo?

Tal raciocínio foi claramente explicitado pelo Ministro Ayres Brito ao apreciar reclamação com o mesmo questionamento, decidindo nos seguintes termos :

“Trata-se de reclamação constitucional, aparelhada com pedido de medida liminar, proposta pelo Estado de Minas Gerais, contra acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. 2. Argúi o autor que a Quinta Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, ao negar provimento a recurso ordinário em reclamação trabalhista, afastou a aplicabilidade do § 1º do art. 71 da Lei nº 8.666/93. Isto sem que houvesse pronunciamento do Plenário do tribunal acerca da inconstitucionalidade do dispositivo legal. (…) E o fato é que essa súmula foi objeto de análise pelo Plenário do Tribunal Superior do Trabalho no Incidente de Uniformização de Jurisprudência nº 297.751/96, em 11 de setembro de 2000. Não houve, portanto, nenhuma violação à reserva de plenário (art. 97 da Constituição Federal). Digo isto porque me parece, neste juízo provisório, aplicável ao caso a disciplina do parágrafo único do art. 481 do Código de Processo Civil, in verbis: "Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão (…)” (STF-Rcl-8216- MC/MG, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, publicado no DJ de 19.05.09) (grifou-se).

“(…) Ademais, não me parece razoável que o relator, nos termos do art. 557 do Código de Processo Civil (O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior) possa, monocraticamente, com supedâneo em súmula ou jurisprudência dominante de tribunal superior, julgar improcedente um recurso (que, lembre-se, não raro ataca sentença em que se tenha declarado a inconstitucionalidade de lei), sem que se confira a mesma prerrogativa às Turmas ou Câmaras dos tribunais. Daí a leitura conjunta que há de se fazer do parágrafo único do art. 481 e do art. 557, ambos do Código de Processo Civil (…)” (STF-Rcl-7219- MC/MG, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, publicado no DJ de 13.02.2009) (grifou-se).

Importante ressaltar os termos em que foi exarado posicionamento, quando analisada a matéria referente à Súmula Vinculante 10, conforme registro dos debates que constam da 15ª e 16ª Sessões Plenárias do STF – DJe nº 172/2008 Divulgação: quinta-feira- 11 de setembro Publicação: sexta-feira- 12 de setembro, cujo texto a seguir transcrevo, com grifos ora acrescentados:

DEBATES QUE INTEGRAM A ATA DA 15ª (DÉCIMA QUINTA)

SESSÃO ORDINÁRIA, DO PLENÁRIO, REALIZADA EM 11 DE JUNHO DE 2008

DEBATES PARA A APROVAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 7

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Senhores Ministros, talvez em relação a esses dois casos, a Súmula nº 648, e em relação também à reserva de Plenário, nós pudéssemos elaborar uma Súmula, ouvido o Procurador-Geral, e depois poderíamos chegar a um texto, porque parece que são matérias pacíficas.

Em relação à Súmula nº 648, claro, já se trata de entendimento sumulado.

Em relação à reserva de Plenário, com as ressalvas que nós conhecemos e que a jurisprudência do Supremo encaminhou, e depois foram incorporadas inclusive pelo legislador, nos arts. 481 e 482 do CPC, também é uma matéria bastante pacífica. Acho que não há nenhuma dúvida em relação a isso.

DEBATES QUE INTEGRAM A ATA DA 16ª (DÉCIMA SEXTA)

SESSÃO ORDINÁRIA, DO PLENÁRIO, REALIZADA EM 18 DE JUNHO DE 2008

DEBATES PARA A APROVAÇÃO DA SÚMULA VINCULANTE Nº 10

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Penso já ter sido distribuída a proposta de súmula que deliberamos na sessão anterior sobre a questão da reserva de Plenário. Houve aprovação, mas a Ministra Ellen Gracie, agora, nos submete essa proposta. Vou ler o texto (Questão de Ordem no RE 580.108): “Viola a cláusula de reserva de plenário (Constituição Federal, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de norma, afasta a sua incidência no todo ou em parte”.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, claro que podemos deixar de aplicar uma lei por ser também inadequada à espécie em termos de regência. Agora, no caso a premissa é única, a declaração – diria -“escamoteada” de inconstitucionalidade da lei. Penso que a percepção dessa premissa está na cláusula, embora não declare expressamente, ou seja, afasta, para aplicar a Constituição Federal, sem levar o incidente a órgão especial ou ao Plenário. Sendo esse o sentido, estou de pleno acordo. Presidente, apenas mais uma colocação, para que fique documentado, inclusive quanto ao meu ponto de vista. Aqui também não está apanhada a situação em que, em processo subjetivo, já houve a declaração de inconstitucionalidade da lei pelo Supremo.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Ou mesmo pelo órgão especial do Tribunal porque o CPC faz essa ressalva.

O SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO – Havendo decisão do próprio Tribunal, claro que não tem de ocorrer sucessivos incidentes.

O SR. MINISTRO GILMAR MENDES (PRESIDENTE) – Que são aquelas hipóteses em que a própria lei ressalva.

A SRA. MINISTRA ELLEN GRACIE – Senhor Presidente, eu gostaria penas, como autora da proposta, de sugerir uma pequena alteração, que me foi alcançada pelo colega Ministro Carlos Britto. Na redação que Vossas Excelências têm em mãos, quando se diz: “não declare expressamente a inconstitucionalidade de norma” substitua-se esse termo “norma” por “lei ou ato normativo do poder público”. Com isso estaremos reproduzindo o texto do art. 97 da Constituição.Acato essa ponderação do Ministro Carlos Britto, penso que enriquece a redação.

(…)

Portanto, esta será a Súmula Vinculante nº 10:

“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de

órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a

inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua

incidência, no todo ou em parte.”

Destarte, como a ressalva quanto à aplicação do preceituado nos artigos 481 e 482 do CPC foi devidamente destacada nos debates, e a interpretação da Súmula Vinculante 10 não pode ultrapassar as balizas postas pelo artigo 97 da CF/88, onde estaria a violação da cláusula de reserva de plenário na decisão que adotou o entendimento contido na Súmula 331?

Após apreciar inúmeros processos, nos quais ficou evidenciado o comportamento negligente do ente público, quando deixa de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista pelos contratados, que atuavam como empregadores dos trabalhadores que prestavam serviços em seu benefício, o Tribunal Superior do Trabalho reputou constitucional o artigo 71 da Lei 8.666/93 nos termos em que foi promulgado. Assim, manteve o ali disposto quanto à impossibilidade de transferência das obrigações patronais, estabelecendo expressamente na Súmula 331 que não há vínculo de emprego ente o ente público e o trabalhador. Ao aplicar o referido verbete as Câmaras ou Turmas mantêm este entendimento quanto à vedação de transferência, de modo que em nenhum momento se coloca em questão a inconstitucionalidade, nem mesmo implícita, do artigo 71 da Lei 8.666/93.

Poderia ser diferente?
Ao constatar que o comportamento negligente da Administração Pública provoca lesão aos direitos fundamentais do trabalhador, respaldado na diretriz constitucional prevista no inciso IV do artigo 1º e no parágrafo 6º do artigo 37, ambos da CF/88, bem como artigo 186 do Código Civil, cuja aplicação considera compatível com o direito trabalhista, o TST vem reconhecendo a responsabilidade subsidiária pela reparação da lesão, o que implica na observância do benefício de ordem e possibilita ação regressiva.

Portanto, não há qualquer transferência das obrigações empregatícias.

O empregador continua, como sempre, detentor da responsabilidade patronal. A responsabilidade do ente público decorre de fato gerador distinto, ex lege, qual seja, o comportamento culposo por negligência.

E poderia ser diferente?

A Justiça Trabalhista poderia ignorar que um número expressivo de entes públicos deixam de cumprir seu dever de fiscalizar a prestação de serviços pelos contratados, efetuando pagamentos sem antes exigir a comprovação de que houve a observância das obrigações patronais trabalhistas?

Poderia admitir que a omissão do ente público redunde num enriquecimento ilícito do empregador, que se apodera dos valores referentes às verbas trabalhistas, deixando de efetuar os pagamentos de natureza alimentar devidos ao seu empregado, além de sonegar os recolhimentos fundiários e previdenciários ?

A Constituição pode ser reduzida a um simples ajuntamento de normas, com o descumprimento das regras de boa governança e accountability que instituem o devido processo legal administrativo, sob o descarado argumento de que o agente público se limitou a seguir os trâmites de um procedimento licitatório ?

Os direitos fundamentais, estabelecidos como vigas de edificação da República Brasileira pela Carta Constitucional, podem ser rebaixados a condição de mero regimento?

A Carta Constitucional é bússola que fixa a diretriz , o caminho a ser percorrido pelo ordenamento jurídico para preservar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, que sustentam institucionalmente o país, preservando sua vitalidade como nação.

Assim é porque a Constituição atua como “fonte de Direito (constitucional) e também conjunto normativo que disciplina as demais fontes do direito”, como pontua André Ramos Tavares[14]

Cabe ao intérprete promover a análise sob tal perspectiva, para garantir a harmonia que propicia a efetividade do sistema. Para tanto, não se pode deixar de acompanhar Luis Roberto Barroso [15] quando ressalta que a ordem jurídica é um sistema dotado de unidade e harmonia. “Os diferentes ramos do direito constituem subsistemas fundados em uma lógica interna e na compatibilidade externa com os demais subsistemas” sendo a Constituição um “fator de unidade do sistema como um todo, ditando os valores e fins que devem ser observados e promovidos pelo conjunto do ordenamento”. Por isso, o Direito “existe para realizar determinados fins sociais, certos objetivos ligados à justiça, à segurança jurídica, à dignidade da pessoa humana e ao bem-estar social”, princípios albergados na Constituição que se irradiam por todo o sistema jurídico do país.

Poderia ser diferente?

A regra posta no artigo 71 da Lei 8.666/93 estabeleceu que os deveres patronais próprios do empregador não se transferem para a Administração Pública, mas não excluiu sua responsabilização pela preservação dos direitos fundamentais do trabalhador, base de sustentação do ordenamento jurídico de um Estado de Direito, cuja exigibilidade se reveste de interesse público, de sorte que falacioso e incabível o argumento que pretende restringir a dimensão da controvérsia a um simples confronto entre público e privado.

Ademais, em cumprimento aos princípios da legalidade, moralidade e eficiência albergados no artigo 37 da CF/88, a Administração Pública tem obrigação legal de pautar sua atuação pela boa governança e accountability na gestão da coisa pública, de modo que lhe cabe fiscalizar o empregador contratado para que cumpra com suas obrigações trabalhistas. O fato desta contratação ter ocorrido mediante processo licitatório não elide tal conclusão, pois não afasta a aplicação do artigo 186 do Código Civil quando o comportamento negligente e omisso do ente público possibilita a violação e lesão aos direitos fundamentais do trabalhador, que atuou em seu benefício.

Assim sendo, ao consignar que as obrigações patronais do empregador não se transferem ao ente público, mas não impedem a sua responsabilização pela conduta culposa in vigilando, por omissão e negligência, imputando-lhe a responsabilidade subsidiária, que implica na observância do benefício de ordem e possibilita a ação regressiva, a diretriz jurisprudencial traçada na Súmula 331 pelo TST não tratou da constitucionalidade, mas da legalidade, da subsunção do fato à norma apta para discipliná-lo, inexistindo na decisão pautada por tal diretriz qualquer descumprimento da cláusula de reserva de plenário preceituada no artigo 97 da CF/88 e referido na Súmula Vinculante 10.

Referências Bibliográficas

1-Di Pietro, Maria Sylvia Zanella- Direito Administrativo- 21 ª edição- Editora Atlas S.A.- São Paulo- 2008-

2-Mendes, Gilmar Ferreira- Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade- estudos de direitos constitucional- Editora Saraiva – 2004- 3ª edição- São Paulo-

3–Ferrajoli, Luigi- Direito e Razão- 3ª edição- Editora Revista dos Tribunais- São Paulo- 2010-

4-Barroso, Luis Roberto- Curso de Direito Constitucional contemporâneo- Editora Saraiva-1ª edição 2009-

5-Afonso da Silva, Virgílio- Direitos Fundamentais- conteúdo essencial, restrições e eficácia- Malheiros editores- 2ª edição- São Paulo-

6-Sarmento, Daniel- Direitos fundamentais e relações privadas- 2ª edição- 2ª tiragem- Lumen Juris Editora- Rio de Janeiro 2008-

7-França, Vlademir da Rocha- Considerações sobre a legalidade e demais princípios jurídicos da licitação- in Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do Direito- coordenadores Cláudio Brandão, Francisco Cavalcanti e João Mauricio Adeodato- Editora Forense- Rio de Janeiro- 2009

8-Mello, Celso Antonio Bandeira de- Curso de Direito Administrativo- Malheiros- São Paulo – ano 2010-

9- Tavares, André Ramos- Teoria da Justiça Constitucional- Editora Saraiva- São Paulo- 2005-


[1] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella- Direito Administrativo- 21 ª edição- Editora Atlas S.A.- São Paulo- 2008- págs. 62 e seguintes.

[2] Mendes, Gilmar Ferreira- Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade- estudos de direitos constitucional- Editora Saraiva – 2004- 3ª edição- São Paulo- págs 1 a 12

[3] Mendes, Gilmar Ferreira – Direitos fundamentais e controle da constitucionalidade- pag. 14 e 28

[4] Ferrajoli, Luigi- Direito e Razão- 3ª edição- Editora Revista dos Tribunais- São Paulo- 2010- págs 814/815

[5] Barroso, Luis Roberto- Curso de Direito Constitucional contemporâneo- Editora Saraiva-1ª edição 2009- págs. 61, 69 e seguintes

[6] Afonso da Silva, Virgílio- Direitos Fundamentais- conteúdo essencial, restrições e eficácia- Malheiros editores- 2ª edição- São Paulo- pag 185.

[7] Sarmento, Daniel- Direitos fundamentais e relações privadas- 2ª edição- 2ª tiragem- Lúmen Júris Editora- Rio de Janeiro 2008- págs 124 e seguintes

[8] França, Vlademir da Rocha- Considerações sobre a legalidade e demais princípios jurídicos da licitação- in Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do Direito- coordenadores Cláusio Brandão, Francisco Cavalcanti e João Mauricio Adeodato- Editora Forense- Rio de Janeiro- 2009- pags. 395 a 416

[9] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella- obra citada- pag. 335

[10] Di Pietro, Maria Sylvia- obra citada pag. 37 e seguintes ; 63 e seguintes.

[11] Mello, Celso Antonio Bandeira de- Curso de Direito Administrativo- Malheiros- São Paulo – ano 2010- pags. 73/74

[12] Di Pietro, Maria Sylvia Zanella- obra citada- pag 325

[13] Barroso-Direito constitucional contemporâneo- págs 90/91

[14] Tavares, André Ramos- Teoria da Justiça Constitucional- Editora Saraiva- São Paulo- 2005- pag. 45

[15] Barroso, Luis Roberto- obra citada- págs 294/295

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