Depuração legal

Lei da Ficha Limpa enfrentará dura batalha no STF

Autor

14 de julho de 2010, 17h53

As liminares que os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, deram na semana passada para garantir o registro de candidatura de políticos já condenados por órgãos colegiados da Justiça foram apenas o prenúncio de uma árdua batalha que a Lei Complementar 135/10, conhecida como Lei da Ficha Limpa, certamente enfrentará naquele tribunal.

Na decisão em que garantiu o registro da candidatura da deputada estadual de Goiás Isaura Lemos (PDT), Toffoli adiantou que será preciso analisar a adequação da lei à Constituição. O ministro ressaltou que a matéria exige reflexão, pois “apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano hierárquico e axiológico”.

A frase do ministro traz à luz uma discussão que toma conta da comunidade jurídica desde a aprovação da lei. Em comum, advogados apontam ao menos três pontos que devem ser discutidos pelo Supremo antes das eleições de outubro — ainda que de forma incidental em recursos extraordinários, já que nenhum dos legitimados a propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) pretende fazê-lo.

O primeiro e mais importante é o princípio da presunção da inocência. Neste caso, a jurisprudência do STF é farta no sentido de que ninguém pode ter seus direitos políticos cassados ou sofrer restrições sem decisão de condenação transitada em julgado. Salvo exceções, o cidadão pode usufruir de todos os seus direitos até que seja definitivamente condenado pela Justiça.

A segunda discussão gira em torno da decisão do Tribunal Superior Eleitoral de que a regra se aplica aos políticos condenados mesmo antes de ela entrar em vigor. O terceiro ponto que deverá ser debatido é o princípio da anualidade, segundo o qual qualquer regra que modifique o processo eleitoral deve estar em vigor há pelo menos um ano para ser aplicada às eleições seguintes. A Lei Complementar 135 foi sancionada há menos de dois meses. Apesar de a questão já ter sido discutida no TSE, a última palavra caberá ao STF.

Soberania popular
Para o advogado Erick Pereira, especialista em Direito Eleitoral, há outro ponto relevante que deve ser levado em conta. De acordo com ele, a vigência da lei provoca uma redução da soberania popular. “O primeiro artigo da Constituição estabelece que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos. Como, então, pode-se tirar esse poder do cidadão e delegar a um tribunal a decisão sobre em quem ele pode ou não votar?”, questiona. “Não existe soberania popular relativa”, afirma Pereira.

O advogado eleitoral Marcus Vinicius Furtado Coelho, secretário-geral do Conselho Federal da OAB, entidade que trabalhou com afinco pela aprovação da lei e por sua aplicação imediata, rebate o argumento: “Defender a soberania popular a qualquer custo tornaria ilegítima qualquer decisão da Justiça Eleitoral. E uma das mais importantes funções da Justiça Eleitoral, desde sua origem, é exatamente a de sanear os costumes políticos no país”.

É isso que a maior parte dos ministros do TSE acredita ser o espírito da Lei da Ficha Limpa: sanear a política. Em suas decisões que determinaram que a lei valha já para as próximas eleições e que os condenados antes de sua vigência se submetem a ela, os ministros do tribunal eleitoral se fundaram em precedentes do próprio STF.

O advogado Rodrigo Lago lembra que quando a Lei Complementar 64, que trata exatamente de inelegibilidades, entrou em vigor em maio de 1990, houve o mesmo questionamento sobre os princípios da anualidade e retroatividade. Isso não impediu a lei de ser aplicada para as eleições daquele ano.

“À época, tanto o TSE quanto o STF entenderam que as condições de elegibilidade são critérios que devem ser aferidos na ocasião do registro”, afirma. Os tribunais também entenderam que novas hipóteses de inelegibilidade não configuram pena ou sanção. Logo, não se aplica o princípio da retroatividade para o caso de registro de candidaturas.

Sobre o princípio da anualidade, há precedentes do Supremo em dois sentidos. Em seu voto sobre a questão, o presidente do TSE, ministro Ricardo Lewandowski, cita o julgamento da ADI 3.741, que ele mesmo relatou. Para o ministro, se a lei não desequilibra a disputa entre os candidatos, nem traz regras que deformam a normalidade das eleições, não se pode dizer que interfere no processo eleitoral.

Advogados contestam a decisão. “Uma lei que interfere no leque de possíveis candidatos no pleito claramente altera o processo eleitoral”, sustenta Rodrigo Lago. “Não desconheço os antigos precedentes do STF sobre a Lei Complementar 64/90, que reconheceram a aplicabilidade da regra imediatamente às eleições de 1990. Mas a jurisprudência constitucional está em eterna revisitação e penso ser este o momento para a revisão”, conclui.

Choque de princípios
Há pouco menos de dois anos o Supremo Tribunal Federal decidiu que não é possível impedir a candidatura de um político sem que ele tenha sido definitivamente condenado pela Justiça. A decisão foi tomada por nove votos a dois no julgamento de ação da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). O relator do caso, ministro Celso de Mello, ressaltou em seu voto que a presunção de inocência deve perdurar não apenas na esfera penal, mas também “no domínio civil e no âmbito político”.

Apenas o ministro Dias Toffoli não participou do julgamento. Mas como advogado-geral da União, função que exercia na ocasião, deu parecer contrário à ação da AMB. A questão estaria, então, liquidada, e a Lei da Ficha Limpa seria considerada inconstitucional pelo STF, certo? Errado.

No julgamento, apenas quatro ministros deram ênfase ao princípio da presunção da inocência em seus votos: Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Cezar Peluso. Para estes, deve prevalecer o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Os outros cinco que votaram contra a ação se fiaram principalmente no argumento de que o Judiciário não poderia criar novas hipóteses de inelegibilidade. Isso teria de ser feito pelo Congresso, por meio de lei complementar.

Por esse motivo, a situação é diferente da anterior. Agora, a proibição de candidatura mesmo sem condenação definitiva veio por meio de lei complementar, como determina a Constituição. E isso pode garantir a vida da lei.

O parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição estabelece que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato”. Foi exatamente o que se fez com a aprovação da Lei da Ficha Limpa.

“O que está em discussão são dois princípios que se encontram no título dos direitos e garantias fundamentais na Constituição. Teremos de decidir se deve prevalecer o princípio da presunção de inocência ou o da probidade administrativa”, afirma um ministro ouvido pela ConJur.

Batalha dos tribunais
A decisão entre os dois princípios dividirá o Supremo Tribunal Federal e colocará a mais alta corte do país em rota de colisão com o Tribunal Superior Eleitoral. No TSE, o presidente Ricardo Lewandowski já rejeitou oito pedidos de liminares de políticos que, pelas novas regras, não poderão se candidatar. Nesta quarta-feira, o ministro declarou que a implementação da lei deve provocar a impugnação de até 15% das candidaturas este ano.

No STF, o vice-presidente, ministro Carlos Britto, negou quatro pedidos semelhantes. Mas os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli concederam liminares que suspendem os efeitos da lei para dois candidatos que recorreram à Corte.

Os ministros Lewandowski e Cármen Lúcia, que compõem o TSE, já mostraram em declarações públicas e em seus votos que a Lei da Ficha Limpa é constitucional. Os dois fazem parte do time que, quando o Supremo julgou a ação da AMB contra a candidatura de políticos processados, a rejeitaram porque entendiam que só lei complementar poderia prever as condições de rejeição de candidaturas.

Carlos Britto, que deixou o TSE há três meses, e Joaquim Barbosa, já manifestaram em plenário o entendimento de que o princípio da probidade administrativa se sobrepõe ao da presunção de inocência no caso de registro de candidaturas. Assim, o cálculo feito por advogados é o de que a Lei da Ficha Limpa tem quatro votos garantidos.

Mas a advogada constitucionalista Damares Medina lembra que “o STF tem uma jurisprudência muito firme garantindo a presunção de inocência”. Damares cita o julgamento da Reclamação 6.534 como exemplo.

Na decisão, cujo relator foi novamente o ministro Celso de Mello, o Supremo reforça que “a existência de sentença penal condenatória ainda não transitada em julgado, além de não configurar, por si só, hipótese de inelegibilidade, também não impede o registro da candidatura de qualquer cidadão”.

Quando julgou a ação da AMB em 2008, Celso de Mello registrou na ementa da decisão que há “a impossibilidade de a lei complementar, mesmo com o apoio no parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição, transgredir a presunção constitucional de inocência, que se qualifica como valor fundamental”. O ministro alertava que mesmo que as hipóteses de inelegibilidade viessem por meio de lei complementar, elas não podem ferir o princípio segundo o qual ninguém é culpado sem decisão definitiva da Justiça. Outros ministros comungam da opinião do decano do Supremo.

Mas para o secretário-geral da OAB, Furtado Coelho, o princípio da presunção de inocência não se aplica à Lei da Ficha Limpa. “Inelegibilidade não é pena e mandato não é um bem individual. Impedir a candidatura não estabelece culpa ou retira os direitos políticos do cidadão. Ele não pode se candidatar, mas mantém seus direitos políticos. Tanto que pode votar”, sustenta.

Dois ministros disseram à ConJur que acreditam que o embate entre os princípios da presunção de inocência e da probidade administrativa deve se dar antes das eleições de outubro. E pode ser provocado no julgamento do mérito de uma das duas liminares dos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que garantiram o registro da candidatura a políticos condenados por decisões de órgãos colegiados antes de a Lei da Ficha Limpa entrar em vigor.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!