Ser ou não ser

Nós, juízes: máquinas, coisas ou seres humanos?

Autor

  • Amini Haddad

    é Juíza de Direito-TJ/MT. Professora Efetiva da UFMT. Mestre em Direito Constitucional - PUC/RJ. Doutoranda em Direitos Humanos/UCSF. Especialista em Direito Civil Processo Civil Direito Penal Processo Penal Direito Administrativo Direito Constitucional e Tributário.

10 de julho de 2010, 12h51

É difícil compreender as ações e condutas que externam vícios. Fantasiosas construções que criam edifício sem quaisquer perspectivas de realidade e, mais incrível ainda, é perceber que ganham sintonia no mundo contemporâneo.

Falta de consciência?

Hannah Arendt já trazia a sua contribuição para tal “descentração” humana, própria de uma sociedade onde o mundo material dita regras e os interesses monetários limitam a visão, sendo, estas elementares, mais um contributivo do holocausto: homens máquinas!

Quantos sábios não estiveram envolvidos na doutrina e modus operandi de Hitler? Quantos, ainda, Autoridades, até a atualidade, desconsideram a humanidade e limitam-se aos interesses mesquinhos, em exploração do outro, inclusive em trabalho escravo?

Ademais, nessas intenções, não são julgados os objetos em si, mas sim nossa representação dele ou o que queremos perceber nele ou assim argumentá-lo. O julgamento estético está, pois, baseado em senso comum reflexivo e, sobre isso, Kant diz que seria uma comparação nossa com o que os outros julgam, com as limitações próprias das nossas abstrações (elementar não reflexiva em nós mesmos).

O alargamento abstruso procede do seguinte ponto: o juízo, então, não depende das minhas experiências e percepções (consciência), mas do jeito que eu sou capaz de imaginar as coisas do ponto de vista dos outros. Isso, pelo que se vê, não se sustenta. Nesse sentido, PAREKH, Serena. Conscience, morality and judgment. Philosophy & Social Cristicism. vol. 34. ns. 1-2. pp. 177-195. Los Angeles, London, New Delhi e Singapore: 2008. p. 188.

Afinal, o que exatamente seriam os direitos humanos e quais seriam as justificativas que teríamos para aplicá-los ou defendê-los? Se não percebo, a partir de mim, em experiência, como realçar o outro sem a experiência da conduta?

Lembremos que recentemente, no Pedido de Providências 200.710.000.010.067 (Conselho Nacional de Justiça), Rel. Cons. José Adônis Callou decidiu que o magistrado não está submetido à jornada fixa de trabalho, mas as atividades desenvolvidas pelo juiz não se restringem e não se exaurem no horário de trabalho. Essa decisão decorreu exatamente do entendimento de que o juiz não é apenas e tão somente servidor público, mas muito mais do que isso, é agente político.

Mas, diante dessa perspectiva ilusionista e desfocada do núcleo essencial, os argumentos foram distorcidos completamente, desconsiderando a existência de direitos fundamentais Universais e inerentes à condição humana, quais sejam: lazer, descanso, saúde, convivência familiar, proibição do trabalho escravo e dignidade decorrente da condição de Ser humano.

Apesar dessa perspectiva, no mesmo sentido do decisório anterior, citado acima, o Conselheiro Jorge Maurique, fez consignar que os magistrados têm direito a três prerrogativas que seriam fundamentais para o bom exercício da jurisdição, quais sejam: a inamovibilidade, a irredutibilidade de vencimentos e a vitaliciedade e que, por tais garantias, que são os predicamentos da magistratura, não seriam trabalhadores comuns, mas sim agentes políticos do Estado. De tal forma, concluiu o Conselheiro que, como agentes políticos que são, os Magistrados estariam sujeitos a outras obrigações, da qual não podem esperar retribuição, como é o caso de eventual compensação ou remuneração por realização de serviço extraordinário, pelo fato de ficarem à disposição dos jurisdicionados, em regime de plantão (CNJ – PCA 13573 – Rel. Cons. Jorge Maurique – 52ª Sessão – j. 20.11.2007 – DJU 07.12.2007).

Primeiramente, vale-nos consignar: Os direitos humanos não são mais inerentes à condição humana? Os direitos humanos não são mais universais, inalienáveis, imprescritíveis e irrevogáveis?

As prerrogativas da Magistratura (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos) visam, primordialmente, a própria independência do Poder Judiciário e do julgador, para que, assim, o Magistrado não se sinta temeroso ao decidir sobre interesses políticos de grande monta ou contra pessoas de grande influência. É, portanto, garantia fundamental do cidadão e não somente do Juiz como agente político. Afinal, almeja-se um judiciário menos controlado e mais efetivo na sociedade brasileira.

Jamais tais prerrogativas da Magistratura, portanto, devem ser utilizadas como mecanismo de completa desconsideração da humanidade do Julgador. Nós, juízes, somos seres humanos. Não somos máquinas, apesar de diariamente sermos submetidos às diversas situações de dramas sociais dos mais perversos e sermos chamados a julgá-los com efetivo equilíbrio e em benefício da sociedade, o que nos faz deter a necessidade de uma verdadeira fortaleza emocional.

Mais claramente, observando a sociedade, podemos dizer, por exemplo, que em todos os julgamentos criminais de pós-guerra, de Nuremberg a Abu Ghraib, há uma presunção de que os soldados devem saber que eles estão errados, mesmo se eles pensassem que estivessem dentro da legalidade. A grande fundamentação dos direitos humanos pressupõe essa capacidade de julgamento, que nós estamos hábeis a reconhecer em nossas ações independentemente de norma positiva ou direito, visto que se trata de algo inerente, fisiológico e necessário à própria existência humana.

Ninguém precisa dizer a qualquer Ser Humano que ele precisa repousar, cuidar da saúde, conviver com a família e possuir lazer. Isso, portanto, não se refere apenas ao trabalhador, mas a qualquer pessoa existente na face da terra, independentemente da idade, sexo, etnia, gênero, religião, profissão etc.

Nesse aspecto, segundo Arendt, uma grande contribuição foi dada pelo Nazismo sobre esse movimento de insensibilidade da consciência em relação à moralidade. Viveu-se o absurdo de que contanto que as normas morais fossem socialmente aceitas, ninguém duvidava dos motivos que levavam a acreditar nas mesmas. Não se perguntava por que fazer aquilo, mas somente se posso fazer ou não. Inobstante, há algumas pessoas que resistiram ao nazismo e não participaram desse conceito genocida, o que leva a conclusão de que possuíam certo grau de consciência.

Portanto, quando se chega a esse nível de crise moral na sociedade, precisamos olhar para nós mesmos. Nesse sentido, Arendt aprofunda na discussão ao dizer que a moralidade depende, primariamente, da relação da pessoa consigo mesma. É a inerência, pois, da nossa condição: a humanidade.

Chega de revivermos Hitler ou ditaduras de argumentos desprovidos de conteúdo ético-moral. Afinal, como bem dizia Kant, a penalidade de não seguir o imperativo categórico seria o fato de sermos forçados a desprezar a nós mesmos, uma vez que o nosso próprio auto-respeito estaria em causa diante dessa ação.

Saibamos todos que, os Direitos Humanos são Universais porque delimitam a existência humana. São, pois, inerentes à condição do Ser humano. São morais porque requerem um nível de consciência, em percepção. São normativos porque acrescem um limite à ação do Estado e aos próprios indivíduos.

Portanto, não há norma, lei ou “prerrogativas” capazes de revogar ou inviabilizar os direitos fundamentais e naturais.

Afinal, gostaríamos de ser julgados por máquinas ou zumbis robotizados?

Possamos todos vislumbrar nas entrelinhas dos argumentos a tendência controladora do discurso.

Estejamos preparados, em consciência.

Os Juízes reclamam a sua humanidade, afinal, como bem preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade (artigo XXII); toda pessoa tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho (artigo XXIII); toda pessoa tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas (artigo XXIV).

Já não basta trabalharmos diariamente sem a delimitação de horário nos dias corridos da semana, em audiências que se prolongam noite adentro e pelas madrugadas afora, além dos atendimentos às partes e advogados, encontrando, ainda, espaços temporais para, ao mesmo tempo, proferir decisões, despachos e sentenças, atuando, sempre, pois, com o objetivo de preservar direitos e acautelar a vida dos cidadãos em sociedade?

Agora, querem nos dizer que não temos direito à compensação ou retribuição em relação, ao menos, aos plantões de finais de semana, feriados e comemorações de fim de ano?

Nós, juízes, somos seres humanos! Temos família, filhos, pais e mães. Servimos à Justiça e somos os garantidores dos direitos mais básicos do cidadão, ainda que para isso, soframos riscos de vida ao decidirmos pela prisão de grandes monstros sociais ou contra interesses escusos.

Querem nos dizer que aplicamos o direito, mas não temos direito?

Nós, Juízes, não somos máquinas… e, portanto, reclamamos a nossa humanidade, ainda que seja necessário denunciar mais um vez o Estado brasileiro aos organismos internacionais por não respeitarem os tratados e convenções internacionais de Direitos Humanos.

Imaginem a história revelada: a própria Justiça clamando por Justiça!

É difícil compreender as ações e condutas que externam vícios. Fantasiosas construções que criam edifício sem qualquer perspectiva de humanidade.

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    é Juíza de Direito-TJ/MT. Professora Efetiva da UFMT. Mestre em Direito Constitucional - PUC/RJ. Doutoranda em Direitos Humanos/UCSF. Especialista em Direito Civil, Processo Civil, Direito Penal, Processo Penal, Direito Administrativo, Direito Constitucional e Tributário.

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