Culpa de quem?

Judiciário e MP discutem origens da impunidade

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7 de julho de 2010, 11h02

“Uma ação penal não começa com o magistrado. Começa na polícia, que faz um inquérito no qual o juiz não tem participação ativa. O Ministério Público tem, porque pode pedir diligências e provas. Se não houver provas suficientes, o juiz terá de absolver o réu”.

Foi com essas palavras que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, em entrevista à revista Veja desta semana, comentou a sensação de impunidade que paira sobre a sociedade. A resposta do ministro soou também como uma explicação para a máxima popular que resume a questão: “A polícia prende e a Justiça solta”.

A declaração do ministro Peluso deixa claro que a culpa pela absolvição do réu não pode ser colocada somente sobre o Judiciário, que fundamenta o julgamento e a sentença naquilo que a polícia e o Ministério Público, ao apresentar a denúncia, produzem para provar que o suspeito é realmente o culpado.

O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Gabriel Wedy, concorda com o presidente do STF. “Para que o juiz possa condenar é necessário que exista uma boa instrução criminal, porque do contrário é impossível. O juiz nem sempre recebe provas que comprovam a culpa do acusado”, comenta.

O presidente da Ajufe lembra que um dos pontos da proposta de reforma do Código de Processo Penal — o que trata do poder de instrução complementar para o juiz — tem o objetivo de resolver a questão, porque, com a aprovação e a atribuição desta função ao Judiciário, os casos poderão ser melhor apurados e, se realmente for constatada a culpa, o réu será condenado.

“A Ajufe tem atuado para garantir a aprovação da reforma do CPP, entre outros motivos, por essa atribuição ao magistrado. Com a possibilidade de solicitar mais provas, a decisão será melhor fundamentada. Não que a polícia e o Ministério Público deixem de fazer o trabalho, no entanto, há exceções. Muitas vezes os autos não têm provas suficientes”, afirma.

Para o presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), Mozart Valadares Pires, realmente há deficiências no processo de produção de provas. Ele comenta que, em locais mais afastados das capitais e grandes cidades, por exemplo, a falta de estrutura impede que a polícia e o Ministério Público façam o trabalho de forma completamente satisfatória. Valadares lembra que há casos históricos, em que o réu não foi condenado, única e exclusivamente pelo fato de as provas apresentadas serem inconsistentes.

Além do Judiciário, do MP e da Polícia, o presidente da AMB diz que também a advocacia contribui para a impunidade reinante. “Ao lado da questão das provas também a quantidade de recursos disponíveis no sistema acaba resultando nesta sensação de impunidade. Todos têm direito à defesa e recorrer de decisões, entretanto, a lógica destes mecanismos precisa mudar, porque impede o seguimento dos processos e, caso o réu seja mesmo culpado, ser condenado e pagar pelo crime”, diz.

Outro que compartilha da mesma opinião em relação à produção de provas é o presidente da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Ajufesp), Ricardo Castro Nascimento.

“O juiz tem o papel de julgar. Ele não participa das outras etapas do processo, porque sua decisão é fundamentada nas provas, portanto, se elas não estiverem satisfatórias não é possível condenar uma pessoa. O magistrado não pode agir de acordo com a vontade pessoal ou o clamor público”, explica.

Ele comenta que Peluso lembrou de um ponto importante ao falar sobre essa questão. “Quem combate o crime é a polícia, o Judiciário tem outro papel”.

Responsabilidades
“Acredito que a sensação de impunidade não decorre somente de uma situação, como da produção das provas, por exemplo. Não é uma receita definida. No entanto, realmente existem casos em que a polícia e o Ministério Público apresentam dados insuficientes para que resultem na condenação”.

A opinião é do presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, que acrescenta que seria necessário um estudo e uma análise mais profundos para poder precisar ou atribuir a culpa a algo específico sobre a questão da impunidade.

O presidente da seccional paulista da OAB, Luiz Flávio Borges D’Urso, reforça a opinião dos demais. Para ele, o trabalho do juiz fica comprometido quando a polícia e o Ministério Público não produzem as provas a contento ou não fundamentam devidamente a denúncia.

“Não é uma questão generalizada, mas há casos em que as provas são imprestáveis, e o magistrado não consegue condenar. O trabalho da polícia, sobretudo da técnica, é de extrema importância, porque é nesse momento que as provas mais importantes podem ser obtidas o que, consequentemente, vai auxiliar e facilitar o trabalho dos promotores”, afirma.

O advogado criminalista Luiz Guilherme Vieira lembra do uso desmesurado de alguns mecanismos de investigação, cujos resultados são insuficientes para um inquérito bem elaborado. “A utilização do grampo e escuta é um exemplo disso. Por esse e outros motivos, há uma série de inquéritos entregues sem absolutamente nada consistente, com denúncias sem nenhuma base para a possível condenação”, comenta.

Porém, Vieira também cita a falta de estrutura em algumas cidades. “No Rio de Janeiro, por exemplo, algumas varas foram fechadas, o que tem um impacto direto nessa situação”, acrescenta.

Contraponto
O 2º vice-presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), Lauro Machado Nogueira, afirma que a responsabilidade pela sensação de impunidade que impera na sociedade tem de ser dividida entre todos os envolvidos nos processos, e não apenas entre os responsáveis pela fase investigatória.

“Acredito que não devemos ter responsáveis por isso, mas sim unir as forças para combater a impunidade. O problema é muito maior do que somente a produção de provas. O sistema tem diversas falhas, que permitem até mesmo que réus confessos permaneçam em liberdade. O caso do Pimenta Neves é emblemático”, diz.

Na entrevista a Veja, o presidente do Supremo explica que no caso do jornalista Antonio Pimenta Neves, já condenado pelo Tribunal do Juri pela morte de sua ex-namorada Sandra Gomide, o réu não cumpre pena ainda, dez anos depois do crime, porque a sentença ainda não é definitiva. Falta o julgamento de um recurso no Superior Tribunal de Justiça.

Para o diretor de assuntos parlamentares da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio, atribuir a culpa a somente um dos envolvidos no processo não resolve e nem contribui para encontrar soluções.

De acordo com ele, as decisões proferidas nas primeira e segunda instâncias são muito diferentes dos tribunais superiores, porque “os magistrados são mais conservadores”. “Se a prova vale para os juízes de primeira e segunda instâncias, por qual motivo é descartada quando chega ao superior? São as mesmas provas, por esse motivo, acredito que nas esferas inferiores os juízes são mais ousados e interpretam as situações de forma completamente diferente”, comenta.

O promotor Silvio Marques, do Ministério Público de São Paulo, discorda que a culpa pelo fato de o réu não ser condenado é resultado da má produção de provas. Para ele, o delegado, o promotor e o juiz podem ser os culpados pela sensação de impunidade, porque todos estão envolvidos.

“É impossível generalizar ou se apegar a um fator único. O contexto é muito maior, porque em muitos casos o Ministério Público tem sido severo na produção das provas, e o resultado não é a condenação”, afirma. Certamente uma denúncia que não prospera contribui enormemente para o aumento da sensação de impunidade.

De acordo com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), não é possível precisar quantas denúncias feitas pelo MP resultam em condenações, porque cada Ministério Público estadual utiliza um sistema e uma forma de catalogar dos dados. Segundo a Assessoria de Imprensa da entidade, está em fase de implantação, em todo o país, um sistema informatizado para concentrar estas informações e permitir a produção de estatísticas sobre o assunto.

Desde 2004, quando foram criados os órgãos de controle externo do Judiciário e do MP, o CNJ já produziu cinco edições do "Justiça em Números", um levantamento estatístico que avalia a situação geral e o desempenho do Judiciário. O CNMP ainda tenta sua primeira edição. Por isso é impossível avaliar com base em dados estatísticos quantas denúncias do MP são consideradas ineptas e quantas resultam em condenação dos acusados.

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