Professor de imposto

Substituição tributária subverte natureza do ICMS

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4 de julho de 2010, 9h55

Spacca
Paulo Bonilha - Spacca

O sistema tributário é um conjunto de engrenagens que só funciona se todas elas girarem juntas. A maior concentração de esforços da administração pública na arrecadação de apenas algumas obrigações distorce o organismo e inibe a função que cada tributo tem dentro dele. 

O raciocínio é de Paulo Celso Bergstrom Bonilha, tributarista e professor, e uma das vozes mais respeitadas em sua área. Com uma visão ampla do sistema, ele pontua, em entrevista à Consultor Jurídico, as disfunções causadas por interferências não muito felizes do fisco. 

O sistema não-cumulativo do PIS e da Cofins, introduzidos pelas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, é uma delas. Segundo ele, a regra, que deveria ser geral, só serviu para desonerar alguns setores econômicos, deixando de fora todos os prestadores de serviços. Como o maior custo dos prestadores é a mão-de-obra, o sistema não-cumulativo inventado por essas leis não é opção, já que a lista exaustiva de insumos a serem deduzidos da base de cálculo dos tributos não inclui a folha de pagamentos. 

Outro exemplo dado é o do IPVA. Segundo o professor de graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo, o estado é omisso ao não tributar embarcações e aeronaves, que também são veículos automotores. Em sua opinião, o motivo para o silêncio é a força política dos proprietários desses bens. "São sinais de riqueza", diz. Para ele, uma decisão dada pelo Supremo Tribunal Federal sobre a questão, em abril de 2007, pôs um ponto final precoce na discussão, com argumentos pouco convincentes. (clique aqui para ler mais)

Bonilha fala de tributos estaduais com o conhecimento e a paciência de quem ensina a um forasteiro como encontrar uma rua em seu bairro. Didático, mostra a visão rara de quem estava atento quando o atual sistema tributário nasceu. Ao comentar sobre o aumento crescente do uso da substituição tributária na cobrança do ICMS, menina dos olhos dos governos estaduais, ele lembra que a ideia nasceu com o Código Tributário Nacional, mas foi abortada logo em seguida.

"A substituição tributária para a frente só existe no Brasil. Ela acaba com o imposto", afirma. Se para o fisco, a substituição racionaliza o trabalho de fiscalização, por concentrá-lo em apenas uma fase da circulação das mercadorias, a possibilidade de sonegação é ainda pior que a tradicional, na opinião de Bonilha. "O trânsito das mercadorias depois que o substituto tributário repassou o produto é livre de fiscalização, o que abre portas para a circulação conjunta de outros produtos com notas frias."

Hoje à frente do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, Paulo Bonilha trabalha como parecerista e advogado. Sua iniciação na área tributária foi como agente fiscal de rendas do estado de São Paulo, trabalho ao qual dedicou 36 anos, e lhe rendeu indicação para ocupar o lugar de julgador no Tribunal de Impostos e Taxas paulista, indicado pela Secretaria da Fazenda. Em 1994, assumiu o cargo de professor na USP. Também escreveu dois livros: Da Prova no Processo Administrativo Tributário IPI e ICM – Fundamentos da Técnica Não-Cumulativa. Sua tese de doutorado sobre não-cumulatividade, apresentada em 1991, é referência até hoje.

Leia a entrevista.

ConJur — Passados mais de 30 anos da criação do ICMS, o imposto ainda é o maior causador de polêmicas quando se fala em reforma tributária. Como o doutor vê a questão ao longo do tempo?
Paulo Celso Bergstrom Bonilha — Nós temos problemas jurídicos importantes que, embora se diga que já estão resolvidos, ainda prevalecem. O que é o fato gerador do antigo ICM, hoje ICMS? Era a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte, considerando-se como mercadoria uma coisa móvel, palpável. Saindo do estabelecimento, instaura-se a relação jurídica de incidência do ICMS. Quando o tributo nasceu, houve uma discussão muito grande sobre sua incidência, já que antes nós tínhamos o Imposto sobre Vendas e Consignações, o IVC, que taxava negócios jurídicos. Para cobrar esse imposto, o fisco precisava provar ter havido uma venda ou consignação. Já no ICM, a lei inovou ao dizer que o fato gerador era a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte. As dúvidas eram se só a saída física já gerava incidência. Se um ladrão roubasse a mercadoria durante o transporte, como ficaria? Grandes autores da época discutiram isso, e chegou-se à conclusão de que o fato gerador não se prende a um negócio jurídico. Bastava o impulsionamento da mercadoria em direção ao consumo que já teríamos o fato gerador. Isso significa dizer que quando uma mercadoria é encaminhada para uma filial, forma-se uma relação não bilateral, por se tratar da mesma empresa. Não é um negócio jurídico. Mas eu tenho uma operação relativa à circulação, nas palavras da Constituição Federal. Nesse caso, é devido o ICMS, e nenhum empresário vai discutir isso, porque pode perder o crédito do imposto. Isso jamais vai chegar ao Supremo.

ConJur — O debate ainda não está sedimentado?
Paulo Bonilha — Essa questão continua latente. Há autores extremamente autorizados, como Roque Antônio Carrazzo, meu amigo, professor da PUC, que advogam sobre a necessidade da existência de um negócio jurídico. 

ConJur — O que provoca a discórdia?
Paulo Bonilha — Quando você idealiza um imposto desse tipo, um dos problemas centrais é o repasse do crédito. Tudo começa na interpretação do que vulgarmente se chama de crédito físico. Tudo que se agrega à mercadoria dá direito de crédito. Se não se agrega, não dá direito. Matéria-prima e materiais secundários ou intermediários geram crédito. Já produtos que não se agregam ao produto final, que não seguem na circulação da mercadoria, não geram. Isso penaliza o empresário, que é obrigado a anular o crédito, sem poder aproveitá-lo.

ConJur — É o modelo que se usa no Brasil?
Paulo Bonilha — O primeiro imposto que tratou da não-cumulatividade no país foi o IPI, que nem estava na Constituição, e se chamava Imposto de Consumo. Na década de 1950, o governo federal estabeleceu direito de crédito nas importações. Quando os estados, com a reforma tributária que entrou em vigor em 1967, tiveram de montar o ICM, eles copiaram o sistema do IPI, que se baseava no sistema de crédito físico. Só que, em 1966, a França já havia implantado o sistema de crédito financeiro, no qual todo produto que entra no estabelecimento, em princípio, dá direito de crédito.

ConJur — Por que o sistema europeu é melhor?
Paulo Bonilha — No sistema de crédito físico, se eu compro, para uso no estabelecimento, um equipamento, uma geladeira, uma impressora, eles não geram crédito porque não integram as mercadorias. Já no sistema de crédito financeiro, sim. Eles vão fazer parte do acervo de produção, e não haverá perda de crédito no percurso. É o sistema mais moderno. Já no Direito brasileiro, você usa o telefone e não pode creditar o ICMS. Nesse caso, quem paga é a empresa. Obviamente, se ela puder, repercute economicamente o tributo nos preços.

ConJur — O que já foi feito para modernizar nosso sistema?
Paulo Bonilha — A Lei Complementar 87 de 1996 traçou um perfil mais avançado para o ICMS, próximo do modelo mais moderno do Mercado Comum Europeu, mas depois vieram leis complementares mantendo o crédito físico, o que é um atraso. O sistema financeiro é o mais avançado, o ideal. No Brasil, o crédito físico foi copiado do IPI, e os estados entendem que se passarmos para o financeiro, eles perdem receita. Isso é bobagem, porque, com o controle das alíquotas, você consegue a mesma receita. Os grandes problemas do ICMS não são jurídicos, mas econômicos e políticos, como a guerra fiscal e as distorções decorrentes da substituição tributária.

ConJur — Por que?
Paulo Bonilha — A substituição é uma negação da própria ideologia do imposto, que deve ter incidência plurifásica, como prevê a Constituição. Isso não está sendo observado. Em cada operação, o agente econômico respectivo vai pagar sua parte. Quando você tem um produto que já sai da fábrica com o imposto todo pago, referente a todas as operações, inclusive as finais, o que está sendo corrompido é a própria estruturação do tributo. Do ponto de vista econômico, cada agente deve suportar o imposto por ele devido, e não o dos outros. A substituição subverte todo o processo de apropriação progressiva e de fusão do imposto na cadeia de circulação.

ConJur — A substituição foi concebida desde o início?
Paulo Bonilha — Sim, mas ela foi revogada antes de o Código Tributário Nacional entrar em vigor. O parágrafo específico no artigo 58 do CTN já estava editado, mas um ato complementar do governo revogou o dispositivo. Só que, mais tarde, os estados acharam que esse era um meio de gastar menos com a fiscalização e evitar sonegação, o que não é bem verdade. Mesmo com substituição, a sonegação continua grande.

ConJur — Como?
Paulo Bonilha — Se eu tenho uma mercadoria em regime de substituição, ela trafega sem pagar imposto, sem passar por fiscalização. Isso abre uma brecha para que outras mercadorias sobre as quais o ICMS não foi recolhido trafeguem juntamente com as que estão regulares, com as chamadas “notas frias”. Se no Mercado Comum Europeu, em países com fiscalização nas fronteiras, existe sonegação, imagine entre estados brasileiros.

ConJur — A substituição mais atrapalha que ajuda?
Paulo Bonilha — Não a substituição para trás, que é quando você considera não tributadas as primeiras operações de circulação, o que vai ser compensado mais adiante por um segundo ou terceiro contribuinte. Existem razões práticas para o uso do sistema. Por exemplo, sucata de metal, de vidro, de papel, depende de coleta. Não há uma organização nas primeiras operações, feitas pelos catadores, pessoal de baixa extração. Por isso a lei diz que, na venda de sucata, o imposto será pago pelo industrial que a adquirir. A indústria que compra a sucata é a contribuinte dessas sucessivas operações.

ConJur — Não existe substituição tributária para a frente na Europa, por exemplo?
Paulo Bonilha — Não. O imposto europeu só permite o chamado “diferimento”, que é uma postergação do pagamento. A lei paulista, inclusive, usa o termo diferimento de forma errada para explicar a substituição para trás. Ela diz que o “lançamento será diferido”, como se o lançamento fosse feito pela indústria. Não é. Na verdade, as primeiras operações são não tributadas. Substituição para frente só existe no Brasil, e o ICMS está em colapso graças a ela, que é tão elogiada.

ConJur — No caso da substituição para trás, o industrial não acaba sendo supertributado?
Paulo Bonilha — Ele também tem uma vantagem, já que tem direito ao crédito. O capital não fica comprometido com a entrada da sucata. O mesmo aconteceu com o pecuarista. O gado leva alguns anos para chegar ao peso ideal para o abate. Durante esse período, passa por várias operações tributadas. O ICMS, nesse caso, fica diferido, postergado para depois do corte, na saída do frigorífico. O diferimento tem sentido porque atende a situações práticas. E isso é bom para o contribuinte e para a fiscalização.

ConJur — Se isenções e formas de arrecadação do ICMS são reguladas de acordo com regras específicas de cada estado, como encontrar um denominador comum?
Paulo Bonilha — A racionalização não depende propriamente da lei, mas de um acordo político. Logo que houve a implantação do sistema tributário na Constituição de 1988, a União já começou um movimento de reforma tributária. Em 1991, uma comissão já apresentou um projeto. Isso aconteceu porque, com o sistema tributário da Constituição de 1988 o governo federal perdeu receitas de maneira significativa.

ConJur — Como isso ocorreu?
Paulo Bonilha — O sistema tributário tem uma evolução pendular, ou seja, os recursos são centralizados hora nas mãos da União, hora nas de estados e municípios, por razões políticas. Com o declínio do regime militar, houve um enfraquecimento do poder da União. Antes da reforma, em 1987, já houve emendas constitucionais chamadas de mini-reformas, que passavam impostos para estados e municípios. A Constituição de 1988 acabou consolidando uma participação maior, no bolo da tributação, de estados e municípios. Não demorou e a União já começou a falar em reforma.

ConJur — Que de fato aconteceu.
Paulo Bonilha — Sim, em 1993, a Emenda Constitucional 3 já trouxe mudanças, inclusive com a possibilidade da criação da CPMF, que era o IPMF, Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira. O imposto foi criado por lei, mas houve questionamento judicial da sua constitucionalidade. Antes de o Supremo declarar em definitivo que era inconstitucional, cessou o tempo de vigência do tributo, que era de dois anos. Mas a União já tinha aprendido a trabalhar com as contribuições, e introduziu a CPMF. É uma vergonha. A lei diz que a receita de determinada contribuição está vinculada a isso e aquilo, mas não há nada atrelado. É simplesmente para fazer caixa.

ConJur — Então a CPMF foi uma forma de retomar a centralização tributária?
Paulo Bonilha — Após a Constituição de 1988, houve aquele período de recessão. O Brasil era devedor, e o presidente Sarney resolveu não pagar a dívida brasileira. Então, a União precisou se movimentar para reforçar o caixa. Tirou impostos que a Constituição dava para estados e municípios, como o adicional do Imposto de Renda, e criou contribuições. Surgiram as Cides e a Cofins. A Cofins nada mais é do que um adicional do ICMS, um imposto sobre venda, já que incide sobre o faturamento. As fontes econômicas de tributação são muito poucas: o patrimônio, a renda, e a circulação da riqueza, que é a movimentação de mercadorias e serviços.

ConJur — O Supremo Tribunal Federal já disse pelo menos duas vezes que o ICMS pago sob a forma de substituição tributária é custo de aquisição do bem. Mas a Receita Federal, em 2005, editou uma Instrução Normativa que proibiu a dedução desse custo no cálculo do PIS e da Cofins não-cumulativos. Qual a interpretação correta, nesse caso?
Paulo Bonilha — Um imposto não gera crédito para outro. O crédito de ICMS cessa quando cessa a circulação da mercadoria. Se ela vai participar da produção de outra, é outra circulação. Se eu fabrico telhas, uso gasolina, lenha ou carvão para o fogo. Esses produtos geram créditos, mas uma vez feito o produto, esse crédito acabou. No momento que a telha é vendida no balcão, cessa a circulação. A ideia de mercadoria é teleológica. Por isso, um imposto não gera crédito para outro.

ConJur — Isso também quer dizer quer o ICMS também não pode ser deduzido da base de cálculo da Cofins, discussão que está parada no Supremo?
Paulo Bonilha — Também não se pode contar com esse crédito. Há muitos autores que falam em direito constitucional de crédito. Concordo que esse é um direito constitucional, mas ele não é um direito igual aos outros. No campo do Direito Privado, nós fazemos um contrato que estabelece direitos e deveres. Já no campo do Direito Público, é diferente, porque um dos lados é o Estado, que representa a coletividade. Quando a lei estabelece um direito na relação jurídico-tributária, é um direito a ser exercido dentro de um determinado limite. Existem muitos créditos não-cumulativos, e eu posso pagar um imposto com o direito de crédito da operação anterior. Mas quem vai dizer qual o crédito que pode ser usado? Não vamos nem a 8, nem a 80. O uso do crédito é um direito, mas esse direito não vai além da cessação da circulação da mercadoria.

ConJur — Mas esse entendimento não desequilibra a relação e enfraquece o agente econômico?
Paulo Bonilha — Quando você perde uma mercadoria do seu estabelecimento, por exemplo, você perde o crédito. Se depois de comprar as mercadorias e se creditar do imposto pago, um incêndio em seu depósito consumir todas elas, você perde o direito ao crédito. É o que diz a Lei Complementar 87. Então, não é um direito absoluto, que você pode exercer a qualquer tempo contra o Estado.

ConJur — Qual o conceito correto de insumo, no caso, para que se possa deduzir do cálculo do PIS e da Cofins não-cumulativos? O frete entra nessa definição?
Paulo Bonilha — Insumo é um conceito econômico, é tudo o que é necessário para produção de um outro produto. Frete não é propriamente um insumo, porque considero insumo tudo aquilo que diz respeito ao processo de produção, aquilo que é indispensável, que se integra ao produto. Frete é componente do custo.

ConJur — E pode ser abatido do cálculo?
Paulo Bonilha — A lei diz em quais situações ele pode ser abatido. Se o frete pagou ICMS, por exemplo, você tem direito de abatimento. O serviço de transportes está no campo de incidência do ICMS, e portanto também gera o pagamento do imposto. Se eu compro uma mercadoria de um fabricante e contrato uma outra empresa que vai trazer esse produto, ela vai me dar uma fatura do pagamento do serviço, que dá direito de crédito, mas do ICMS.

ConJur — Se a mesma empresa tiver de transportar o produto entre dois estabelecimentos próprios, como filiais, por exemplo, pode deduzir o frete que ocorreu nessa fase em que o produto ainda não saiu?
Paulo Bonilha — Não, justamente porque o produto ainda não foi vendido. Ele ainda está em sua etapa de circulação e, portanto, o industrial incorre em todos os custos dessa etapa.

ConJur — O Supremo também está para decidir sobre a existência de crédito de IPI nos casos de produtos não tributados e tributados à alíquota zero. Na sua opinião, se existe aproveitamento de crédito de produtos isentos, deve haver também nesses casos?
Paulo Bonilha — Esse crédito não vai existir. Vai funcionar, mas é de mentira. O Supremo já disse isso em relação ao ICMS. Se determinado produto tem isenção, ela é um beneficio, e as vantagens precisam ser mantidas. Perder o crédito é um castigo. Mas sendo a operação isenta, não tem pagamento de tributo. Só é possível dar crédito a quem vai pagar o imposto. Na prática, o contribuinte não está compensando nada com nada. Por isso eu digo que se estará dando um crédito que não existe. São situações forçadas.

ConJur — O Congresso Nacional volta a discutir a criação do imposto sobre grandes fortunas. Ao tributar o patrimônio, ele não oneraria a mesma base que o ITCMD estadual, o imposto sobre herança?
Paulo Bonilha — Primeiro é preciso entender uma coisa: a bitributação chamada econômica não é inconstitucional. O produto estrangeiro, por exemplo, quando entra no Brasil, é tributado pelo Imposto de Importação, pelo IPI e pelo ICMS. Eu não posso dizer que há uma bitributação só porque a lei mandou cobrar mais de um tributo sobre o mesmo fato. Por isso, é preciso distinguir bitributação econômica de bitributação jurídica, que é quando o mesmo imposto incide em dobro sobre o mesmo fato. Barra do Turvo, aqui em São Paulo, era um exemplo. O município está na divisa com o Paraná, e havia um litígio anos atrás entre os dois estados sobre os limites geográficos. Quem tinha comércio ali era cobrado pelo fisco paulista e pelo paranaense. Isso é uma bitributação.

ConJur — O novo tributo teria efetividade?
Paulo Bonilha — É um imposto distinto de todos aqueles que estão no sistema tributário nacional. Na Europa, é muito polêmico porque provoca movimento de dinheiro para fora do país. Quem está com grande montante, vai tomar medidas para que não haja diferença positiva no seu patrimônio no fim do exercício. Na França não deu certo.

ConJur — O projeto não é novo, e sua tramitação sempre se arrasta. Valeria realmente a pena para o governo federal levar adiante uma briga que tem grandes chances de perder?
Paulo Bonilha — É interessante como questões políticas influenciam nas decisões de cobrança de tributos. O Supremo Tribunal Federal decidiu, há cerca de três anos, que embarcações e aeronaves não são veículos tributáveis pelo IPVA. O relator da decisão do STF foi o ministro Gilmar Mendes. O julgado faz menção a um parecer, dado no tempo do declínio do regime militar, pelo ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence, quando ele era procurador-chefe da Procuradoria-Geral do Rio de Janeiro. O IPVA, criado em 1987 pela Emenda Constitucional 27, levava receitas para os estados e municípios, justamente no período de declínio do poder central, com os militares em má situação perante a opinião pública. Em 1987, o prefeito do Rio de Janeiro era Leonel Brizola, que decidiu cobrar o imposto dos aviões, o que irritou o pessoal do Ministério do Ar. A maior parte da Força Aérea brasileira está no Rio de Janeiro. O ministro Pertence foi quem capitaneou o parecer contrário à cobrança, como chefe da consultoria jurídica.

ConJur — Qual foi o teor da decisão?
Paulo Bonilha — Os argumentos foram infundados. Foi dito que embarcações e aeronaves são matéria de legislação federal, e o estado não poderia cobrar. Ora, o ICMS incide sobre comunicações e serviços de transporte, matérias integralmente de competência federal. Nada impede, no entanto, que os estados cobrem. O problema é que aeronaves e embarcações são sinais de riqueza. Jet ski não é um veículo automotor? Por que não pode pagar IPVA? E os estados aceitam isso tranquilamente, porque se concentram em determinados impostos, como o ICMS, que representa 95% da arrecadação. Além disso, o IPVA tem que ser dividido com os municípios. É mais trabalho para o estado. Os especialistas e economistas também nada falaram. Ora, é um imposto importante, assim como o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos), do qual a fiscalização estadual sequer toma conhecimento.

Conjur — Que também é sobre herança, sobre riqueza.
Paulo Bonilha — Os impostos têm funções. Por que a gente fala em “sistema tributário”? Porque é preciso haver uma coordenação não só jurídica, mas econômica, entre todos os impostos. Um complementa o outro, fechando as brechas, impedindo a sonegação. O ITCMD tem uma função importante de controlar outros impostos. Quando eu seguro, por exemplo, imóveis no meu patrimônio, eu não pago lucro imobiliário, não pago Imposto de Renda. A cobrança na herança compensa um pouco o Estado. Na Europa é cobrado o “imposto sobre mão morta”, que é devido pelas empresas. Ora, uma empresa não morre. Então, se ela tiver imóveis, o Estado nunca vai cobrar a transmissão causa mortis. Por isso, a cada 30 anos, o tempo de uma geração, a empresa tem que pagar o “imposto sobre mão morta”.

ConJur — O doutor começou na área tributária trabalhando para o fisco. Isso ajudou a ampliar a visão que tem hoje?
Paulo Bonilha — Eu era agente fiscal de rendas do estado de São Paulo, e fiquei 36 anos na Secretaria da Fazenda. Naquele tempo não se falava em Direito Tributário, não havia cadeira de Direito Tributário. Mas por trabalhar na Secretaria, eu já fui me especializando, estudando mais. Lá eu pude terminar a pós-graduação, e conseguir os títulos de mestre, em 1978, e de doutor em 1991. Entre 1993 e 1994, quando eu estava saindo da Secretaria, apareceu a vaga na Faculdade de Direito da USP. Eu já era professor contratado, e então fui efetivado por meio de concurso público.

ConJur — E qual sua relação com a advocacia?
Paulo Bonilha — Eu exerci a advocacia em períodos. Não foi algo constante, mas foi muito importante, me permitiu ver o outro lado, ter uma perspectiva diferente. Como juiz do Tribunal de Impostos e Taxas, eu também examinava processos, e tinha que julgá-los, o que foi uma grande escola para mim. Eu era assessor do gabinete da Secretaria da Fazenda, e por isso fui indicado como membro do tribunal. Exerci o cargo durante 26 anos, sendo reconduzido. Saí em 1994.

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