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Implicações do teletrabalho na legislação atual

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3 de julho de 2010, 7h56

Em 1943, quando sancionou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), Getúlio Vargas — por mais que alguns lhe atribuíssem o adjetivo de visionário — jamais imaginaria que, quase 70 anos depois, aquilo que era chamado de trabalho ganhou uma configuração completamente diferente.

Com a evolução tecnológica e novas formas de organização da sociedade, o chamado teletrabalho está cada vez mais presente, criando situações não previstas pela legislação e, portanto, demandando um esforço do empregador, do empregado e da Justiça, quando houver a necessidade, para resguardar todos os direitos dos envolvidos.

Atualmente, muitas decisões são calcadas basicamente no artigo 6º da CLT, que versa sobre o trabalho em domicílio. Ele diz que “não se distingue entre o trabalho feito no estabelecimento do empregador e o executado no domicílio do empregado, desde que esteja caracterizada a relação de emprego”.

Diante das formas de relação trabalhista que se estabeleceram ao longo dos anos, esta redação pode ser considerada muito simples. No entanto, o Projeto de Lei 4.505/2008, do deputado Luiz Paulo Velozzo Lucas (PSDB-ES), tem o objetivo de atualizar a legislação e estabelecer os novos parâmetros deste tipo de trabalho.

A proposta tramita em caráter conclusivo e foi aprovada pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara. Agora vai à votação na Comissão de Constituição e Justiça.

O texto conceitua a questão como "todas as formas de trabalho desenvolvidas sob controle de um empregador ou para um cliente, por um empregado ou trabalhador autônomo de forma regular e por uma cota superior a 40% do tempo em um ou mais lugares diversos do local de trabalho regular, utilizando tecnologias informáticas e de telecomunicações".

Entre as medidas previstas no projeto de lei, o artigo 6º diz que o teletrabalhador tem basicamente os mesmos direitos e garantias estipulados na CLT, como proteção ao salário, férias, filiação sindical etc.

O advogado trabalhista Sólon Cunha, do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice, diz que não é necessária uma legislação específica para tratar da questão. "Há uma mania de o brasileiro sempre achar que o Estado precisa intervir em todas as áreas. Acredito que neste caso já existe um bom entendimento entre as empresas, empregados e sindicatos, o que garante os direitos de todos. A situação está se encaminhando para uma autoregulamentação", comenta.

Mas ele diz que há questões de suma importância que precisam ser resolvidas, principalmente em relação à sindicalização do funcionário. Como não há uma legislação própria, existem dúvidas sobre a base territorial em que se enquadra, diz o advogado. "Há muitos sindicatos atualmente, inclusive divididos por municípios, portanto, não há uma definição em relação a qual entidade o empregado deve ser filiado: se naquela onde desempenha a função ou na que estiver mais próxima da sede da empresa."

O desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Sérgio Pinto Martins, afirma que é possível legislar com base no que já existe, e que é necessária somente uma atualização em determinados aspectos da lei. "Existem algumas situações que não estão previstas atualmente, como por exemplo, o recolhimento do ISS (Imposto Sobre Serviços). Não está definido onde tem de ser feito o pagamento do tributo, se na cidade sede da empresa ou onde está o empregado. Nas demais situações ocorre a análise casuística, portanto, acredito que somente uma revisão de alguns pontos da atual legislação seria o suficiente."

Já o diretor de relações acadêmicas da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades (Sobratt), Manuel Martín Pino Estrada, diz que os juízes do trabalho não se importam muito se há teletrabalho ou não. De acordo com ele, a maior preocupação é o fato de existir a relação de trabalho, com subordinação, para que garanta os direitos ao trabalhador.

"No entanto, é necessária uma legislação para dar segurança jurídica aos trabalhadores e aos empresários que quiserem adotá-la. Quando um magistrado recebe uma reclamação trabalhista envolvendo a internet e as novas tecnologias da telecomunicação têm mais trabalho para dar a sentença do que quando acontece o contrário. Ainda temos juízes, e até desembargadores, escrevendo as sentenças à mão, o que mostra que nem todos estão familiarizados com a tecnologia", acrescenta.

O advogado especialista em Direito Eletrônico Omar Kaminski afirma que a relação de trabalho sofre algumas modificações, porque se dilui a presença do chefe e a fiscalização direta. Portanto, acredita que a CLT necessita de alguns ajustes. "Enquanto isso não acontece, as negociações coletivas podem suprir essa lacuna." Kaminski chama a atenção ainda para a questão do sobreaviso, sobretudo no que diz respeito às horas extras, que já foi discutida por conta da popularização do celular, mas que precisa ser revista diante das possibilidades criadas pela internet.

Balança
Da mesma forma como os mais entusiastas conseguem enumerar as vantagens do trabalho remoto para o empregado e empregador, o outro lado também tem a sua lista de impactos negativos causados pelo teletrabalho.

A vantagem mais óbvia em uma percepção de senso comum é basicamente a comodidade de o funcionário estar em casa e, com isso, ter mais tempo para se dedicar a outras atividades. Isso concretiza-se porque geralmente o trabalhador tem um horário flexível e desempenha a função com base naquilo que precisa produzir, excluindo o atrelamento a uma jornada específica.

Outro ponto positivo é a possibilidade de aumento do mercado de trabalho para os deficientes, que têm a possibilidade de desempenhar a função no ambiente em que vivem, já adaptado para sua condição. Como muitas empresas alegam que o custo para fazer modificações na estrutura física da sede para receber o funcionário deficiente é muito alto, elimina-se essa barreira ao permitir a atuação de casa.

Entretanto, a questão é ambígua, porque ao permitir que o portador de necessidade especial permaneça em casa, vai contra todas as políticas de inclusão que existem atualmente.

"Além da situação da própria pessoa em si, quando uma empresa tem um funcionário portador de alguma deficiência há uma contribuição em todo o ambiente, porque os colegas também farão parte da inclusão, aprendendo a conviver com a diversidade", comenta Sólon Cunha.

Sob o ponto de vista do empregador, o principal benefício da adoção do trabalho remoto é a redução de gastos. Em todos os aspectos administrativos a empresa tem condições de gastar menos: espaço físico, ajuda de custo para refeição e transporte, investimento em equipamentos e todos os encargos de se manter uma sede, como a manutenção e limpeza, por exemplo.

"Há uma flexibilização muito grande também na maneira como a empresa pode ser gerida, porque manter o funcionário em casa exclui algumas responsabilidades que só existem quando ele está na sede. Outra questão que precisa ser observada é o hábito de o empregado estar ausente, que diminui consideravelmente", comenta o advogado Alan Balaban Sasson, especialista em Direito e Processo do Trabalho.

Ele, no entanto, aponta que a iniciativa também tem pontos negativos para ambas as partes. "O funcionário que fica longe da empresa não tem uma visão do conjunto, o que pode comprometer o resultado. Além disso, ele perde o contato com os colegas e deixa de desempenhar, pelo menos presencialmente, o chamado trabalho em equipe, por mais que se comunique com os demais", explica.

Do lado do empregador, o advogado afirma que se torna mais difícil reunir todos os colaboradores para uma reunião. "Uma questão fundamental para a empresa também é a qualificação do funcionário, porque para trabalhar em casa, por exemplo, é preciso que ele tenha sido treinado para desempenhar funções cujo supervisor direto não estará do seu lado para auxiliar", acrescenta o advogado.

Exemplo
Um dos maiores centros de desenvolvimento de soluções tecnológicas do Brasil, o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (C.E.S.A.R.), começou a adotar o teletrabalho em meados de 2007, por meio de um projeto piloto.

A analista de Recursos Humanos da entidade, Carolina Ramalho, conta que o saldo da iniciativa é muito positivo para a própria instituição, mas, sobretudo, para os funcionários.

"Temos muitos relatos de pessoas que trabalham no esquema de home office que não trocariam por nada. Elas dizem que o ganho com qualidade de vida é muito grande, já que não precisam gastar tempo no trânsito e passar por outras situações de stress no deslocamento até o local de trabalho ou no próprio ambiente onde iriam atuar."

De acordo com ela, a receita para que a iniciativa dê certo é a comunicação entre todos os envolvidos no trabalho, aproveitando-se das ferramentas digitais disponíveis, como MSN, Skype e outros comunicadores instantâneos.

Apesar de a maioria dos resultados serem positivos, Carolina ressalta que não é todo funcionário que consegue se enquadrar na condição. "É preciso que a pessoa goste de fazer o trabalho em casa e seja organizada o suficiente para conseguir desempenhar as atividades de forma satisfatória. Além disso, tem uma questão histórica, porque, principalmente os mais velhos, tinham aquela mentalidade de achar que estar em casa não é trabalho. Quando alguém quer adotar essa modalidade, levamos tudo isso em consideração", acrescenta.

Para garantir que todos os direitos sejam resguardados, a analista de RH explica que o centro faz menção da atividade na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e procura especificar a condição no contrato do colaborador.

"Outra questão que levamos em consideração é a preocupação com as condições de trabalho da pessoa. Por exemplo, a ergonomia é de fundamental importância, porque o fato de estar em casa não exclui cuidados com a postura. Não adianta ficar com o computador na cama, é preciso que exista um ambiente adequado para o funcionário desenvolver suas atividades", afirma.

Tendência
Afora à legislação e os pontos positivos e negativos, o fato é que muitas empresas têm adotado o teletrabalho. De acordo com a 5ª Pesquisa sobre Uso das Tecnologias da Informação e da Comunicação no Brasil (TIC Empresas), produzida pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), com números referentes a 2009, 25% das empresas com computador e com 10 ou mais funcionários usam o trabalho remoto. Em 2006, 15% faziam uso desta modalidade e, em 2008, já haviam crescido para 21%. O levantamento colheu dados de 3,7 mil empresas em todo o país.

Segundo a pesquisa, quanto maior o porte da empresa, mais a tendência se confirma: 62% daquelas com mais de 250 funcionários, e 43% das médias, que têm entre 100 e 249 funcionários, colocam à disposição o acesso remoto ao seu sistema de computadores. O levantamento mostra que, em 2008, 31% das empresas médias utilizavam a opção.

O advogado Sólon Cunha comenta que o teletrabalho é muito comum na Europa, contando, inclusive, com uma legislação específica. "Acredito que a popularização do trabalho desta forma depende da área. No entanto, há diversos exemplos concretos de que isso já é uma realidade de grande parte das empresas. O celular com acesso à internet, por exemplo, acaba contribuindo, porque muitas pessoas não conseguem se desligar do ambiente de trabalho, checando e-mails profissionais 24 horas por dia", comenta.

O ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, também considera que o trabalho em locais fora da sede física da empresa é uma tendência crescente. Ele diz que os avanços tecnológicos permitem que determinados tipos de funções possam ser feitos de qualquer lugar do mundo.

"É uma tendência mundial a digitalização de tudo, portanto, acredito que com o trabalho vá ocorrer a mesma coisa. A única coisa que precisa ser levada em consideração é a garantia dos direitos trabalhistas para os funcionários que atuam desta forma", acrescenta.

O advogado Alan Balaban Sasson concorda com os demais. "Muitas coisas que acontecem fora do Brasil acabam sendo copiadas aqui, principalmente em relação à tecnologia. Portanto, com o teletrabalho vai ocorrer o mesmo, porque em muitos países da Europa, Ásia e nos Estados Unidos isso já é uma realidade há um bom tempo", diz.

Um exemplo dado pelo profissional ilustra muito bem para onde caminham as relações trabalhistas e a forma como o trabalho é organizado atualmente: "Lembra-se do Second Life? Além de as pessoas criarem personagens dentro deste mundo virtual, esses avatares trabalhavam e ganhavam dinheiro, que poderia ser trocado por moeda corrente do país. Então, neste caso, temos o teletrabalho literalmente e num contexto muito além do que já existe hoje".

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