Beca às favas

Procurador nu invade casa e diz que será presidente

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30 de janeiro de 2010, 13h21

O pequeno município de São Lourenço, em Minas Gerais, tem sido comarca de estranhos despachos interplanetários. Pelo menos foi o que contou o procurador da República A.B., tranquilamente sentado na espreguiçadeira de uma das propriedades da região, tipicamente rural. O episódio não teria mais que contornos ficcionais não fosse o estado do procurador: completamente nu, aguardando a chegada da polícia, depois de ter andando a esmo durante a noite e feito algumas visitas às famílias locais.

Aos donos da casa que invadiu, A.B. contou haver recebido uma missão especial naquela mesma noite de 7 de dezembro de 2008. Disse ter sido comissionado por extraterrestres a algo de que ainda não sabia, mas que teria de fazer em uma das casas do condomínio. Por isso, teria de chegar nu e vestir as roupas que o estavam esperando na casa de número 9. Como a residência estava trancada, ele acabou não conseguindo cumprir seu objetivo. O procurador não soube explicar, mas disse que a missão tinha algo a ver com sua eleição a presidente da República em 2012 — o que deixa tudo mais claro.

A explicação dada pelo procurador à Justiça foi bem menos psicodélica. Ele afirmou que entrou na propriedade porque imaginou que estivesse vazia. Em uma defesa escrita, A.B. contou ter saído à noite do hotel em que estava hospedado para andar. Próximo a um córrego, escorregou, caiu e molhou a roupa. Correu para a primeira residência que viu e, achando que estava vazia, tirou e estendeu as roupas sobre a grama e escondeu-se em uma sauna, onde passou a noite. No dia seguinte, entrou em outra casa procurando roupas, mas ouviu gritos. Ao sair, conversou com um morador e com o síndico, que lhe trouxeram trajes secos

Passados mais de dois anos, nenhum ufólogo do Ministério Público Federal ainda conseguiu desvendar o mistério. O que a Procuradoria-Regional da República em Minas Gerais tentou, sem sucesso, foi arquivar o inquérito por quebra de decoro e invasão de domicílio, alegando sandice. Em agosto do ano passado, a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região rejeitou o pedido, afirmando que o possível desequilíbrio psicológico do procurador não pode extinguir a apuração dos fatos, mas sim desencadear outro processo paralelo, um incidente de insanidade mental, para se concluir sobre sua inimputabilidade total ou parcial.

De acordo com o voto do desembargador federal Cândido Ribeiro, relator do processo, o caso teve de ser encaminhado ao procurador-geral da República, à Corregedoria do Ministério Público e ao Conselho Nacional do Ministério Público. O surto de A.B. jamais teve precedentes, segundo informações das delegacias de polícia locais e do serviço médico da PGR da 1ª Região. Segundo o próprio procurador, ele não sofre de problemas psiquiátricos, não toma remédios fortes, nem usa drogas ou consome bebidas alcoolicas.

Leia o voto do desembargador federal Cândido Ribeiro, que conta a história.

INQUÉRITO POLICIAL 2009.01.00.024791-3 – MINAS GERAIS

RELATÓRIO

O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO (RELATOR): Trata-se de Procedimento Administrativo Criminal (MPF/PGR 1.00.000.000661/2009-26), instaurado por determinação do Procurador-Geral da República Antônio Fernando Barros e Silva de Souza (fl. 8), que, com base no parágrafo único do art. 18 da Lei Complementar 75/93, designou o Procurador Regional da República Alexandre Espinosa Bravo Barbosa (fl. 17), para apreciar e adotar as providências que entender cabíveis, em relação aos fatos envolvendo o Procurador da República A.B., noticiados no Boletim de Ocorrência 22472, de 07/12/2008, da 41ª Delegacia Regional de Polícia Civil, em São Lourenço/MG (fls. 11/12), e no Termo de Representação Criminal assinado por Carolina Velloso de Lima – RG 11.464.7712 IEP/RJ (fl. 13), que teve a sua residência por ele invadida, na referida data, completamente despido.

Por considerar que o fato imputado ao Procurador da República A.B. pode ser considerado, em tese, crime de violação de domicílio (art. 150 do Código Penal), o Procurador Regional da República Alexandre Espinosa Bravo Barbosa determinou: (a) a notificação do representado, para manifestação; (b) a requisição de informações à Corregedoria do MPF, sobre a existência de representação sobre o referido fato; (c) a requisição à 41ª Delegacia Regional de Polícia Civil de São Lourenço/MG de cópia dos depoimentos dos envolvidos e da vítima, citados no aludido Boletim de Ocorrência; e (d) requisição de informações ao Serviço Médico da PGR, sobre a existência de histórico de problemas psiquiátricos do representado, considerando a menção registrada no referido Boletim de Ocorrência (fl. 20).


O Serviço Médico da PGR informou não haver nenhum registro referente ao investigado (fl. 27).

A Corregedoria Geral do Ministério Público Federal informou não existir procedimento apuratório acerca dos fatos (fl. 28)

Em seguida, o Procurador Regional da República Alexandre Espinosa Bravo Barbosa solicitou ao eminente Procurador-Geral da República Antônio Fernando Barros e Silva de Souza a designação do Procurador Regional da República Elton Ghersel, para atuação conjunta na apuração dos fatos, no que foi atendido (fl. 31).

O Procurador da República A.B., ora investigado, manifestou-se sobre os fatos a ele imputados, alegando, em apertada síntese, que: (a) pensou tratar-se de uma propriedade rural desabitada; (b) não sofre de problemas psiquiátricos, nem faz uso de qualquer medicamento isolado ou associado à terapia; e (c) não faz uso de bebidas alcoólicas ou substâncias ilícitas (fls. 34/39).

Após a referida manifestação, o Procurador Regional da República determinou: (a) a intimação da vítima Carolina Velloso de Lima e de seu namorado Martin Lucas Brabner, para prestar depoimento; (b) a oitiva das testemunhas identificadas no referido Boletim de Ocorrência; e (c) a intimação do investigado para ser interrogado (fl. 40); tendo sido expedidos os respectivos ofícios (fls. 41/45).

A representante Carolina Velloso de Lima e de seu namorado Martin Lucas Brabner prestaram os respectivos depoimentos (fls. 47/49 e 50/51).

O investigado foi devidamente interrogado, oportunidade em que ratificou os termos da manifestação prestada anteriormente e respondeu as perguntas que lhe foram formuladas (fls. 52/54).

Das testemunhas identificadas no aludido Boletim de Ocorrência, apenas Antonio Popolízio Neto foi ouvido (fls. 58/59), uma vez que não foi possível localizar o síndico do condomínio onde ocorreram os fatos objeto da investigação, Celestino Santos de Lima, que reside no Município de São Paulo (fl. 57).

A Delegada de Polícia Claudia Aparecida Evaristo Jacinto, da 41ª Delegacia Regional de Polícia Civil, em São Lourenço/MG, encaminhou uma cópia do Boletim de Ocorrência 22472, de 07/12/2008 (fls. 61/63).

O Procurador Regional da República Alexandre Espinosa Bravo Barbosa determinou a baixa no procedimento administrativo criminal e a remessa dos autos a este Tribunal (fl. 64), com manifestação pelo arquivamento do feito (fls. 02/06), também subscrita pelo Procurador Regional da República Elton Ghersel, nos seguintes termos, verbis:

Cuida-se de procedimento investigatório criminal – peças de informação (CPP, art. 28 e RI/TRF1, art. 243) -, instaurado para apuração de prática de crime (CP, artigo 150), em tese, praticado pelo Procurador da República A.B., conforme noticiado no Boletim de Ocorrência 22472/08, da 41ª Delegacia de Polícia de São Lourenço/MG.

Consta no referido documento a comunicação feita por Carolina Velloso de Lima de que, em 07 de dezembro de 2008, seu imóvel localizado no Condomínio Estância São Lourenço foi invadido por André Luiz Tarquínio, que se encontrava completamente despido. A ocorrência noticia que o membro do MPF havia perdido suas roupas e documentos às margens da rodovia daquela zona rural e teria entrado na residência julgando ser o local desabitado.

Notificado, o investigado apresentou defesa escrita às fls. 27/32, na qual assevera que saíra do hotel á noite para caminhar e, no percurso, escorregou e caiu em um córrego, ficando com a roupa molhada. Devido ao frio, procurou abrigo, vindo a avistar, às margens da rodovia, uma propriedade rural que lhe parecia abandonada ou vazia. Não encontrando ninguém, retirou suas roupas, estendeu-as na entrada do terreno e refugiou-se em uma espécie de sauna, onde passou a noite. No dia seguinte, relata que viu uma casa, na qual entrou em busca de roupas secas, momento em que foi surpreendido por um grito. Retirou-se da residência e foi interpelado por um morador e depois pelo síndico do condomínio. Após, um terceiro trouxe-lhe roupas secas, as quais vestiu. Depois foi encaminhado à Delegacia de Polícia em São Lourenço/MG.

Durante as investigações, procedeu-se à oitiva da vitima Carolina Velloso de Lima (fls. 40/42), de seu namorado Martin Lucas Brabner (fls. 43/44) e da testemunha Antônio Popolízio Neto (fls. 51/52), bem como o interrogatório de André Luiz Tarquínio (fls. 45/46).


A vítima Carolina Velloso de Lima, ouvida no âmbito desse Procedimento investigatório criminal, às fls. 40/42, declarou:

‘(…) que, no dia início do mês de dezembro de 2008, em data próxima a um feriado, a depoente viajou para a cidade de São Lourenço/MG, hospedando-se na casa de veraneio de sua genitora, no lugar conhecido como Estância São Lourenço, que fica aproximadamente 9 km da cidade, na casa 07; que no domingo pela manhã, por volta das seis e meia, a depoente e seu namorado, Sr. Martin Luter Brabner, dormiam na sala da casa, quando foi acordada pelo barulho da abertura da porta da cozinha; que se levantou e viu que uma pessoa desconhecida havia entrado na cozinha e estava atrás do balcão que separa essa peça da sala; que podia ver o desconhecido da cintura para cima; que esse desconhecido falava sem parar coisas sem nexo que a depoente não pode entender; que quando essa pessoa saiu de trás do balcão pode ver que ele estava completamente nu; que temeu ser atacada pelo desconhecido e por isso abriu a janela com a intenção de fugir; que nesse momento o Sr. Martin dirigiu-se ao desconhecido, ordenando que saísse imediatamente da casa e o aguardasse lá fora, no que foi prontamente atendido; que a depoente e seu namorado fecharam a janela e trancaram a porta da cozinha, podendo observar que o desconhecido foi até a casa de número 09 e sentou-se na varanda; que, logo depois, ao verificar a movimentação de carros se sentiu mais segura e foi comprar cigarros; que ao sair percebeu que o desconhecido tinha sido abordado por dois vizinhos, um de nome Neto e outro o síndico do condomínio; que também observou roupas, que supõem ser do desconhecido, jogadas no chão; que na venda onde foi comprar cigarros, ouviu pessoas comentarem ter visto alguém se despir e pular o muro do condomínio, por volta das cinco e meia daquele dia; que pouco depois chegou uma viatura da policia e ouviu um dos policiais dizer para o desconhecido: “André, você de novo”; que André passou a falar normalmente com os policiais, pedindo para não avisar seus pais para não preocupá-los e também pedindo desculpas à depoente; que os vizinhos da depoente comentaram que André teria “levado um fora” da namorada e teria surtado; que o Boletim de Ocorrência foi lavrado no Condomínio e que no dia seguinte a depoente assinou o termo de representação da fl. 07; que pode afirmar com certeza que André é a pessoa cuja fotografia se encontra nas carteiras fotocopiadas às fls. 09; que não se recorda se havia chovido no dia anterior; que na casa em que estava a depoente há uma lavanderia, com dispensa, quarto de empregada e banheiro, mas acredita que estas peças estavam trancadas na noite dos fatos.

Os fatos declarados pela vítima Carolina foram confirmados por seu namorado Martin Lucas Brabner (fls. 43/44), que se encontrava no mesmo local:

‘(…) que no final do ano passado, não recordando da data, viajou com sua namorada Carolina para a cidade de São Lourenço/MG, hospedando-se em uma casa de veraneio da mãe dela, no Condomínio Estância São Lourenço; que na manhã do dia seguinte foi acordado por Carolina, quando se deparou com um desconhecido despido dentro da casa, próximo à porta da cozinha; que esse desconhecido falava sem parar coisas sem nexo que o depoente não pode entender; que o depoente ordenou que essa pessoa se retirasse da casa, no que foi obedecido; que observou que o desconhecido ficou sentado em uma varanda de uma casa vizinha e logo depois chegaram outros condôminos e a policia; que, após, foi comprar cigarros e observou roupas, que supõem ser do desconhecido, jogadas no chão; que, no caminho do bar, um senhor teria comentado ter visto alguém se despir e pular o muro do condomínio algumas horas antes; que os policiais sabiam que o desconhecido se chamava André e comentaram alguma coisa como “você de novo”; que André pediu desculpas ao depoente; que André é a pessoa cuja fotografia está às fls. 09; que não se recorda se estava frio ou se havia chovido na véspera.’

O investigado André Tarquínio da Silva, em seu interrogatório às fls. 45/46, ratificou os termos da defesa apresentada às fls. 27/32, esclarecendo ainda que imaginou que o local fosse um clube e não uma residência:

‘(…) Às perguntas formuladas respondeu que é Membro do Ministério Público Federal desde 15 de março de 2004; que ratifica os termos da defesa apresentada às fls. 27/32, afirmando que os fatos se passaram da forma ali descritos; que esclarece que logo ao entrar na residência, percebendo a presença de pessoas na sala, pediu que ficassem tranqüilas, dizendo que iria se retirar do lugar, pois pensou que o local estava desabitado; que ao sair da residência foi até a varanda de uma casa vizinha, esperando alguém que lhe pudesse prestar assistência, pois suas roupas estavam sem condições de uso; que naquela mesma semana havia sido abordado por policiais militares em razão de um incidente de trânsito, reconhecendo nesse episódio um deles (o mais alto), que participara da abordagem anterior; que naquela oportunidade recebeu três multas, das quais recorreu e foi vitorioso; que acredita que em razão desse episódio com os policiais surgiu a insistência deles para que ocorresse a representação contra o interrogado, apesar de ter esclarecido a situação e pedido desculpas à vitima; que seus documentos pessoais e sua carteira funcional haviam sido perdidos na noite anterior, quando caiu em uma poça de água ou rio, e foram encontrados pelos policiais depois dos fatos, tendo sido entregues ao seu pai tempos depois; que quando chegou no condomínio o dia ainda não havia amanhecido, estando muito escuro; que na época não tinha namorada e também não teve desentendimento com qualquer pessoa na véspera dos fatos; que essa situação tem sido muito constrangedora, gerando preocupações, inclusive, para seus familiares; que não tinha conhecimento que a casa estava habitada e, portanto, não tinha intenção de invadir o domicílio; que imaginou que o local pudesse ser um clube e não uma residência: que buscou abrigo no local justamente para evitar ser visto sem roupas, evitando qualquer constrangimento para pessoas que pudessem vê-lo naquela situação; que não teria nenhum motivo para invadir o domicílio da senhora, mesmo porque não sabia que estava habitado, como dito anteriormente.’


A testemunha Antônio Popolízio Neto, em seu depoimento às fls. 51/52, aduziu, em síntese, que, por volta das 7h de 07.12.2008, viu um homem despido sentado na varanda da casa 09 do Condomínio Estância. E mais, que após algum tempo de conversa, André revelou ser procurador da república e apresentava ser uma pessoa muito educada. Noticiou ainda que as roupas e os documentos foram encontrados próximos ao portão do condomínio:

‘(…) Que o depoente reside no endereço constante da qualificação, o qual se situa na zona rural do município de São Lourenço distante cerca de 9 km; que o condomínio situa-se aproximadamente 100 metros da rodovia que liga São Lourenço a Pouso Alto, que, por sua vez, é asfaltada; que por volta das 7h da manhã do dia 07 de dezembro de 2008 o depoente, residente na casa nº 14 do condomínio, foi chamado pelo síndico, Sr. Celestino Santos de Lima, a fim de constatar uma situação inusitada; que o Sr. Celestino disse ao depoente que havia um homem completamente despido, sentado em uma cadeira na varanda da casa de nº 9; que o depoente para lá se dirigiu e constatou a veracidade das afirmações do síndico; que o depoente travou uma conversa com a referida pessoa, a qual se identificou como sendo André Tarquínio; que o depoente perguntou a André qual o motivo de se encontrar naquele lugar e naquela circunstância; que André afirmou que sua roupa estaria guardada dentro da casa de nº 9, a qual se encontrava fechada; que aprofundando as conversas, André revelou ao depoente que o mesmo recebera uma mensagem de extraterrestres dizendo que ele possuiria uma missão a cumprir naquele condomínio e que suas roupas se encontrariam na casa de nº 9; que André afirmou, ainda, que no ano de 2012 seria eleito Presidente da República; que após algum tempo conversando, André revelou ser Procurador da República; que na verdade as roupas de André foram encontradas algum tempo depois próximas ao portão eletrônico que dá acesso ao condomínio; que as roupas estavam molhadas, sujas de barro, mas não rasgadas; que junto das roupas estavam todos os documentos de André; que foi apurado que André, antes de se sentar na varanda da casa 9, entrou dentro da casa de nº 7, onde se encontrava a vítima Carolina Veloso de Lima juntamente com seu companheiro, que a vítima esta nervosa no momento e manifestou interesse em processar André; que o síndico Celestino houve por bem acionar a Polícia Militar; que um dos policiais comentou em voz baixa com André a seguinte expressão “pô, você de novo aqui, em São Lourenço!”; que durante a conversa com o depoente, André aparentava estar calmo e parecia ser uma pessoa equilibrada e muito educada, apesar de suas “loucuras”; que o depoente não constatou nenhum indício de uso de álcool ou drogas; que seus olhos não estavam vermelhos; que André não possuía escoriações pelo corpo; que não havia nenhuma outra pessoa junto a André por ocasião dos fatos; que após a chegada da polícia andré foi encaminhado a delegacia de Polícia Civil deste município, mas o depoente não chegou a prestar depoimento; que em nenhum momento o depoente pode constatar maldade ou violência na conduta de André.”

Como se observa dos autos, A.B. ingressou despido em residência alheia, fato que, em tese, configuraria a prática do delito prescrito no art. 150 do Código Penal, verbis:

Art. 150. Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena- detenção, de 1 (um) a 3 (três) meses, ou multa.

Na violação de domicílio, o tipo penal abrange a conduta objetiva – entrar ou permanecer em casa alheia ou em suas dependências – e o elemento subjetivo – dolo consistente na vontade livre e consciente de entrar ou permanecer em casa alheia ou suas dependências, sem o consentimento de quem de direito.

No caso em questão, o fato é que sabendo ou não tratar-se de uma residência ocupada, o investigado nela ingressou sem clandestinidade ou qualquer outro elemento que possa caracterizar astúcia, e não demonstrou o propósito de nela permanecer contra a vontade de seus ocupantes, pois se retirou tão logo solicitado a fazê-lo como se extrai dos autos:


 

Defesa apresentada pelo investigado (fls. 29/30)

´7. Tomei a difícil decisão, na constrangedora situação em que me encontrava, de verificar se na referida casa – que prensei estivesse abandonada, uma vez que a porta dos fundos, embora encostada, não estava trancada – havia alguma roupa que eu pudesse temporariamente usar.

Contudo, logo vi que eu estava completamente equivocado, pois assim que adentrei na casa fui surpreendido por um grito de mulher (…)

8. Notando o enorme mal-entendido da situação, a minha primeira atitude foi de resguardar as partes íntimas do meu corpo, a fim de impedir um constrangimento ainda maior. Imediatamente em seguida, pedi que tivessem calma, explicando que eu iria retirar-me naquele momento, e que não tinha conhecimento de que havia moradores na casa.

Então me retirei da casa (…)”

 

Termo de depoimento de Carolina Velloso de Lima (fls. 40/41)

‘que no domingo pela manhã, por volta das seis e meia, a depoente e seu namorado, Sr. Martin Luter Brabner, dormiam na sala da casa, quando foi acordada pelo barulho da abertura da porta da cozinha; que se levantou e viu que uma pessoa desconhecida havia entrado na cozinha e estava atrás do balcão que separa essa peça da sala; que podia ver o desconhecido da cintura para cima; que esse desconhecido falava sem parar coisas sem nexo que a depoente não pode entender; que quando essa pessoa saiu de trás do balcão pode ver que ele estava completamente nu; que temeu a ser atacada pelo desconhecido e por isso abriu a janela com a intenção de fugir; que nesse momento o Sr. Martin dirigiu-se ao desconhecido, ordenando que saísse imediatamente da casa e o aguardasse lá fora, no que foi prontamente atendido; ’

 

Termo de depoimento de Martin Lucas Brabner (fls. 43/44)

‘que na manhã do dia seguinte foi acordado por Carolina, quando se deparou com um desconhecido despido dentro de casa, próximo á porta da cozinha; que esse desconhecido falava sem parar coisas sem anexo que o depoente não pode entender; que o depoente ordenou que essa pessoa se retirasse da casa, no que foi obedecido;’

Em casos similares, a jurisprudência tem entendido que não configura o delito de invasão de domicilio o mero ingresso em casa alheia, sem utilização da clandestinidade ou astúcia e, ainda, quando o agente se retira imediatamente ante a oposição do morador ou por quem de direito:

‘Sem o pressuposto do dolo não há como falar-se no crime de invasão de domicílio, visto que é mister, para integrá-lo, a vontade consciente de ingressar e permanecer ilegalmente no domicílio alheio. Se alguém penetra no interior do domicílio alheio sem valer-se de processos astuciosos ou da clandestinidade é porque age sem invito domino, com plena consciência de que o faz legitimamente’ (TACRSP RT 601/351)

‘Inexistente o dolo específico de penetrar ou permanecer na casa de outrem contra a vontade deste, não há se falar no crime previsto no art. 150 do CP, mormente se o proprietário, com a invasão, não sofreu nenhum dano material ou prejuízo’ (TJAC RT 758/587)

‘Indispensável à configuração do crime de violação de domicílio, o dolo específico, de penetrar ou permanecer na casa de outrem, contra a vontade deste’ (TACRSP RT 432/346).

Assim, ausentes os elementos caracterizadores do delito previsto no art. 150 do Código Penal, conclui-se pela atipicidade da conduta.

Também não se poderia, devido à nudez, imputar ao investigado a prática do delito prescrito no art. 233 do diploma penal (ato obsceno) e nem a contravenção penal de imputação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61), mesmo porque as normas em questão têm por objetivo resguardar o pudor público de situações que possam evidentemente constituir constrangimento às pessoas em lugar público, aberto ou exposto ao público, o que não foi o caso dos autos.

Ante o exposto, requer o ARQUIVAMENTO do presente feito, na norma preceituada no art. 28 do CPP, ressalvando-se, contudo, o disposto no art. 18 de mesmo diploma legal.” (Fls. 2/6.)

É o relatório.

6.8.2009

Corte Especial

INQUÉRITO POLICIAL 2009.01.00.024791-3 – MINAS GERAIS

VOTO

O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CÂNDIDO RIBEIRO (Relator): Como se viu do relatório, trata-se de Procedimento Administrativo Criminal instaurado para apurar os fatos envolvendo o Procurador da República A.B., noticiados no Boletim de Ocorrência 22472, de 07/12/2008, da 41ª Delegacia Regional de Polícia Civil, em São Lourenço/MG (fls. 11/12), e no Termo de Representação Criminal assinado por Carolina Velloso de Lima – RG 11.464.7712 IEP/RJ (fl. 13), que teve a sua residência por ele invadida, na referida data, completamente despido, em que a PRR/1ª Região requer o arquivamento, por entender ausentes os elementos caracterizados dos delitos previstos nos art. 150 (violação de domicílio) e 233 (ato obsceno) do Código Penal, e da contravenção penal prevista no art. 61 (importunação ofensiva ao pudor) da LCP.


Não obstante os fundamentos da manifestação da PRR/1ª Região, penso, data máxima vênia, que os fatos, até aqui apurados, estão a merecer um exame mais apurado, antes de se concluir pelo arquivamento das peças de informação.

Com efeito, o Código Penal Brasileiro prevê como crime, em seu art. 150, a conduta de “Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”.

Segundo o professor Cezar Roberto Bitencourt, o bem jurídico protegido nesse tipo penal é a liberdade individual “na sua expressão mais elementar, que é a inviolabilidade domiciliar, a invulnerabilidade do lar, que é o lugar mais recôndito que todo o ser humano deve possuir, para encontrar paz, tranqüilidade e segurança junto aos seus familiares. A intimidade e a privacidade, que são aspectos da liberdade individual, assumem dimensão superior no recesso do lar e aí, mais que em qualquer outro lugar, necessitam de irrestrita tutela legal, justificando-se, inclusive, a proteção constitucional (art. 5º, X)” (Código Penal Comentado, Editora Saraiva, 3ª edição, p. 613).

Ainda segundo o referido professor, “Entrar significa introduzir-se, penetrar, ingressar, ou até mesmo invadir; permanecer significa ficar, continuar, conservar-se dentro. A permanência pressupõe a entrada lícita, incriminando-se a recusa em sair: o sujeito ativo entra licitamente nesse caso, mas insisti em ficar contra vontade de quem de direito. Nada impede, porém, que o sujeito ativo entre astuciosa ou clandestinamente, isto é, de forma ilícita, e, descoberto (o crime já consumado na modalidade de entrar), recuse-se a sair, contrariando a vontade e determinação de quem de direito. Nesse caso, não pratica dois crimes, pois se trata de crime de ação múltipla” (Código Penal Comentado, Editora Saraiva, 3ª edição, p. 617).

Assim sendo, o fato do investigado ter atendido prontamente à determinação de Martin Lucas Brabner, namorado da representante Carolina Velloso de Lima, para sair da casa 7, do condomínio Estância São Lourenço, deixando assim de permanecer na referida residência, na qual o casal estava dormindo, não afasta, em tese, a adequação típica do aludido tipo penal, caracterizada pela entrada, clandestina ou astuciosa, em casa alheia ou em suas dependências, contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito.

Por sua vez, penso que os poucos elementos colhidos no procedimento investigatório não autorizam a imediata conclusão pela inexistência de dolo na conduta do investigado, uma vez que existem circunstâncias fáticas nebulosas, que não foram devidamente esclarecidas.

De fato, o investigado afirmou em sua manifestação preliminar, ratificada quando do interrogatório, que, ainda no dia 06/12/2008, por volta de 20h30, saiu do hotel em que se “encontrava hospedado, na cidade de São Lourenço/MG, para caminhar” (fl. 35); que caminhou “talvez mais de 6 (seis) quilômetros, na estrada que liga o município de São Lourenço ao de Pouso Alto” (fl. 35), quando escorregou e caiu “para fora do acostamento, já em um filete de água, numa espécie de córrego, à margem da rodovia” (fl. 35); que, por estar molhado e com muito frio, depois de caminhar por cerca de 5 (cinco) minutos às margens da rodovia, avistou uma propriedade rural que lhe pareceu “abandonada ou vazia” (fl. 35), não vendo “outra alternativa que não fosse adentrar na mencionada propriedade rural” (fl. 35). Como não encontrou ninguém na referida propriedade rural, viu-se forçado a despir-se, “deixando que as roupas secassem, na entrada da propriedade” (fl. 36).

Contudo, não há nos autos comprovação da alegada hospedagem, nem mesmo menção ao nome do hotel, do qual o investigado disse que saiu para caminhar, ainda no dia 06/12/2008, por volta de 20h30. Por sua vez, a representante Carolina Velloso de Lima disse, em seu depoimento, que “ouviu pessoas comentarem ter visto alguém se despir e pular o muro do condomínio, por volta das cinco e meia daquele dia: que pouco depois chegou uma viatura da polícia e ouviu um dos policiais dizer para o desconhecido: ‘André, você de novo’” (fl. 48). Essa versão encontra amparo no depoimento de Martin Lucas Brabner, quando disse que: “um senhor teria comentado ter visto alguém se despir e pular o muro do condomínio algumas horas antes; que os policiais sabiam que o desconhecido se chamava André e comentaram alguma coisa como ‘você de novo’.” (fl. 51).


A discrepância entre os horários, que não permite concluir quando efetivamente o investigado entrou na propriedade e despiu-se; a enorme diferença entre propriedade rural, que se adentra facilmente, e condomínio murado com portão eletrônico, que exige procedimento astucioso; o local em que as roupas foram deixadas, se “na entrada da propriedade” (fl. 36), como alega o investigado, ou “próximas ao portão eletrônico que dá acesso ao condomínio” (fl. 59), conforme afirmou a testemunha Antônio Popolízio Neto, são circunstâncias que afastam qualquer certeza sobre o ocorrido, considerando-se, principalmente, o fato de que os policiais que atenderem ao chamado do síndico do condomínio não foram ouvidos no procedimento administrativo criminal, embora conste nos autos indícios de que conheciam muito bem o Procurador da República A.B., tanto pelos depoimentos prestados por Carolina Velloso de Lima (fls. 47/49) e Martin Lucas Brabner (fls. 50/51), como também pelo depoimento da referida testemunha Antônio Popolízio Neto, quando afirma “que um dos policiais comentou em voz baixa com André a seguinte expressão: pô, você de novo por aqui, em São Lourenço!’”( fl. 59).

Portanto, considerando que a conduta investigada, em tese, encontra adequação típica no art. 150 do Código Penal, não vejo como acolher a manifestação da PRR/1ª Região, para determinar o arquivamento do feito.

Por outro lado, o Código Penal Brasileiro, em seu art. 233, também considera crime “Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público”, que tem como finalidade proteger a moralidade e o pudor público, sendo irrelevante a presença de pessoas ou que estas se sintam ofendidas, sendo suficiente a possibilidade de sua ocorrência para tipificar o aludido delito.

No caso, a testemunha Antônio Popolízio Neto, em seu depoimento (fls. 51/52) aduziu, no ponto que interessa, que, “por volta das 7h da manhã, do dia 7 de dezembro de 2008, o depoente, reside na casa 14 do condomínio, foi chamado pelo síndico, Sr. Celestino Santos de Lima, a fim de constatar uma situação inusitada; que o Sr. Celestino disse ao depoente que havia um homem completamente despido, sentado em uma cadeira na varanda da casa 9; que o depoente para lá se dirigiu e constatou a veracidade das afirmações do síndico; que o depoente travou uma conversa com a referida pessoa, a qual se identificou como sendo André Tarquino; que o depoente perguntou a André qual o motivo de se encontrar naquele lugar naquela circunstância; que André afirmou que sua roupa estaria guardada dentro da casa 9, a qual se encontrava fechada” (fl. 58).

Ora, considerando que Carolina Velloso de Lima foi acordada, na casa 7 do aludido condomínio, por volta das seis e meia da manhã, pelo investigado, que se encontrava totalmente despido, e que dessa forma saiu da referida residência, por determinação de Martin Lucas Brabner, e foi sentar-se em uma cadeira na varanda da casa 9, não vejo afastar a prática, em tese, de ato obsceno em lugar público e aberto ou exposto ao público , pelo investigado.

Também por esse motivo, considerando que a conduta do investigado, em tese, encontra adequação típica no art. 233 do Código Penal, não vejo como acolher a manifestação da PRR/ 1ª Região, para determinar o arquivamento do feito.

Poder-se-ia dizer, é verdade, que os 3 (três) depoimentos colhidos no Procedimento Administrativo Criminal (MPF/PGR 1.00.000.000661/2009-26) trazem dúvidas quanto à sanidade mental do investigado. Carolina Velloso de Lima disse que ele “falava sem parar coisas sem nexo que a depoente não pode entender” (fl. 48). Martin Lucas Brabner também afirmou que ele “falava sem parar coisas sem nexo que o depoente não pode entender” (fl. 50). O testemunho de Antônio PopoIízio Neto foi ainda mais detalhista, ao informar que: “aprofundando as conversas, André revelou ao depoente que o mesmo recebera uma mensagem de extraterrestres dizendo que ele possuiria uma missão a cumprir naquele condomínio e que suas roupas se encontrariam na casa 9; que André afirmou, ainda, que no ano de 2012 seria eleito Presidente da República; que após algum tempo conversando , André revelou ser Procurador da República” (fls. 58/59).

De qualquer forma, a dúvida sobre a sanidade mental do ora investigado não autoriza o arquivamento do feito. Pelo contrário, recomenda a instauração do respectivo incidente de insanidade mental, que será processado em separado, para apurar a sua eventual inimputabilidade ou semi-imputabilidade.

Diante de todo exposto, por considerar improcedentes as razões invocadas pela PRR/1ª Região para pedir o arquivamento do feito, voto pela remessa dos autos ao Procurador-Geral da República, nos termos do art. 28 do Código de Processo Penal, e de cópia deste feito ao Corregedor-Geral do Ministério Público Federal, por possível inobservância do disposto no art. 236, inciso X, da Lei Complementar 75, de 20/05/1993, bem como ao Conselho Nacional do Ministério Público, para conhecimento e providências eventualmente cabíveis.

É como voto.

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