Ativismo ministerial

MP adota ativismo e intervém em políticas públicas

Autor

30 de janeiro de 2010, 4h27

Não é de hoje que a expressão "ativismo judicial" causa arrepios nos administradores públicos. Criada para designar, entre outras coisas, medidas judiciais que interferem no trabalho dos gestores do Executivo, a locução começa a criar raízes também no Ministério Público. Se as decisões ativistas têm como característica não só ordenar que o poder público resolva um problema, mas também de dizer de que maneira fazê-lo, muitas Ações Civis Públicas seguem o mesmo exemplo de supertutela. Questões como a venda de brinquedos em redes de fast food, contestação ao novo padrão de plugues e tomadas elétricas do Inmetro, o acréscimo de rampas de acesso para cadeirantes em casas populares em construção, regras para barraquinhas na praia e até a escolha do nome de alguns refrigerantes deixaram de ser assuntos de normatização exclusiva do Legislativo ou do Executivo — e de suas agências reguladoras — para ocupar as mesas do Judiciário em pedidos do MP.

Foi o caso dos brindes que acompanham os lanches infantis das redes McDonald’s, Bob’s e Burguer King. O Ministério Público Federal de São Paulo retesou o arco em direção às gigantes do fast food, acusando-as de estimular o consumo infantil de alimentos calóricos, gordurosos e com alto teor de açúcar. Em uma demonstração elogiável de conhecimento dos problemas de obesidade infantil que tanto preocupam os médicos, o MPF esqueceu apenas um detalhe: são os pais quem compram as guloseimas.

“Entremostra-se hipertrófica a ingerência estatal, ao menos nessa fase processual, de forma a suprimir as atribuições próprias do grupo familiar, dos pais e responsáveis, na avaliação da adequação da dieta das crianças e dos adolescentes”, disse o juiz Euricco Zecchin Maiolino, substituto na 15ª Vara Federal Cível paulistana, que analisou o pedido em julho do ano passado. Em bom português, o juiz considerou que a proibição tiraria das famílias e atribuiria ao Estado a responsabilidade pela escolha da alimentação de todas as crianças, uma completa inversão de papeis.

Além disso, Maiolino entendeu que qualquer restrição que se fizesse à prática deveria atingir todas as lanchonetes, e não apenas as três visadas. “A disseminada prática comercial remanesceria para uma infinidade de lanchonetes, restaurantes, fabricantes de doces e guloseimas que se destinam ao consumo precípuo de crianças e adolescentes”, disse. O caso entrou na Justiça em junho do ano passado, mas ainda não teve uma decisão definitiva em primeira instância.

O exemplo mostra que, se é difícil elaborar políticas públicas por meio de instrumentos representativos por excelência, como projetos de lei e normas de agências regulamentadoras — debatidos à exaustão nos audiórios do Legislativo e do Executivo —, o caminho da Justiça, embora mais rápido, pode ser também mais complicado.

Uma coisa, outra coisa
É o que conta o advogado Luiz Gustavo de Oliveira Ramos, que enfrentou um nonsense judicial no Ceará. Segundo ele, uma ação civil do MP estadual exigia que os supermercados afixassem, nas gôndolas de latas de leite em pó, a placa informativa — ou nem tanto: “isto não é leite”. A ideia era que o consumidor não confundisse pó com líquido. “Imagine a confusão dos compradores ao ler uma coisa no rótulo e outro na gôndola. Em quem acreditar?”, diz o advogado, sócio do escritório Rayes, Fagundes e Oliveira Ramos Advogados. De acordo com Ramos, o caso terminou com um acordo entre supermercados e o Ministério Público, que agora os fabricantes lutam na Justiça para derrubar.

O argumento foi o mesmo para outra ação repercutir no ano passado. A Coca-Cola e a Pepsico sentaram-se no banco dos reús, acusadas de confundir o consumidor por vender refrigerantes com nomes semelhantes ao da água. H2OH! e Aquarius Fresh, segundo a Ação Civil Pública do MPF do Distrito Federal, ajuizada em setembro, poderiam ser comprados por desavisados como se fossem água e, por isso, o registro das marcas no Instituto Nacional de Propriedade Industrial deveria ser suspenso e anulado. 

De nada adiantou as empresas terem seguido todos os trâmites legais necessários. Registro no INPI, no Ministério da Agricultura, assinatura de um termo de conduta com o Ministério Público estadual de São Paulo e até uma ação já ganha na Justiça Federal — no caso da Pepsico — não pesaram na decisão do MPF de contestar os nomes outra vez.

“Há matérias que exigem conhecimento técnico que o Ministério Público não tem. É por isso que existem agências reguladoras como a Anvisa, a Aneel e a ANP, por exemplo”, diz Ramos. “A intenção do MP é saudável, mas os mecanismos à disposição do Ministério não são os mais adequados.” Para o advogado, especialista em Direito Empresarial, as ações do MP seriam mais efetivas se visassem os entes que elaboram as regras, e não os operadores do mercado.

No ano passado, além de ver a H2OH! correr o risco de perder sua marca, a Ambev, que a fabrica, recebeu outra notificação. Dessa vez, por uma propaganda de cerveja, veiculada em cadeia nacional, em que o jogador corintiano Ronaldo diz: “Eu sou brahmeiro”. Foi o suficiente para uma das unidades do Ministério Público Federal arvorar-se de São José dos Campos para pedir a condenação, por danos morais coletivos, da Ambev e da África Publicidade, por incitação aos jovens no consumo de bebida alcoolica. A alegação era de que o sucesso do jogador estava sendo atrelado à cerveja, o que, segundo o MPF, não é permitido pelo Código de Autorregulamentação Publicitária.

Nem mesmo órgãos públicos escapam. Em dezembro, o alvo foi a Caixa Econômica Federal, instada a exigir, das contrutoras responsáveis por erguer as casas populares do programa federal "Minha casa, minha vida", que os projetos incluam rampas de acesso a deficientes físicos. A iniciativa veio do MPF de São Paulo, que justificou fazer a exigência contra a Caixa, financiadora do programa, pelo fato de o banco arcar com a parte operacional dos recursos.

A Caixa alegou que são as autoridades locais que fiscalizam as obras, e não ela. O advogado José Levi Mello do Amaral concorda. “O banco é o agente econômico. Não pode sofrer esse tipo de constrangimento”, opina. A Justiça indeferiu a ação civil no início de janeiro, sem sequer analisar o mérito do pedido.  

Papel constitucional
Para o órgão máximo de controle do Ministério Público, a explicação para essa chuva de ações é simples. “Não é o MP quem diz que a infância e a juventude são absolutas. É a Constituição”, diz o corregedor-nacional do Ministério Público, Sandro Neis. “É com base nesse princípio que o MP procura dar efetividade a suas ações.” Para Neis, no entanto, promotores e procuradores precisam lembrar que a adoção de políticas públicas não pertence nem ao MP, nem ao Judiciário. “Não pode haver interferência na política, mas o MP precisa participar da sua elaboração, como parceiro, para depois ser fiscal.”

E é justamente na mesa de negociações que o MP tem visto resultados mais concretos. Enquanto muitas Ações Civis Públicas despencam pela Justiça, os Termos de Ajustamento de Conduta ganham a simpatia dos procuradores. Levantamento feito com os membros do MP do Rio de Janeiro, ainda em 2006, pela professora e cientista política da Universidade de São Paulo Maria Tereza Sadek mostrou que os procuradores enxergam o Judiciário conservador demais para aceitar as teses defendidas nas ações civis. “Em geral, os TACs implicam acordos que o MP acompanha integralmente”, diz a especialista. Não há, no entanto, no site do Conselho Nacional do Ministério Público, qualquer menção à quantidade de ações civis aceitas pelo Judiciário em relação ao total de ajuizamentos.

Parceiro da lei
Nem todas as intervenções do Ministério Público nas políticas públicas são criticadas. Há até as que são elogiadas, e muito. O advogado José Del Chiaro, especialista em lei antitruste, é um dos entusiastas da recém-ajuizada Ação Civil Pública contra a padronização dos plugues de tomadas elétricas no Brasil. A ação foi protocolada pelo MPF do Paraná no último dia 26, contra a União, a Associação Brasileira de Normas Técnicas e o Inmetro.

Desde janeiro, fabricantes de eletroeletrônicos tiveram de adaptar os plugues de seus aparelhos ao novo padrão adotado no país, o que, segundo Del Chiaro, fecha as portas para as importações. “Não há como ligar um Ipod aqui, por exemplo. Não se evolui quando não há concorrência”, diz. Além disso, segundo ele, os consumidores podem apelar para adaptadores inadequados e colocar suas instalações elétricas em risco. É justamente o que o MPF paranaense quer evitar.

O advogado e constitucionalista Mello do Amaral também concorda que, em determinados casos, são necessárias medidas protetivas do MP. “Foi diante de uma ação do Ministério Público que a Previdência Social decidiu contratar funcionários e melhorar o atendimento aos segurados, que esperavam em filas ainda piores que as atuais”, conta. Segundo ele, isso não precisa acontecer só no Judiciário. “O MP precisa ser agente de subsídio ainda no processo legislativo, como o foi na elaboração da Emenda Constitucional 45, que reformou o Judiciário”, afirma.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!