Programa nacional

Direitos Humanos e Estado de Direito estão ligados

Autor

  • Flávia Piovesan

    é vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

30 de janeiro de 2010, 9h45

Alvo de acirradas críticas de setores do Executivo (em especial do Ministério da Defesa) e de setores da sociedade (em particular da Igreja Católica), envolvendo a troca de insultos entre ministros e até ameaças de demissão, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), adotado em 21 de dezembro, tem como mérito maior lançar a pauta de direitos humanos no debate público, como política de Estado, de ambiciosa vocação transversal.

Contempla 521 ações programáticas, alocadas em 6 eixos orientadores: interação democrática entre Estado e sociedade civil; desenvolvimento e direitos humanos; universalizar os direitos humanos em um contexto de desigualdades; segurança pública, acesso à justiça e combate à violência; educação e cultura em direitos humanos; e direito à memória e à verdade. O PNDH3 é fruto da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em dezembro de 2008, a partir de um processo aberto e plural, contando com a participação da sociedade civil, de instituições, como também dos próprios atores governamentais, no exercício de um diálogo democrático marcado por “tensões, divergências e disputas”, como reconhece o próprio prefácio ao PNDH3.

Os diversos Ministérios foram convidados a participar do processo ao longo de quatro meses, contando o PNDH3 com a assinatura de todos os Ministros, tendo em vista a “transversalidade e a inter-ministerialidade de suas diretrizes”. Espelha a própria dinâmica da historicidade dos direitos humanos, que, como lembra Norberto Bobbio, não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Direito ao meio ambiente, direito ao desenvolvimento sustentável, direito à verdade, direitos dos idosos, direito à livre orientação sexual, direito aos avanços tecnológicos, dentre outros, são temas que emergem na agenda contemporânea de direitos humanos. O Programa é reflexo das complexidades da realidade brasileira no campo dos direitos humanos, a conjugar uma pauta pré-republicana (por exemplo, o combate e prevenção ao trabalho escravo) com desafios da pós-modernidade (por exemplo, o fomento à implementação de tecnologias socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis).

O 1º PNDH foi adotado na era FHC, em 1996, contendo metas na esfera dos direitos civis e políticos. Em 2002, adveio o 2º PNDH, incluindo os direitos econômicos, sociais e culturais. O PNDH3 nasce com o objetivo de atualizar e ampliar o Programa anterior. A abrangência do Programa é reflexo da abrangência mesma que os direitos humanos assumem desde a Declaração Universal de 1948, a reunir em um só documento os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, sob o prisma da universalidade e da indivisibilidade.

Ainda que várias de suas metas sejam objeto de contundentes críticas e o próprio Secretario reconheça a necessidade de aprimoramento, seus pontos mais controvertidos estão em absoluta consonância com os parâmetros internacionais de direitos humanos e com a recente jurisprudência internacional, refletindo tendências contemporâneas na luta pela afirmação destes direitos e as obrigações internacionais do Estado Brasileiro neste campo.

Uma das metas mais polêmicas do PNDH3 é a criação da Comissão Nacional de Verdade para examinar violações de direitos humanos praticadas no período da repressão política de 1964-1985. A jurisprudência internacional reconhece que leis de anistia violam obrigações jurídicas internacionais no campo dos direitos humanos. No caso Barrios Altos versus Peru (2001), a Corte Interamericana considerou que leis de anistia perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma direta afronta à Convenção Americana. As leis de anistiam configurariam um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária.

No caso Almonacid Arellano versus Chile (2006), a mesma Corte decidiu pela invalidade do decreto-lei 2191/78 — que previa anistia aos crimes perpetrados de 1973 a 1978 na era Pinochet — por implicar a denegação de justiça às vítimas, bem como por afrontar os deveres do Estado de investigar, processar, punir e reparar graves violações de direitos humanos que constituem crimes de lesa humanidade.

Quanto ao controvertido tema do aborto, o PNDH3 endossa a aprovação de projeto de lei que discriminaliza o aborto, em respeito à autonomia das mulheres. A ordem internacional recomenda aos Estados que assumam o aborto ilegal como uma questão prioritária e que sejam revisadas as legislações punitivas em relação ao aborto, considerado um grave problema de saúde pública. O drama do aborto ilegal tem gerado um evitável e desnecessário desperdício de vidas de mulheres, acometendo com acentuada seletividade as mulheres que integram os grupos sociais mais vulneráveis.

A respeito das uniões homoafetivas, o PNDH3 expressa seu apoio à união civil entre pessoas do mesmo sexo, assegurando os direitos dela decorrentes, como à adoção. Em 2008, a Corte Européia de Direitos Humanos ineditamente condenou a França por ter impedido uma professora francesa, que vive com sua companheira desde 1990, de realizar uma adoção, por afronta à cláusula da igualdade e proibição da discriminação. Desde 1996 esta Corte tem reiteradamente proferido decisões que repudiam práticas discriminatórias baseadas em orientação sexual, por constituir flagrante discriminação e indevida ingerência no direito ao respeito à vida privada, injustificável em uma sociedade democrática. No último dia 8 de janeiro, Portugal tornou-se o 6º país da Europa a permitir o matrimônio entre homossexuais, além da Bélgica, Holanda, Espanha, Noruega e Suécia.

No que se refere à liberdade religiosa, o PNDH3 enuncia a meta de desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos. Decisão da Corte Européia de Direitos Humanos de 2009 condenou a Itália a retirar crucifixos de escolas públicas, em nome do direito à liberdade religiosa. No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas as religiões merecem igual consideração e profundo respeito. A própria Constituição veda à União estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito deve manter-se laica e secular, não podendo se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião.

Se na época dos regimes ditatoriais a agenda dos direitos humanos era uma agenda contra o Estado, com a democratização os direitos humanos passam a ser também uma agenda do Estado — que combina a feição híbrida de agente promotor de direitos humanos e, por vezes, agente violador de direitos.

Direitos humanos, democracia e Estado de Direito são termos interdependentes e inter-relacionados. Com o ímpeto de lançar as bases para a formulação de uma política nacional de direitos humanos, o PNDH3 desde já presta uma especial contribuição ao ampliar e intensificar o debate público sobre direitos humanos, acenando a idéia de que não há democracia, tampouco Estado de Direito, sem que os direitos humanos sejam respeitados.

Artigo publicado originalmente pelo jornal O Estado de S.Paulo.

 

Autores

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    é procuradora do estado de São Paulo e professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg – 2007; 2008; e 2015); e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max Planck Institute (Heidelberg - 2009-2014).

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