Jurisdição em tempo real

O anteprojeto de reforma do Código de Processo Civil

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30 de janeiro de 2010, 3h23

“La mondialisation se vit sur le mode d’une tyrannie du temps réel sur l’espace réel” (Aubert)

Jurisdição, como poder estatal, se revela no dia a dia como um relevante serviço público, denominado prestação jurisdicional: seu objeto é a pacificação dos conflitos sociais, travados no corpus do processo judicial.

A prestação do serviço público jurisdicional se dá mediante a atuação do juiz, que conduz a trajetória dos atos processuais, com a colaboração de outros agentes (serventuários da Justiça, auxiliares do juízo, além das partes e terceiros interessados) culminando nas decisões antecipatórias de mérito ou sentenças.

Muito se discute sobre a efetividade da prestação jurisdicional e as razões que maculam este serviço público exercido pelo Estado, em regime de monopólio.

A Comissão de Juristas, instituída pelo Ato 379 de 2009, do presidente do Senado Federal, encarregada de elaborar o anteprojeto do novo Código de Processo Civil, adotou premissas muito claras para o encaminhamento dos trabalhos, a saber:

(I) rapidez da prestação jurisdicional e

(II) diminuição da quantidade de demandas judiciais e de instrumentos processuais de impugnação.

Tais premissas revelam a ideologia que conduz a Comissão de Juristas responsável pelo projeto do novo CPC e suas raízes na cultura do imediatismo, da urgência, do instantâneo.

Sobre esta cultura do imediato, explica Nicole Aubert em sua obra Le culte de l’urgence, la société malade du temps (Flammmarion, Paris,2005,p.33):

nous vivons dans une culture de l’immédiat et nous sommes conduits à travailler dans l’urgence permanente pour gagner en efficacité”. E conclui: “La mondialisation se vit sur le mode d’une tyrannie du temps réel sur l’espace réel”.

A leitura do encaminhamento das proposições temáticas da comissão feito pelo ministro Luiz Fux ao presidente do Senado revela a plataforma ideológica fundada na culture de l’immédiat:

Em suma. Exmo. Sr. Presidente José Sarney, a Comissão concluiu nas diversas proposições que seguem em anexo,que se impunha dotar o processo. e a fortiori, o Poder Judiciário, de instrumentos capazes , não de enfrentar centenas de milhares de processos, mas antes, de obstar a ocorrência desse volume de demandas, com o que, a um só tempo. salvo melhor juízo, sem violação de qualquer comando constitucional,visou tornar efetivamente alcançável a duração razoável dos processos, promessa constitucional e ideário de todas as declarações fundamentais dos direitos do homem e de todas as épocas e continentes, mercê de propiciar maior qualificação da resposta judicial, realizando o que Hans Kelsen expressou ser o mais formoso sonho da humanidade, o sonho de justiça.
Ministro Luiz Fux
Presidente da Comissão”

Assim, encontramos a espinha dorsal que sustentou a elaboração das proposições temáticas: desestimular a propositura e multiplicação de ações judiciais bem como viabilizar prestação jurisdicional mais rápida.

Por outro lado, identificam-se no encaminhamento das proposições temáticas da comissão os seguintes vetores de sustentação para o alcance do binômio diminuição de processos/ rapidez da prestação jurisdicional, a saber:

(a) imposição de ônus financeiro à propositura de demandas “aventureiras”;

(b) classificação dos denominados litígios de massa, instituindo o incidente de coletivização (na parte dedicada à legitimidade para agir, a Comissão desenhou um incidente de coletivização (nome provisório), referente à legitimação para as demandas de massa, com prevenção do juízo e suspensão das ações individuais).

(c) redução do número de recursos existentes, com a eliminação dos embargos infringentes e o agravo;

(d) adoção de uma única forma de impugnação no 1º grau, da sentença final, ressalvada a tutela de urgência impugnável de imediato por agravo de instrumento;

(e) instituição do procedimento único para o processo de sentença, adaptável pelo juiz em face do caso concreto, reorganizando o próprio código conquanto conjunto de normas, dotando-o de uma Parte Geral e de um Livro relativo ao Processo de Conhecimento, outro referente ao Processo de Execução, um terceiro acerca dos Procedimentos Especais não incluídos no Processo de Conhecimento, o quarto inerente aos recursos e o último e quinto Livro, sobre as Disposições Gerais e Transitórias. Inovação digna de destaque é a previsão de um sistema de provas obtidas extrajudicialmente, como mera faculdade conferida às partes e a realização de perícia judicial, ex offício e ad eventum, após a juntada de peças pelos assistentes técnicos das partes.

Igualmente as proposições sobre a contração de incidentes processuais, dando lugar à sua formulação em sede de contestação reafirmam uma posição mais pragmática do processo, como extinguir o instituto da reconvenção, permitindo ao réu formular pedido na própria contestação, que seja conexo com o fundamento do pedido ou da defesa, além de permitir a alteração do pedido e da causa de pedir em determinadas hipóteses, assegurando sempre a ampla defesa, e a concessão aos advogados da faculdade de promover a intimação pelo correio do advogado da parte contrária, de testemunhas etc., com o uso de formulários próprios e juntada aos autos do comprovante do aviso de recebimento.

Algumas espécies de contempt of court foram introduzidas nas ações que tenham por objeto pagamento de condenação de quantia em dinheiro, facultando ao juiz prever, além de imposição de multa, outras medidas indutivas, coercitivas ou sub-rogatórias.

(f) criou filtros jurisprudenciais, autorizando o juiz a julgar a ação de plano consoante a jurisprudência sumulada e oriunda das teses emanadas dos recursos repetitivos

(g) tornou obrigatório para os tribunais das unidades estaduais e federais, a adoção das teses firmadas nos recursos representativos das controvérsias , previstos no artigo 543-C do CPC;

(h) incluiu a conciliação como o primeiro ato de convocação do réu a juízo.

Tais proposições são, evidentemente, relevantes e úteis, não obstante maculadas pela “tirania do tempo real”, a que se refere Aubert.

Contudo, a lei em tese não atinge sua concretude se o ambiente em que deve se aperfeiçoar não estiver compatibilizado às mudanças propostas

Ações como uma reforma infraestrutural profunda, que somente pode resultar da adoção da autonomia financeira do Poder Judiciário, dotando-o de recursos próprios, como o que já previsto na Constituição Federal em seu artigo 99, inserido pela Emenda 45, são pressupostos da fluidez das reformas propostas pela Nobre Comissão de Juristas.

Não se pode pensar em celeridade ou rapidez antes da consolidação de condições razoáveis de trabalho nas estruturais judiciárias. Refiro-me, em especial ao Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, o maior da federação, cuja quantidade de processos atinge cifras faraônicas (mais de 16 milhões de processos na 1ª instância) e que conta com um quadro de, aproximadamente, dois mil juízes no Estado inteiro.

Ainda assim, a adoção de mecanismos para inibir a propositura de ações não se afigura a melhor solução, dentro do marco democrático do Estado de Direito que se construiu e se constrói a partir da Constituição Cidadã. E mais, a litigância de má-fé já é um mecanismo existente que possibilita a punição daquele que se utilizar de forma indevida do processo para o alcance de interesses escusos.

A maior quantidade de processos é resultado da demanda social existente e do enraizamento da garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional.

É bem verdade que a introdução de mecanismos que contemplem a diminuição da litigiosidade, a exemplo do estímulo à conciliação, sempre são bem vindas, mas não com a finalidade de obter a diminuição quantitativa de processos, senão para alcançar a mudança social de mentalidade.

Ressalte-se que o CPC de 1973 já previu a possibilidade do juiz conciliar a qualquer tempo, nada impedindo que o fizesse antes da citação, como se lê no artigo 125, IV do Código em vigor.

De especial relevância é o tema da desburocratização cartorária, através da definição mais clara dos atos ordinatórios a serem praticados pelo escrivão e pela concessão aos advogados da faculdade de promover a intimação pelo correio do advogado da parte contrária, de testemunhas etc. Igualmente, o tocante à adequação ao processo eletrônico, compatibilizando a comunicação dos atos processuais com o novo sistema.

Porém, frise-se: as estruturas para o alcance desta adaptação ao processo eletrônico e as rotinas a serem apropriadas não são matéria de lei em tese, mas de infraestrutura, de condições espaciais e físicas reais, concretas, fenomênicas. O alcance da ação em tempo real depende de sua ocorrência em um espaço real (temps réel sur l’espace réel).

Por tudo isso, mais do que urgente, é premissa, portanto antecedente à reforma da lei em tese, que a autonomia do Poder Judiciário seja efetivada, com a administração própria dos recursos oriundos do recolhimento da taxa judiciária, os quais hoje, no Estado de São Paulo, são destinados ao caixa único do Poder Executivo, além da otimização do Fundo Especial do Tribunal de Justiça, viabilizando a captação de recursos para investimentos e a participação do Judiciário na receita do spread dos depósitos judiciais, hoje apropriado pela instituição financeira que administra o volume de recursos o qual ultrapassa 15 (quinze) bilhões de reais.

A equação tempo/espaço será bem sucedida se ambas as variantes estiverem em sintonia.

Para dotar a jurisdição de eficácia e celeridade em tempo real, imperioso que o espaço do Poder Judiciário, com suas estruturas físicas, de informática e pessoal estejam aptas a dar tal tratamento ao processo e ao jurisdicionado, em condições de igualdade de acesso ao tempo e ao espaço.

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  • Brave

    é advogada. Foi Secretária Adjunta da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. É também professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

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