Dupla jurisdição

Acesso às instâncias superiores nem sempre é possível

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29 de janeiro de 2010, 7h26

O duplo grau de jurisdição foi positivado pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro na Constituição de 1824, que conferia garantia constitucional absoluta às partes litigantes, ao prescrever em seu artigo 158 que: "Para julgar as causas em segunda, e última instancia haverá nas Provincias do Império as Relações, que forem necessárias para comodidade dos Povos". Com o passar dos anos e o advento de outras constituições, este dispositivo foi suprimido dos textos constitucionais, levantando-se a questão sobre obrigatoriedade do duplo grau de jurisdição em matéria constitucional, visto que nenhuma das demais constituições consagrou tal “princípio” de forma expressa.

A questão em debate é objeto de divergência entre diversos doutrinadores, principalmente com o advento da Constituição de 1988. Conquanto não se tenha previsão expressa, parte da doutrina pugna pela ocorrência, de maneira implícita, do princípio do duplo grau de jurisdição (2):

“O princípio não é garantido constitucionalmente de modo expresso, entre nós, desde a República; mas a própria Constituição incumbe-se de atribuir a competência recursal a vários órgãos de jurisdição, prevendo expressamente, sob a denominação de tribunais, órgãos judiciários de segundo grau. […] Casos há, porém, em que inexiste o duplo grau de jurisdição: assim, v.g., nas hipóteses de competência originária do Supremo Tribunal Federal, especificada no artigo 102, inciso I, da Constituição. Mas trata-se de exceções constitucionais ao princípio, também constitucional. A Lei Maior pode excepcionar suas regras.”

Em contraposição à tese da adoção constitucional do princípio do duplo grau de jurisdição, estão, entre outros argumentos, as causas de competência originária para determinados julgamentos, bem como a hipótese de interposição de Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal contra decisões de primeira instância, o que, ao olhar de alguns doutrinadores, não suporta a existência do duplo grau de jurisdição como princípio constitucional, como asseveram Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (3):

“Ora, se fosse intenção do legislador constitucional — ao prever os recursos aos tribunais superiores — garantir o direito ao recurso de apelação, não teria ele aberto a possibilidade da interposição de recurso extraordinário contra decisão de primeiro grau de jurisdição. Na realidade, quando a Constituição garantiu o recurso extraordinário contra decisão de primeiro grau, afirmou que o direito ao duplo grau não é imprescindível ao devido processo legal.”

O que se percebe ao analisar estas duas correntes doutrinárias é de que ambas são unânimes ao creditar a existência do duplo grau de jurisdição, divergindo apenas quanto à sua qualidade de princípio fundamental para o exercício do devido processo legal no sistema jurídico brasileiro.

Apesar de não conter expressamente a positivação do chamado princípio do duplo grau de jurisdição, torna-se plenamente possível sustentar que o mesmo encontra-se implícito na Constituição Federal, se realizada uma análise sistemática de todos os dispositivos constitucionais, bem como de toda a legislação infraconstitucional.

Se considerarmos o disposto no artigo 5º da Constituição Federal, teremos um conjunto de normas que visa tratar de diversas garantias fundamentais a todos os cidadãos, incluindo o acesso ao poder judiciário e suas garantias constitucionais, senão vejamos:

“Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”

Ao analisar todo o disposto no artigo supracitado, percebemos que a Constituição visa assegurar aos litigantes, seja em processo judicial ou administrativo, três princípios fundamentais para resguardar a segurança e efetividade da prestação jurisdicional: o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Se analisarmos em conjunto estes três princípios, torna-se fácil visualizar que eles não subsistem separadamente, ou seja, não há devido processo legal sem ampla defesa e contraditório, ou contraditório sem ampla defesa e devido processo legal, bem como ampla defesa sem devido processo legal e contraditório. A integração destes princípios visa assegurar alguns dos principais fundamentos e objetivos constitucionais do nosso país, que consistem na dignidade da pessoa humana e na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Se a intenção da Constituição é garantir a dignidade da pessoa humana e a criação de uma sociedade justa, entre outras ações, deverá garantir que as decisões proferidas em âmbito judicial ou administrativo respeitem todos os princípios e dispositivos constitucionais, conferindo segurança e efetividade à prestação jurisdicional. Para alcançar esse objetivo, torna-se óbvio a necessidade da existência de instâncias e tribunais superiores, conferindo o direito de acesso a todos os cidadãos, abrangendo uma proteção segura dos provimentos administrativos/judiciais.

Não há como assegurar o princípio da ampla defesa e do devido processo legal sem garantir a existência de um segundo grau de jurisdição que possa fornecer uma nova análise de cada caso, se necessário. Quando analisamos a questão partindo de uma visão sistemática, resta claro a necessidade de implementação de órgãos jurisdicionais que possam reexaminar as matérias postas em juízo, uma vez que o duplo grau de jurisdição harmoniza-se com os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, buscando alcançar as necessidades e finalidades do estado democrático de direito, principalmente quando observamos o índice de reformas de decisões em instâncias superiores.

Partindo deste prospecto, podemos afirmar a existência do duplo grau de jurisdição como um princípio implícito na Constituição Federal, visando garantir e integrar os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, especialmente no que condiz aos instrumentos necessários para assegurar a proteção efetiva e razoavelmente eficaz das decisões administrativas e judiciais.

Algumas considerações devem ser feitas ao pautar-se na existência do duplo grau de jurisdição como princípio constitucional. Se o considerássemos um princípio irrestrito, de caráter necessário e absoluto em todas as decisões, em tese, de nada adiantaria a existência dos juízos de primeira instância. Na prática, partiríamos para um estado de onde nada valeria a sentença de primeiro grau, em que os juízes figurariam apenas como condutores do processo.

Nesse sentido, mesmo se tratando de princípio constitucional implícito, o duplo grau de jurisdição pode sofrer limitações ou restrições pelo legislador ordinário. Assim, todo aquele que obtiver uma decisão judicial desfavorável aos seus interesses poderá recorrer deste provimento, nos termos da lei ordinária, respeitando para tanto, determinados requisitos que, se inobservados, levarão ao não conhecimento do recurso manejado, impossibilitando a manifestação do Tribunal ad quem, ou seja, restringindo a atuação do duplo grau de jurisdição.

Como exemplo, podemos citar o pressuposto subjetivo do Interesse processual. Para que se possa recorrer de determinado provimento judicial torna-se necessário o preenchimento de pressupostos subjetivos e objetivos. Se a parte é legítima para agir e possui interesse processual em recorrer do provimento dado em determinada ação judicial, ela pode ou não exercer o seu direito. Trata-se de uma faculdade, não de obrigatoriedade.

Se manifestado o interesse tempestivamente, bem como preenchidos os demais requisitos exigidos pela lei processual, será assegurado à parte o direito de obter uma decisão de instância superior, ou seja, de exercer o direito ao duplo grau de jurisdição. Se não preenchidos tais pressupostos, a parte perderá o seu direito à manifestação de tal instância, ou seja, sofrerá uma restrição por não atender os requisitos exigidos por lei ordinária.

Outro fator de restrição imposto trata-se das causas de competência originária do Supremo Tribunal Federal, como o julgamento do presidente da república nas infrações penais comuns. Em tese, alguns doutrinadores defendem que há a supressão de instância por não permitir o juízo e pronunciamento dos órgãos de instância inferior. Dessa forma, não somente o legislador ordinário, mas também o constituinte impôs restrições ao duplo grau de jurisdição, que vigora em nosso ordenamento como princípio constitucional implícito.

Assim sendo, todas as pessoas têm direito a um pronunciamento judicial adequado, que poderá ser revisto por instâncias superiores, quando necessário. Entretanto, no estado democrático brasileiro e com base em nossa constituição, aquele cidadão que se incumbe de exercer determinados cargos de natureza pública, fica sujeito a esta restrição, assim como aqueles que não observam os requisitos exigidos pela lei.

Com base no exposto, percebemos a existência de elementos jurídicos consistentes e capazes de sustentar a existência do duplo grau de jurisdição como um princípio constitucional implícito no ordenamento jurídico brasileiro, visando garantir uma maior segurança nas decisões do Poder Judiciário, realizando a integração e harmonia dos demais princípios constitucionais existentes.

Mas, ainda que com todo seu caráter de segurança jurídica e garantia constitucional, o duplo grau de jurisdição não se reveste como princípio de caráter absoluto, podendo a sua aplicação ser restringida pelo legislador ordinário ou pelo próprio constituinte.

Referências
1.
Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
2. CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2005, p.77.
3. MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz (2006, p.512.)

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