Reforma política

Escândalos comprovam necessidade de mudança

Autor

28 de janeiro de 2010, 7h12

A frequência com que agentes políticos têm se envolvido em eventos delituosos demanda da sociedade a seguinte reflexão: existe algo além da deslealdade dos representantes para com os representados? Deficiências na organização do Estado brasileiro e nas instituições estariam colaborando para o que temos presenciado? A resposta parece ser afirmativa para ambas as questões.

Um dos aspectos da organização do Estado brasileiro que parece decisivamente mais complicar do que contribuir é a separação de poderes no que toca ao poder de fazer leis. Em A Nova Separação de Poderes, o constitucionalista estadunidense Bruce Ackerman expõe com clareza como o modelo de separação de poderes adotado lá e aqui pode ser problemático. Salienta o referido autor que, em sistemas presidencialistas como o nosso, o partido vencedor para o Executivo pode governar sob dois modos: (i) impasse, se não detém a maioria nas Casas do Congresso; e (ii) autoridade plena, se detém a maioria nas referidas Casas.

Segundo Ackerman, no modo impasse, três situações podem se apresentar: (a) o sonho Madisoniano; (b) o pesadelo Linziano; e (c) a crise de governabilidade.

Na primeira, cuja denominação homenageia um dos fundadores dos EUA, Executivo e Legislativo teriam uma relação construtiva, pois, não querendo se desgastar perante o eleitorado, o Legislativo irá apoiar as iniciativas do Executivo fazendo uma ou outra barganha com resultados bastante positivos para os cidadãos; na segunda, cujo nome homenageia jurista estudioso das crises constitucionais da América Latina, o Executivo, cansado das ações da oposição no Congresso, acaba por fechá-lo e instala um regime autoritário; no terceiro, embora não tenha força/apoio para derrubar o Congresso, o Executivo começa a governar por Medidas Provisórias e Decretos ou promovendo acordos com os congressistas, não raro com prejuízo ao interesse público.

Embora as três situações sejam possíveis de ter lugar, a realização do sonho Madisoniano se afigura mais remota. Na América Latina, todos os países que adotaram a separação de poderes aos moldes estadunidenses acabaram por cair em regimes autoritários (atualmente o Brasil se encontra na terceira situação). À exceção do sonho Madisoniano, as outras duas situações importam em afronta ao ideal democrático de autogoverno.

Se no modo impasse o quadro não é animador, veja-se o modo autoridade plena. Embora possua apoio da maioria no Congresso, assim como um primeiro ministro no parlamentarismo, um presidente com autoridade plena irá governar de forma bastante diferente de um primeiro ministro. A seguir apenas um exemplo ilustrativo de quão complicado é o quadro sem que a maior parte dos cidadãos sequer se dê conta disto.

No sistema presidencialista, o Executivo, antevendo a derrota na eleição seguinte e a possibilidade de a oposição vitoriosa ter que governar no modo impasse, procurará encher o ordenamento jurídico com leis identificadas com sua linha ideológica tais que, caso venha de fato a perder a próxima eleição, levarão anos para serem retiradas do ordenamento jurídico, causando embaraços na implantação do novo programa de governo e impondo grandes negociações com os diversos partidos no Congresso. Bruce Ackerman denomina tal prática de “entrincheiramento”. Por outro lado, no sistema parlamentarista um novo gabinete formado por partido que veio da oposição não experimentará restrições decorrentes de leis aprovadas na gestão anterior, já que, sempre detendo a maioria no parlamento, poderá revogá-las imediatamente.

Ainda no tocante às diferenças entre o parlamentarismo e o presidencialismo merece destaque o fato de existir responsabilidade política no primeiro, mas não no segundo. Assim, se o primeiro ministro é envolvido em evento que abale sua reputação, na esfera criminal ou não, perderá a confiança do parlamento e deixará o cargo em curto prazo; no presidencialismo, só haverá responsabilidade nos chamados crimes de responsabilidade, e mesmo assim um complexo processo de impeachment deverá ser instaurado e se estenderá por um bom tempo com boas possibilidades de ao final não dar em nada. Tanto o que exerceu seu mandato com respeito à res publica quanto o que traiu a confiança dos representados, provavelmente, deixarão o cargo no mesmo dia, quando o ideal é que o correto continuasse enquanto legitimado — como ocorre no parlamentarismo — e que o desleal fosse afastado o quanto antes.

Outro aspecto que chama atenção é a enorme quantidade de pequenos partidos políticos nas Casas do Congresso a barganhar cargos e vantagens pessoais. Uma melhor regulação do tema é necessária e poderia ser realizada via legislação infraconstitucional. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 958, na qual o STF declarou a inconstitucionalidade de Lei Federal que impunha limitações aos partidos políticos, o fundamento da decisão parece não estar ligado a uma eventual impossibilidade de limitação dos partidos pelo legislador ordinário (voto do Ministro Sydney Sanches).

Aspectos outros, ligados à organização do Estado e às instituições (financiamento de campanha, critérios para candidatura, não verticalização das coligações com erosão de valores etc.), poderiam ser aqui mencionados, mas os que o foram parecem suficientes para pelo menos instigar a reflexão sobre a existência de desajustes de fundo que podem estar contribuindo para a proliferação do que se tem visto no Brasil. O objetivo deste texto não é adentrar aos temas que deverão constar da esperada “reforma política” do Estado brasileiro e consequentemente sobre qual poder constituinte deverá ser deflagrado (se o originário ou o derivado), antes visa sublinhar sua necessidade e reforçar a atenção para algo que é de fundamental importância para a vida de todos os cidadãos brasileiros.

Finalmente, outro ponto que merece ser destacado é o relativo à forma como esse processo de “reforma política” deve ocorrer, não obstante a aparente falta de vontade da elite política brasileira em concretizá-la. O eminente professor Paulo Bonavides apresenta os termos evolução (ou reforma) com significado de mudanças políticas pela via da legalidade, isto é, com observância do Direito posto, com observância da Constituição. Por outro lado, confere ao termo revolução, nas dimensões política e jurídica, o significado de mudança de forma violenta sem a observância da legalidade.

A revolução é fruto de um processo lento, alimentado pelo descaso com as aspirações do povo, que vai gerando na consciência popular o sentimento de que é necessário dar um basta e realizar ele, diretamente, as mudanças negligenciadas pelos beneficiários do status quo. Quando a revolução eclode, acontece de forma rápida, é difícil ser contida e o seu custo, historicamente, tem sido deveras elevado.

Na evolução, os governantes vão realizando as mudanças sob a égide da legalidade, preservando a estabilidade e a paz social. Conforme a lição do sociólogo Th. Geiger, citado por Bonavides, são realizadas revoluções em miniatura com ganhos para a sociedade como um todo.

Não resta dúvida que a evolução é a melhor opção e consentânea com a vocação pacífica do povo brasileiro. Não obstante isto, com a crescente conscientização política do povo brasileiro, os escândalos e desgraças cada vez mais frequentes, já é possível se afirmar que de um modo ou de outro, no médio prazo, a reforma irá se concretizar.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!