Consultor Jurídico

Entrevista: Luís Inácio Lucena Adams, advogado-geral da União

24 de janeiro de 2010, 2h25

Por Alessandro Cristo

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Spacca
Luiz Inacio Adams - Spacca

Se depender do novo advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, a advocacia pública vai ganhar escritórios no Conselho Nacional de Justiça, na Câmara dos Deputados, no Senado e no Tribunal de Contas da União. A ideia de Adams é ramificar a instituição e ampliar o seu trabalho em órgãos que vêm ganhando importância, como o CNJ. A corte administrativa tem chamado a atenção pela quantidade de decisões importantes que afetam o Judiciário e a AGU não quer perder esse bonde.

A iniciativa busca evitar o que aconteceu no Tribunal Regional Federal da 3ª Região no fim do ano passado. Uma das candidatas à presidência da corte foi ao Supremo Tribunal Federal pedir a anulação das eleições que deram o cargo a um desembargador impedido de disputar. O STF ordenou novas eleições. A defesa do tribunal foi feita por um advogado privado, e não pela AGU, responsável pela representação dos Poderes da República, que sequer foi comunicada. É justamente esse resgate que a advocacia pública pretende fazer.

Há pouco mais de três meses à frente da Advocacia-Geral da União, Adams já mostrou a que veio. Nomeado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a cadeira ocupada, até outubro do ano passado, pelo agora ministro do Supremo Tribunal Federal José Antônio Dias Toffoli, o novo chefe da advocacia pública no país, apesar de bem recebido, teve que bater de frente algumas vezes dentro da própria instituição. Autonomia de procuradores federais em autarquias, funções comissionadas exercidas por advogados não concursados e eleições para cargos regionais de direção foram os temas nada consensuais herdados por ele.

A entrada de Adams no comando da AGU foi festejada pela advocacia pública. Por ter chegado ao posto máximo galgando degraus dentro da própria carreira, o ex-procurador-geral da Fazenda Nacional era a esperança do fim dos cargos em comissão destinados a advogados não concursados, uma das exigências mais frequentes da classe. Ledo engano. Adams não só manteve os assessores enxertados, como também defende a necessidade deles. "Existe uma faixa de cargos que precisa ser usada como forma de oxigenação", diz.

A atitude já deveria ser esperada. Quando chefe da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Adams levou um secretário-adjunto da Receita Federal, que sequer é advogado, ao cargo de diretor de um dos departamentos mais importantes para a recuperação de créditos na procuradoria, o Departamento de Gestão da Dívida Ativa da União. Na época, o Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional chegou a entrar com uma ação no Superior Tribunal de Justiça, pedindo a exoneração do diretor Paulo Ricardo de Souza Cardoso. A liminar foi negada.

Para Adams, esse tipo de problema é menor. Em entrevista à Consultor Jurídico, ele afirmou que sua principal preocupação é fazer passar no Congresso Nacional um projeto de lei que reformule a Lei Orgânica da AGU. Não uma lei ordinária, que seria algo "ornamental", segundo ele, já que se poderia "pendurar" o que se quisesse nela. É uma lei complementar o objetivo do novo advogado-geral, mais resistente a penduricalhos.

Adams entrou para a carreira de procurador em 1993, ano em que a AGU foi criada. Em 2001, foi nomeado secretário-geral de contencioso do gabinete do advogado-geral da União, que na época era Gilmar Mendes, hoje presidente do Supremo Tribunal Federal. No Ministério do Planejamento, foi consultor jurídico e secretário executivo adjunto. Em 2006, foi nomeado procurador-geral da Fazenda Nacional.

Leia a entrevista.

ConJur — A Advocacia-Geral da União permite um maior raio de ação que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional?
Luís Inácio Lucena Adams — A AGU cumpre uma função de maior importância. É mais ampla, até porque a Procuradoria-Geral da Fazenda faz parte do sistema AGU. A Advocacia-Geral envolve todas as consequências ligadas a um agente político. Não é um órgão, mas um sistema. Ela tem interface com todas as ações públicas, com toda a organização social. Está presente em todas as autarquias, órgãos centrais dos ministérios, na Presidência da República, em quase todas as unidades da administração pública, e junto ao servidor público. É o órgão que tem mais interfaces.

ConJur — Logo que chegou ao comando da AGU, o senhor herdou um problema. A representação judicial das autarquias federais exclusivamente pela Advocacia-Geral, imposta por uma portaria no ano passado, causou desconforto principalmente em relação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). O argumento do órgão foi de que os procuradores precisam ser autônomos, mais independentes da União e mais ligados à própria autarquia. Os procuradores repetiram o discurso. Por que o senhor insistiu na defesa da portaria?
Luís Inácio Lucena Adams — O procurador que atua na autarquia tem que trazer a visão daquele órgão ao sistema AGU, mas ele também tem que estar próximo da AGU porque não pode simplesmente defender o Cade cegamente. Os procuradores têm que ser capazes de chegar a um consenso.

ConJur — Qual o motivo da contestação?
Luís Inácio Lucena Adams — Esse órgão [a AGU] não pode ser compreendido todo ele como um órgão fechado. As interfaces que ele tem o obrigam a ter uma parte ligada ao ministério a que está vinculado, por exemplo, e outra integrada no conjunto de unidades de execução, com vinculações jurídicas e legais. A vinculação com os ministérios faz parte da natureza inerente à entidade, que a obriga a cumprir um papel de proximidade e de envolvimento.

ConJur — Que relação o advogado público deve ter com o órgão que defende?
Luís Inácio Lucena Adams — O órgão ou autarquia precisa ter no advogado da União alguém de quem ele possa ter orientação. O advogado público precisa atender ao comando hierárquico do ministério. Se o ministro pede, por exemplo, uma análise jurídica sobre determinada matéria, o advogado não pode dizer “isto aqui eu vou ver primeiro de maneira geral”. Não, o advogado precisa cumprir sua missão. É um comando direto hierárquico do ministério.

ConJur — Nesse caso, o parecer precisa seguir o gosto do freguês?
Luís Inácio Lucena Adams — Eu já trabalhei com seis ministros de Estado e nunca recebi encomenda de parecer. Fui assessor do Gilmar Mendes [ex-advogado-geral da União e atual presidente do STF], do Bonifácio [José Bonifácio Borges de Andrada, ex-advogado-geral da União], do Guido Mantega [ex-ministro do Planejamento, ex-presidente do BNDES e atual ministro da Fazenda], do Nelson Machado [secretário executivo do Ministério da Fazenda], do Paulo Bernardo [ex-ministro do Planejamento] e depois voltei a trabalhar com o Nelson Machado. Agora, sou ministro de Estado e assessoro o presidente. Nunca ninguém mandou que eu dissesse algo. Eu já recebi, por exemplo, recomendações do Ministério Público para que um parecer fosse alterado, mas eu não vou fazer isso. Por outro lado, o que é invariável é que eu expresse uma opinião e essa opinião seja avaliada. Isso é natural do sistema. O advogado não pode ser um autocrático, que diz e acabou. Todos têm que conferir a lei.

ConJur — Em relação à estrutura da AGU, qual é o próximo passo?
Luís Inácio Lucena Adams — A partir de 2010, nós vamos ter escritórios instalados do Conselho Nacional de Justiça, na Câmara e no Senado, além do TCU. Por quê? Porque, na verdade, nós temos o dever de representação, não de assessoramento, porque isso não é nosso, mas de representação.

ConJur — A que se deve a atuação no CNJ?
Luís Inácio Lucena Adams — O próprio CNJ agora está nos demandando porque tem tomado decisões que muitas vezes chegam até o Plenário do Supremo. Na advocacia pública, assim como o cliente não escolhe o advogado, o advogado também não escolhe o cliente. Ele tem a obrigação que vem do cargo, da lei, de defender o seu cliente. O que se pode fazer é ponderar em certos casos, como conflitos dentro do próprio Estado, tribunal contra tribunal, CNJ contra tribunal. etc. Quando isso acontece, cria-se um grupo de advogados ad hoc que vão exercer sua função sem necessariamente associar toda a discussão àquela função.

ConJur — A PGFN se expandiu e se modernizou durante sua gestão. Qual a impressão que ficou do trabalho e qual é o nível de interação com a AGU?
Luís Inácio Lucena Adams — A Procuradoria-Geral da Fazenda tem duas interfaces. A primeira é a jurídica, sua vocação natural. Nesse aspecto, ela interage com a AGU porque age em nome dela e participa das decisões centrais do sistema Advocacia-Geral da União. A outra interface é a administração tributária. Ela tem responsabilidade na cobrança do crédito tributário e isso faz com que ela tenha de assumir um conjunto de ações não-jurídicas. Qual a função jurídica de conceder parcelamentos, por exemplo? Não há nenhuma. O que se faz é um atendimento para receber, processar e colocar as informações no sistema. Sua dimensão de atuação a obriga a ter uma relação muito integrada com a administração tributária. Por isso, sua relação com a Advocacia-Geral é atípica dentro do sistema. Quando a PGFN faz um parcelamento, mesmo a penhora de uma casa, de uma conta bancária, isso é um ato administrativo tributário, que não tem nada jurídico. Por essa razão, foi criado um Departamento de Gestão da Dívida Ativa da União, que não é jurídico, e está organizando essa área, que nunca foi organizada antes.

ConJur — O que a experiência à frente da PGFN ensinou?
Luís Inácio Lucena Adams — A grande dificuldade para o procurador-geral, que percebi fortemente, é que, apesar de a cobrança tributária ser constitucionalmente uma prerrogativa da PGFN, nunca foi tratada como uma centralidade na PGFN. Ela sempre foi uma administração de processos, apenas receber e mandar processos. Isso começou a mudar com a criação da coordenação de grandes devedores, que equivale à coordenadoria-geral da dívida ativa. Eu criei um departamento de gestão, responsável por regulamentar, por exemplo, a judicação.

ConJur — Qual o desafio para alguém que saiu de um órgão tecnicista, como é a PGFN, para assumir uma função muitas vezes política?
Luís Inácio Lucena Adams — A Advocacia-Geral não é só política. Ela tem uma dimensão política, mas também tem uma dimensão técnica. Como procurador-geral, eu me envolvia nos debates de políticas públicas. No Congresso Nacional, participei dos debates sobre a Lei 11.941 [que instituiu o chamado Refis da Crise, no ano passado]. A diferença é que o ministro é mais exposto a assuntos políticos, até porque passa a ser centro disso também. O seu cliente é claramente o presidente da República, a Câmara, o Senado, o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça.

ConJur — A nomeação do senhor como advogado-geral trouxe expectativa aos procuradores de que a carreira seria prestigiada, já que o berço do ministro é a advocacia pública. No entanto, os cargos comissionados na AGU, destinados a advogados que não são de carreira, permanecem. Como fica essa relação?
Luís Inácio Lucena Adams — Eu não vejo embate. O que eu vejo é que a burocracia precisa se profissionalizar. Precisa haver uma dinâmica de meritocracia interna na organização. Existe um erro pelo qual estamos pagando há muito tempo, de que a evolução na carreira equivale a ocupar cargos comissionados. Ninguém faz carreira na própria carreira. Nós precisamos ter funções associadas à própria burocracia. Por outro lado, existe uma faixa de cargos que precisa ser usada como forma de oxigenação. Nenhum partido político assume o governo e não traz para a burocracia do Estado uma parte da sua composição. Não há em lugar nenhum do mundo um país democrático que governe exclusivamente por burocracia de Estado.

ConJur — AGU entra nesse escopo?
Luís Inácio Lucena Adams — A AGU faz parte da democracia de Estado. Ela presta assessoramento ao Poder Executivo, tem uma relação muito próxima com o governo. Quando eu falo governo não estou me limitando ao presidente da República e aos ministros. Falo de toda a administração pública. Ao assessorar o governo, a AGU assessora o Poder. O que não pode acontecer é a substituição dessa burocracia por uma burocracia politizada.

ConJur — A cobrança ainda existe?
Luís Inácio Lucena Adams — A exclusividade formal da carreira não pode ocupar o centro das discussões nesse momento. A centralidade está em outros problemas. Temos um plano de prerrogativas que precisa ser preservado. Quando procurador-geral, jamais fui chamado para fazer esse debate dentro da organização. Todo mundo acha que a exclusividade é boa, mas muito dessa discussão se deve à luta por poder e eu não entro nesse jogo, não me subordino a isso.

ConJur — A luta pelo poder não é comum onde há espaço para nomeações discricionárias?
Luís Inácio Lucena Adams — Eu não tenho problema nenhum de ter ao meu lado alguém que não seja da carreira, mas que traga colaboração. O que não pode acontecer é, dentro da organização, essa pessoa exercer funções que são prerrogativas da própria carreira. Evidentemente, ela pode fazer um parecer. Mas, para efeitos legais, a manifestação jurídica, o parecer definitivo tem que ser emitido por pessoas que estejam de fato ligadas à carreira. Isso sim é o elemento chave.

ConJur — Isso desagrada a quem espera uma promoção.
Luís Inácio Lucena Adams — Quer ver algo que ser tornou absolutamente equivocado? Eleição para procuradores regionais. Em vez da formação de uma dinâmica de meritocracia, gerou uma formação de grupos de poder, de grupos de interesse. Não pode ser assim. Alguns assuntos segregam, dividem. A pessoa não precisa gostar dos colegas com quem trabalha, mas precisa ter confiança de que a pessoa ao seu lado é competente. Esse debate passa pela reestruturação de carreira.

ConJur — Qual é a reestruturação ideal?
Luís Inácio Lucena Adams — Do meu ponto de vista, existem apenas duas carreiras, com “C” maiúsculo. A militar e a do Itamaraty, onde a remuneração e a ocupação estão associadas à meritocracia e a evolução envolve responsabilidade. Conforme se sobe na carreira, se assumem responsabilidades maiores, mais complexas e importantes. Não é como acontece hoje na procuradoria. A pessoa chega ao fim da carreira, mas continua na sua cidadezinha no interior, fazendo exatamente a mesma coisa que faz um procurador que entrou há dois dias.

ConJur — Devido ao acúmulo de processos judiciais em que a administração pública é parte, é razoável se exigir que advogado público seja mais pacificador e menos litigante?
Luís Inácio Lucena Adams — O problema tem dois lados. O advogado defende uma parte, tem um cliente. A sua função no contraditório é traduzir para alguém uma posição a alguém que está julgando, uma perspectiva do problema, uma visão da legislação. Mas ele também pode alcançar uma solução que não necessariamente a que se pretendia. Aí ele cumpre uma função que nós chamamos de “magistrado que não julga o caso”. Isso não quer dizer que ele tenha que ignorar seu cliente. Eu não gosto dessa coisa de comparar o advogado com juiz. Nossa função é descobrir qual é o problema e levar essa visão do problema para o juiz. O que eu prestigio é a conciliação, que faz com que as partes se falem. Quando se comunicam, elas às vezes se entendem. Não vem de uma imposição, não é obrigatório. É o que acontece quando batemos o carro. As partes se resolvem na hora, conversando. Dificilmente vai para o Judiciário.

ConJur — A ideia é evitar o Judiciário?
Luís Inácio Lucena Adams — O Direito conflita formas, valores. Esse conflito só tem como ser resolvido se houver um processo, um contraditório. Por meio do contraditório, dá para se conciliar e julgar. Mas o contraditório não resolve nada, só eventualmente acalma um problema que vai estourar mais adiante. O excelente contraditório é o que consegue achar equilíbrio.

ConJur — Por quê?
Luís Inácio Lucena Adams — O processo de resolução de conflitos no Brasil não pode simplesmente ser jogado na mão do Judiciário. Quando se faz isso, se está criando uma dinâmica de postergação evidente. Até porque o juiz é um generalista, ele não é um especialista. Existem varas especializadas, mas nos tribunais, por exemplo, os juízes são generalistas.