Majoração discricionária

Fator Acidentário de Prevenção é inconstitucional

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

20 de janeiro de 2010, 5h27

Já é de conhecimento público a instituição, pela Lei 10.666, de 8 de maio de 2003, do Fator Acidentário de Prevenção (FAP), que basicamente causará, a partir de janeiro de 2010, um novo aumento na carga tributária na maioria das empresas submetidas à contribuição prevista no artigo 22, inciso II, da Lei 8.212/91, que incide sobre a folha de salários.

É certo que, sob o enfoque do aumento da carga tributária, não podemos tratar a questão como uma novidade, eis que tal ocorrência tem sido costumeira em nosso sistema tributário, de sorte que inexistiria razão para essa análise.

Por sua vez, a abordagem a ser feita em nossas ponderações não terá por intuito explicar ou mesmo criticar o avanço da carga fiscal incidente sobre a folha de salários. Ao contrário, trataremos nossas reflexões de forma objetiva, incisiva e peremptória: o FAP, nos moldes do art. 10, da Lei n. 10.666/03 é inconstitucional. Ponto. Mas por quê? Faremos nossas reflexões deixando aos senhores a liberdade de se convencer ou não.

Para facilitar a compreensão da conclusão previamente explicitada, torna-se interessante a citação do art. 10, da Lei 10.666/03, o qual enuncia: “a alíquota de contribuição de um, dois ou três por cento, destinada ao financiamento do benefício de aposentadoria especial ou daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, poderá ser reduzida, em até cinqüenta por cento, ou aumentada, em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento, em razão do desempenho da empresa em relação à respectiva atividade econômica, apurado em conformidade com os resultados obtidos a partir dos índices de freqüência, gravidade e custo, calculados segundo metodologia aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social.”

Por este dispositivo legal, permite-se que a alíquota de 1% a 3%, prevista na Lei 8.212/91, possa ser majorada “em até cem por cento, conforme dispuser o regulamento”. Repita-se: a lei, de forma clara e sem margem de dúvida, possibilita ao Poder Executivo, por meio do exercício da função regulamentar, aumentar a contribuição sobre a folha de salários, prevista no art. 22, inciso II, da Lei 8.212/91, em até 100%.

Acredito que a análise desse dispositivo seja suficiente para fundamentar nossas conclusões, inexistindo necessidade de avaliar o regulamento e demais atos exarados pelo Fisco.

Como sabemos, para uma lei ser inconstitucional, é preciso que afronte a Constituição Federal, isto porque, lembrando de Carlos Maximiliano, a “Constituição é a lei suprema de nosso país”, ou seja, todas as demais normas devem respeitar ao disposto nesse texto maior, que somente pode ser alterado por emenda constitucional, em condições, procedimentos e matérias específicas (art. 60, da CF/88).

Em relação ao FAP, o que nos interessa é o art. 150, inciso I, da Constituição Federal, ao dispor que: “sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça”. É a consagração do princípio da legalidade, fundamento basilar de um Estado Democrático de Direito, pois incumbe à lei, votada democraticamente pelo Congresso Nacional, instituir ou majorar tributos, de maneira que se veda qualquer conduta em sentido contrário ao preceituado neste artigo.

A Constituição Federal, portanto, é de clareza meridiana em exigir que qualquer aumento de tributo seja feito por lei. Acreditamos que não seja muito complexo chegar a esse entendimento. Façamos, porém, a indagação: existem situações mitigando a exigência de lei para aumentar tributos?

Sim. A Constituição Federal traz situações onde o legislador constituinte originário criou uma atenuação na majoração de tributos por meio de lei, permitindo que o Poder Executivo, por meio de seus decretos, realize a majoração de tributos.

Esta flexibilização do princípio da legalidade está disposta na Constituição Federal nos seguintes artigos: (i) – art. 62, parágrafo 2º, que permite ao presidente da República editar Medidas Provisórias, ou seja, criar ou majorar tributo não por lei, mas por essa excepcional espécie normativa; (ii) – art. 153, parágrafo 1º, ao facultar ao Poder Executivo, nas condições e limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos sobre importação (II) e exportação (IE), produtos industrializados (IPI) e imposto nas operações financeiras (IOF). Afora tais previsões constitucionais, não é possível localizar qualquer atenuação ao princípio da legalidade sob o prisma tributário.

A mais disso, o art. 195, da Constituição Federal, que dá suporte à tributação prevista no art. 22, inciso II, da Lei 8.212/91 e ao disposto no art. 10 da Lei 10.666/03, em momento algum traça qualquer previsão de que é possível alterar alíquotas por atos infralegais, como é o caso dos regulamentos. Há total silêncio nesse sentido, de sorte que vale lembrar um adágio de que a exceção confirma a regra nos casos não excetuados. Ou seja, não constando na Constituição a possibilidade de manipulação das alíquotas por decreto (ou regulamento), como no caso das contribuições previstas no art. 195 da Constituição Federal, há de ser cumprida a regra geral, que é o estrito respeito à legalidade tributária, que impede o aumento de alíquota por ato que não seja lei.

Essa conclusão fica ainda mais evidente ao se analisar o parágrafo 9º do art. 195 da Constituição Federal, que permite alíquotas diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho. Porém, em momento algum permite a flexibilização da legalidade, para permitir que exista manipulação de alíquota por atos infralegais majorando tais tributos.

Por fim, cabe lembrar que o reconhecimento da constitucionalidade do SAT pelo Supremo Tribunal Federal não pode ser confundido com a presente discussão, já que a lei do FAP, ao contrário da legislação relacionada àquela exigência, expressamente, remete ao regulamento a possibilidade de manipular as alíquotas da contribuição a ponto de majorá-las, em detrimento da legalidade.

Enfim, o Estado Democrático de Direito exige respeito e isso se dá pela observância da Constituição e de seus princípios basilares, em especial, da legalidade, que nada mais é do que reflexo da democracia e da consagração dos direitos fundamentais. Até porque pensar o contrário é festejar inércia e alimentar um Estado incompatível com aqueles ideais, sendo pertinente o poema No Caminho com Maiakovski, escrito em 1960 por Eduardo Alves da Costa, em homenagem à morte de Vladimir Maiakosvki, que se suicidou em protesto ao comunismo implantado na União Soviética. Nele, o autor escreve magistralmente o processo de aniquilamento das liberdades humanas: "na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada".

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